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Milcho Manchevski: “A Internet ainda não ajudou o cinema como ajudou a música”

Milcho Manchevski, diretor de Bikini Moon

Durante a 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o diretor macedônio Milcho Manchevski traz um longa-metragem que aproveita a sua experiência com filmes experimentais e videoarte.

Bikini Moon é um falso documentário sobre uma moradora de rua, Bikini (Condola Rashad). Enquanto a equipe de documentaristas faz o que pode para ajudá-la com seus problemas psicológicos, a biografada apresenta uma realidade muito diferente do que imaginavam. Aos poucos, o drama se transforma numa comédia de absurdos, e depois cede espaço à fantasia.

Mas como construir uma história tão improvável? De que maneira trabalhar com o elenco, e distribuir um projeto do gênero?

Como você desenvolveu essa história do documentário dentro de uma ficção?

Milcho Manchevski: É isso que tornou o filme divertido, é a razão pela qual eu quis fazê-lo. Queria jogar com a estrutura, com a forma, e isso veio do meu interesse por filmes experimentais. Mesmo nos meus filmes mais convencionais, como Antes da Chuva, eu começo com uma estrutura e depois desenvolvo os personagens, suas alegrias, tristezas e a trama. Então, no início, parto do interesse estrutural, esperando que o público embarque na ideia.

Neste filme específico, eu estava interessado nas linhas que separam ficção e documentário, que têm ficado cada vez mais borradas nos últimos anos. Os documentários sempre foram suspeitos para mim. Os documentaristas costumam dizer que estão falando a verdade, mas nem sempre é assim. Especialmente nos últimos 15 anos, as linhas ficaram ainda mais borradas. Hoje temos reality shows, todos filmam o que fazem e comem e postam online. Então, a questão de buscar a verdade realmente se tornou relevante e importante para mim.

Algumas teorias sugerem que a partir do momento em que você liga uma câmera, escolhe o enquadramento, a luz e a montagem, você já está manipulando a realidade.

Milcho Manchevski: Isso é verdade. Nós precisamos reconhecer isso. Todo documentário parte de uma verdade específica, da verdade daqueles cineastas. Quando reconhecemos isso, entendemos que não estamos necessariamente entregando uma verdade distorcida, mas um argumento. Isso é mais justo, na verdade.

Em Bikini Moon, os seus personagens estão interpretando outros personagens, em diversas camadas. Como construiu o roteiro e trabalhou esta ideia com os atores?

Milcho Manchevski: Foi tijolo por tijolo. Levei muito tempo para escrever o filme, então cada detalhe foi muito filtrado. Trabalhei com um corroteirista, W.P. Rosenthal. Ele tem especialização em psicologia clínica, já trabalhou com pessoas sem-teto enfrentando problemas de vício e mentais. Então, passamos por um longo processo seletivo e depois ensaiamos bastante com os atores. Todas as camadas foram cuidadosamente construídas. Assino embaixo do que Ingmar Bergman disse: ensaiar é criar, filmar é recriar. O que você criou nos ensaios, você simplesmente registra nas filmagens.

Todos os improvisos que surgiram, apareceram nos ensaios. Nós os aceitamos e os incorporamos no filme. Parte do filme foi feita como um documentário nas ruas. Filmamos em vários formatos diferentes, com celulares, câmeras de segurança. Gosto dessa sensação de colagem. São como as antigas colagens de Pablo Picasso, Georges Braque ou Robert Rauschenberg: empolgantes. Então, o filme tem um pouco dessa textura. Eu poderia filmar com este elenco para sempre, eles são incríveis. Essa é a vantagem de escolher elencos em Nova Iorque. Você consegue encontrar atores em ascensão, que não estão muito ocupados, mas que são fantásticos.

O filme soa como uma provocação. As cenas se tornam cada vez mais absurdas, como se você desafiasse o espectador a acreditar no que está acontecendo.

Milcho Manchevski: É isso que torna o filme mais atraente para mim enquanto cineasta. Como espectador, também me sentiria assim. Sei que isso também torna o filme mais difícil, mas também pode torná-lo mais gratificante no filme. Então, você participa ativamente do filme ao invés de só comer pipoca e ver um papel de parede.

A reviravolta [quando aparecem elementos fantásticos] me estimulou a fazer o filme. Pensei: e se você estivesse vendo um documentário, um documentário de verdade, e visse coisas que não são possíveis? Como dragões. O que você faria? Você continuaria a acreditar no filme? Foi essa pergunta que me motivou a fazer o filme. E, sete anos depois, aqui estamos.

Como foi o processo financiamento?

Milcho Manchevski: É incrivelmente difícil encontrar financiamento para qualquer coisa que seja levemente diferente do “cinema pipoca”. Essa situação se torna cada vez pior. Compare hoje em dia aos dias de ouro do cinema de arte nos anos 1990, pelo menos nos Estados Unidos. Poderíamos acreditar que a democratização da mídia, que permite o acesso à produção de filmes a qualquer pessoa com um orçamento relativamente baixo, tornaria as coisas mais interessantes, abriria espaço para mais produções diferenciadas, mas o que acontece é exatamente o oposto. Quem tem dinheiro para investir no cinema é conservador. Tem mais medo. Então, de certa forma, quando você deseja entrar no cinema para tratá-lo como arte ao invés de uma máquina de fazer dinheiro, você é uma espécie de kamikaze.

Bikini Moon será lançado no circuito comercial após os festivais?

Milcho Manchevski: Quando você faz um filme, você quer que o público veja. No entanto, quando você pensa só no público no momento de filmar, você acaba se equivocando e fazendo a obra sofrer. Acho que o diálogo dos cineastas precisa ser apenas com seus filmes. Não com os críticos, não com os festivais, não com o público porque todas essas instâncias podem ser subornadas. Você pode subornar o público, os festivais e os críticos com o que você coloca no filme. Mas quando você lida diretamente com o filme, é mais difícil que isso aconteça.

Então, a questão verdadeira é: eu ainda estarei orgulhoso desse filme daqui a 20 anos? Para mim, esse é o único critério. Óbvio que você quer que as pessoas vejam, se não você deixaria guardado no porão. Mas é importante não se tornar ganancioso para encontrar seu público, sem esperar que todos gostem e entendam.

No Brasil, muitos cineastas independentes têm apostado no lançamento em plataformas digitas.

Milcho Manchevski: Eu esperava que a internet nos ajudasse na distribuição de filmes da mesma forma que ajudou a distribuição de músicas há 20 anos. Isso ainda não aconteceu. Mas eu tenho esperanças. A distribuição digital faz sentido porque os cinemas são caros, desajeitados, velhos. Mas, ao mesmo tempo, é difícil promover o filme se não você não exibir nos cinemas. Se você colocar na internet, como terá certeza que as pessoas que estariam interessadas no seu tipo de cinema vão conhecer o filme? Como você terá certeza de que uma pessoa de uma cidade pequena do Paquistão saberá que seu filme está na internet?

Quando você exibe nos cinemas, isso automaticamente traz certo tipo de exposição, é um atrativo. Não sei como as coisas vão se moldar daqui para frente. Até agora, não parece que o streaming tenha deixado o cinema mais criativo ou ousado. Infelizmente. Espero que essa situação mude. Até agora, o panorama não é muito bom.

 Bruno Carmelo

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