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“Nunca vi um período tão assustador como este na Educação” diz professora da UFMG

´Professora Magda Becker Soares

Magda Becker Soares tem 86 anos e não costuma perder o sono à toa.

Recuperando-se de uma cirurgia delicada, uma das maiores autoridades brasileiras em Alfabetização diz que nem mesmo o fato de encarar a mesa de cirurgia a deixou preocupada.

“Mas quando saiu o anúncio sobre essa Secretaria de Alfabetização com o Carlos Nadalim, eu passei noites e noites em claro. Não conseguia dormir. Não sei o que vai ser”, diz a professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e uma das criadoras da Faculdade de Educação nessa instituição.

Pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), ela tem uma longa trajetória entre escolas e universidades. Magda introduziu no Brasil o conceito de letramento e, entre livros acadêmicos e didáticos, publicou mais de 40 títulos.

Seu último livro, “Alfabetização: a questão dos métodos”, levou o Prêmio Jabuti de melhor livro de Educação e Pedagogia e também de não-ficção do ano de 2017.

Ainda hoje, Magda mantém contato com escolas e professores trabalhando voluntariamente com o desenvolvimento profissional de alfabetizadores na rede municipal de Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, onde há 11 anos lidera o Núcleo de Alfabetização e Letramento.

Em 2018, as ideias de Magda foram alvo de críticas pelo recém-nomeado secretário de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC), Carlos Nadalim, pasta criada pelo novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez. Para Nadalim, o letramento seria o “vilão da alfabetização”.

“É preciso ir muito além das letrinhas, dos grafemas. Você está certa [Magda]. Mas o fato, Doutora Magda, é que as nossas crianças não estão aprendendo nem isso”, diz ele em um dos vídeos de seu canal “Como Educar seus Filhos”, no YouTube.

Nadalim é formado em Direito, com especializações em História e Teorias da Arte e Filosofia Moderna e Contemporânea, além de ser mestre em Educação.

É coordenador pedagógico na escola Mundo do Balão Mágico, em Londrina (PR). A instituição, que de acordo com o Censo Escolar 2017 contava com 12 funcionários, 47 alunos na pré-escola e 94 estudantes do 1º ao 5º ano, foi uma das três ganhadoras do prêmio Darcy Ribeiro de Educação em 2018, por indicação do deputado federal Diego Garcia (Podemos/ PR).

Em entrevista exclusiva à Nova Escola, Magda Soares fala sobre as críticas ao seu trabalho, tece considerações sobre a existência de uma secretaria dedicada às políticas de alfabetização, avalia a proposta de um Brasil que alfabetize apenas usando o método fônico e comenta sobre os equívocos frequentemente cometidos quando o assunto é alfabetização.

Alfabetizar é uma questão de método? Há muitos professores que relatam usar mais de um método no processo de alfabetização e mesmo considerando um deles “melhor”, eles dizem que nem sempre funciona com toda a turma.

Você acredita que há um único método que seja o “modelo ideal” e que possa atender a heterogeneidade de uma sala de aula no Brasil de hoje?

Alfabetização não é uma questão de método. O grande equívoco na área de Alfabetização é que, historicamente, sempre se considerou que alfabetização era uma questão de método. Isso é um equívoco porque nenhuma outra disciplina – Geografia, História, Ciências e Matemática – trata de um só método.

São campos de conhecimento que o professor deve conhecer bem para saber como agir para transformar esse conhecimento em um objeto do qual o aluno possa se apropriar.

Nós temos mudado de método a todo momento ao longo das décadas e nunca conseguimos resolver nosso problema de alfabetizar todas as crianças ou, pelo menos, a maioria delas no tempo certo.

Os professores alfabetizadores sempre perguntam: que método usar? E eles são tão espertos e lúcidos que falam “Eu uso o método eclético”. Ou seja, eles misturam vários e tiram de cada um aquilo que está dando certo para seus alunos.

Existe um consenso internacional sobre um método que funcione para todo um país ou para a maioria deles? Ou isso varia muito de língua para língua?

Eu considero que nos outros países, pelo menos nos mais avançados, essa questão do método já está superada.

Como eu achava que também estava superada entre nós – até que esse governo começou a dar declarações extremamente perigosas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, houve por muito tempo a chamada “Guerra do Métodos”, que era fundamentalmente entre o método global e o método fônico, como se fossem duas coisas que se opusessem.

Praticamente, essa guerra já está vencida nos Estados Unidos. Há algum tempo não vejo nas bibliografias uma discussão sobre essa questão.

Na Finlândia, que é tida como uma das melhores nações do mundo na Educação, se você perguntar qual é o método que eles usam para alfabetizar, você não consegue uma resposta pra isso. Não é o método, a questão está em outro lugar.

Que lugar seria esse?

Com essa posição de achar que a questão era só de como fazer, deixou-se de lado o que é aprender a ler na escrita. Esse é o ponto importante.

As pesquisas e teorias a respeito de como a criança aprende um objeto – no caso, a língua escrita, extremamente abstrata – é um objeto cultural.

Isso se justifica também porque as teorias psicológicas e linguísticas demoraram a se voltar para essa questão dos processos cognitivos e linguísticos por meio dos quais a criança se apropria desse objeto que é a língua escrita.

A questão continua a ser tratada como se fosse uma questão da Pedagogia – e não é só da Pedagogia. Pedagogia entra depois que você tem fundamentos para definir como a criança aprende e, portanto, como eu, enquanto professora, vou ensinar.

Essa é a posição moderna e atual e devemos isso ao grande desenvolvimento da ciência linguística a partir do momento em que considerou também as teorias psicológicas, principalmente a Psicogênese, que é chamada incorretamente de Construtivismo e agora falam no “método construtivista”, há escolas que se dizem construtivistas… Isso distorce inteiramente a questão porque é uma teoria que virou um método.

A própria Emília Ferreiro [que desenvolveu a Psicogênese da língua escrita] reage bravamente contra isso, reforçando que ela não propõe um método. Ela estudou o desenvolvimento psicogênico da criança na interação com a língua escrita.

Mas isso não é suficiente.

Você tem as teorias cognitivas propriamente para entender quais são as alterações cognitivas que a criança desenvolve ou precisa desenvolver para entender a língua escrita, que depende primeiro da criança descobrir uma coisa que a humanidade levou milhares de anos para descobrir: que a gente pode registrar, visualizar os sons da língua, ao invés de desenhar.

Esse é o elemento fundamental da criança no processo de alfabetização.

Quando se fala em método fônico,  dá-se um salto enorme em cima de etapas que a criança precisa passar até esse ponto – que eu diria que é quase o ponto final – de relacionar a letra com o som.

Antes disso, ela precisaria ver que o som ou o que a gente fala pode ser transformado em tracinhos no papel. Esse é o ponto chave.

A maior parte das crianças que são classificadas como tendo “dificuldade de aprendizagem” na alfabetização – e eu tenho experiência pessoal de pesquisa – é de crianças que ainda não descobriram, não se deram conta porque ninguém as ajudou a ver que a gente escreve o som das palavras.

Quando você fala em método, você tem que considerar todas essas teorias linguísticas, psicogenéticas e articular porque a criança vivencia tudo isso ao mesmo tempo quando está aprendendo a língua escrita.

No meu último livro, “Alfabetização: a questão dos métodos”, eu acabo o livro falando isso: a questão não é ter método para alfabetização.

Undime

 

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