Tempo - Tutiempo.net

Histórias escritas por crianças refugiadas viram coleção de livros infantis

A colombiana Valentina Streeter Botero, de 5 anos, mostra o livro que escreveu como parte do projeto do Instituto Adus (Foto: Marcelo Brandt/G1)

O primeiro livro escrito por Valentina Streeter Botero tem apenas 130 palavras e conta a história de uma princesa chamada Valentina. Ilustrado com sete desenhos feitos pela própria autora mirim, prestes a completar seis anos de idade, o livro “A princesa Valentina” é uma de 22 obras de uma coleção de livros infantis criados por crianças refugiadas vivendo na cidade de São Paulo. Eles foram publicados como parte de um projeto desenvolvido pelo Instituto Adus, em parceria com as empresas Estante Mágica e Alphagraphics.

Em novembro, as crianças participaram de dois dias de oficinas com facilitadores e psicólogos, onde foram incentivadas a falar sobre seus sonhos. Além de escreverem as histórias, elas mesmas ilustraram a obra que, depois, foi transformada em livros de capa dura e entregues de presente aos pequenos escritores e escritoras. A ideia para 2018 é coordenar a produção de exemplares da coleção para a venda ao público em geral, como formar de gerar renda às famílias das crianças.

Lidando com o trauma

Nascida na Colômbia em 2012, Valentina vive desde o fim de 2014 com a irmã menor, a mãe e o pai em São Paulo. “Minha filha menor, Rafaela, deu seus primeiros passos no Brasil”, contou , relembrando a trajetória dos quatro para achar um local em que as crianças pudessem crescer em segurança.

Eles foram obrigados a fugir da Colômbia depois que Cristiano, que tinha uma empresa de exportação de madeira fina, e por anos teve que pagar “pedágios” cada vez mais caros às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs), foi sequestrado por guerrilheiros da organização e ficou 29 dias em cativeiro. Na época, os homens também ocuparam a casa da família, o que, segundo ele, infligiu em Valentina um profundo temor de homens desconhecidos.

“Ela tinha muito medo. Via um homem caminhando até nós e era um terror. Ela dizia: ‘papai, me ajude, é um homem mau'”, relembra ele, afirmando que, aos poucos, a menina passou a ter medo de sair de casa. Para superar o trauma, Valentina passou por psicólogos. Hoje, Cristiano diz que os únicos resquícios do trauma visíveis na menina são dificuldades de pronúncia das palavras, já que ela tem aprendido espanhol, português e algo de inglês ao mesmo tempo.

A história escrita pela colombianinha mistura eventos reais de seu passado e suas vontades para o futuro, como uma viagem de férias da família para o Rio de Janeiro, as conversas por Skype com os parentes que ainda vivem na Colômbia e a vontade de se formar em medicina para ajudar os outros.

Cristiano lembra que, durante a oficina, ele se surpreendeu quando Valentina mencionou uma ambulância, que também foi incluída e desenhada no livro. Segundo ele, depois de ser libertado do cativeiro, ele, a mulher e as filhas escaparam da cidade em que viviam escondidos dentro de uma ambulância até o aeroporto, onde o governo lhes deu um documento que comprovava sua condição de refugiados em razão da guerra ao narcotráfico e fretou um avião para tirá-los do país. Quando chegaram ao Brasil, Valentina tinha apenas dois anos e sete meses.

Auxílio às famílias

Em entrevista, Marcelo Haydu, diretor-executivo do Instituto Adus, explicou que o projeto teve diversos objetivos, como trabalhar uma forma lúdica de fazer com que as crianças falassem, de forma indireta, sobre suas experiências pessoais e elaborassem seus desejos, medos e sonhos.

“Como o adulto lida com a situação do refúgio? A gente imagina que a forma como a criança lida é um pouco diferente”, explicou ele. “Ao propor o tema ‘sonhos’, pensamos que com certeza, de alguma forma, elas tratariam do tema de uma forma mais lúdica, mais suave, mais doce, esse era o nosso objetivo.

“E saíram histórias muito bonitas e impactantes: vemos como uma criança de sete, oito ou nove anos sente e vivencia o fato de ter tido que imigrar de maneira forçada com os seus pais.”

Outro propósito foi desenvolver uma maneira de garantir às famílias que tiverem interesse uma renda extra, com a futura venda dos livros. Qualificar os refugiados vivendo em São Paulo e ajudá-los a se inserir no mercado de trabalho é o principal foco do Adus.

O status de refugiado garante a esses estrangeiros a permissão de trabalhar no Brasil, mas Cristiano Streeter, o pai de Valentina, e sua esposa Maria Clara, dizem que são exemplos de como é difícil começar do zero em um país novo, sem uma rede de apoio e contatos.

“Eu tenho diploma em comércio exterior, tinha uma empresa de exportação na Colômbia, e hoje trabalho como funileiro, como soldador. Imagina a mudança”, disse ele, ressaltando, porém, que é muito agradecido pela empresa que o contratou. “Estamos recomeçando do zero e pronto. Vamos a começar do zero sem nenhum problema.”

Sua mulher, graduada em administração, recentemente foi contratada para trabalhar no setor administrativo da mesma empresa. Cristiano, que só foi libertado pelas Farc depois de pagar uma enorme quantia em dinheiro, que nunca foi recuperada, também pretende fazer uma nova faculdade no Brasil, dessa vez de administração.

Atualmente, a família de quatro vive em uma quitinete no Brás, no Centro de São Paulo, e as duas filhas frequentam a rede pública de ensino.

Amor pelo Brasil

Além da gratidão pelos empregadores, o casal diz que foi muito bem acolhido em São Paulo e tem amigos brasileiros e refugiados de outros países da América Latina, da África e do Oriente Médio. Segundo ele, apesar das origens distintas, a condição de migrantes forçados os une em uma cidade que ele considera pluricultural e plurinacional.

A participação em projetos como o Adus, relata Cristiano, também ajuda na integração as filhas. “Me pareceu excelente, porque motiva e ajuda no crescimento [delas]”, explicou ele. “Ela começou a ler, agora já quer escrever, desenhar, fazer outras coisas. Foi um impacto grande, uma coisa única.”

Valentina agora se prepara para começar o segundo ano do ensino fundamental em fevereiro, quando completará seis anos, e a família planeja ficar no Brasil, já que não vê, por enquanto, a situação da violência na Colômbia melhorar.

“Somos colombianos de nascimento, mas brasileiros de coração. O país abriu as portas para nós. Não imaginávamos que teríamos tanta receptividade.”

Ana Carolina Moreno

OUTRAS NOTÍCIAS