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Mulheres não precisam de príncipes, precisam ser respeitadas

Diz-se que a fila de bem intencionados na porta do inferno é grande.

Moramos num país no qual um homem mata uma mulher a cada duas horas em razão de sua condição de mulher, quer dizer, o assassino tem como motivação, além do ódio circunstancial pela vítima, o fato dela ser mulher.

O inverso, qual seja, ódio de uma mulher por um homem, não há de ser menor ou menos justificado, mas resolvê-lo com assassinato é infinitamente menos comum.

Muitas são as razões para que o feminicídio ocorra, dentre elas o fato de deslocarmos o enigma da sexualidade e da maternidade para a figura da mulher.

Sexualidade e reprodução serão sempre temas enigmáticos e perturbadores para os humanos.

Não há religião, arte ou ciência capaz de responder sobre eles. Deslocar o mistério para a mulher –afinal, é do corpo dela que se vê sair os demais corpos– é fingir que existiria a resposta e que ela a sonega. O jeito é controlá-la ou massacrá-la.

As bruxas queimadas na Santa Inquisição são a imagem acabada dessa pretensão.

Para descobrir “o demônio” no corpo feminino, os padres, que tinham pouquíssimo acesso a ele, não se furtavam em fazer incursões ginecológicas indescritíveis.

Tudo em nome do santíssimo, claro, e mal escondendo a curiosidade de qualquer criança de 5 anos.

Temos hoje uma cultura na qual a virilidade, atributo suposto ao masculino, e violência estão associados.

Mas nem sempre a virilidade foi confundida com a força bruta como se vê hoje.

O termo viril, como nos lembra o psicanalista Pedro Ambra em “O Que É Um Homem: Psicanálise e história da masculinidade no Ocidente” (Annablume, 2015), já teve diferentes acepções, podendo ser atribuído à mulher valente, assim como já foi associado a capacidade do homem controlar seus impulsos e até sua castidade.

O macho que fala grosso, usa palavras de baixo calão e aponta uma arma a esmo para se autoproclamar homem revela não estar muito confiante de sua masculinidade, precisando reafirmá-la a torto e direito.

Onde sobra bravata, falta firmeza.

Refletindo sobre o problema do extermínio de “princesas”, como gostam de dizer os defensores do binarismo de gênero, cabe pensar as soluções ou formas de atenuar a tragédia que ainda se abate sobre as mulheres e suas famílias.

É aí que sobram “as boas intenções” e seus riscos.

A lógica que rege essa violência começa com a ideia de paternalismo e vitimismo.

As pobres mulheres indefesas precisariam do braço forte do homem, da religião e de um estado que agisse como um bom pai.

Essa mulher infantilizada é protegida e cuidada até o momento em que fizer algum movimento emancipatório, ou seja, momento no qual seu desejo se sobreponha ao esperado dela.

O desejo que não cede ao outro é o demônio na mulher, que o bom pai vem erradicar à bala, faca ou murros.

Mirem-se no exemplo das mulheres da alta casta de Gilead (“O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, 1985), que descobrem tarde demais o preço impagável da tutela masculina.

Já os homens que pregam o fim do uso da palavra feminismo demoram para perceber que ganham no varejo um poder, enquanto perdem no atacado respeito e amor.

A mulher tutelada, que abriu mão do seu desejo em nome do homem protetor, nutrirá um ressentimento mais ou menos inconsciente sempre pronto a aparecer na forma de desprezo, inveja ou franco ódio.

As mulheres não precisam de príncipes que as salvem, mas de homens viris o suficiente para controlarem a si mesmos e deixá-las seguirem em paz.

O resto é o inferno.

FSP

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