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Abuso sexual no futebol: um problema grave que os clubes precisam enfrentar

Abuso sexual no futebol

Enquanto milhões de pessoas prestam atenção no palco máximo do futebol, a Copa do Mundo na Rússia, aqui no Brasil centenas de clubes e escolinhas de futebol se deparam, diariamente, com uma disputa contra um adversário perigoso, dissimulado, manipulador e silencioso.

O abuso e a violência sexual contra crianças e adolescentes no âmbito do futebol é uma realidade perversa, antiga e ainda pouco enfrentada.

“Precisamos dizer isto que isto não é normal no esporte. Não é preciso passar por isto para alcançar o objetivo, o sonho“, analisa Rinaldo Martorelli, presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de São Paulo (Sapesp).

Há cerca de dois anos, a entidade lançou a campanha “Chega de abuso no esporte” e, desde então, tem dialogado com os clubes paulistas para tirar o incômodo assunto da invisibilidade.

A campanha nasceu após o ex-goleiro Alexandre Montrimas lançar o livro Futebol: sonho ou Ilusão, obra em que narra situações de abuso sofridas, entre outras passagem da dedicação de sua vida ao esporte mais popular do país.

“Num primeiro momento os clubes fecharam as portas (para debater o assunto). Alguns até hoje“, afirma Martorelli. No início, a estratégia foi visitar as escolinhas de clubes pequenos e, conforme os profissionais da assistência social eram permeáveis ao tema, os vínculos se estabeleciam e as portas eram abertas.

Tempos depois, quando o Corinthians decidiu discutir o assunto, a campanha começou a se expandir. O chamado Clube do Parque São Jorge tornou-se uma espécie de marco e, a partir dele, outros grandes clubes de São Paulo, como Palmeiras e Santos, passaram a abordar o tema internamente.

O clube alviverde chegou a pedir para o sindicato conversar, inclusive, com os pais dos atletas.

“O abusador é uma figura que deve ser extirpada do meio (do futebol)“, afirma Martorelli, sem poupar palavras. Segundo ele, os abusadores percebem quais são as famílias mais vulneráveis para agir.

“A ‘autoridade’ do abusador inibe o menino“, explica. O presidente do Sindicato dos Atletas destaca a dificuldade da vítima em perceber as nuances do tema, em falar sobre o problema, pois reconhecer a situação de assédio causa enorme desconforto.

“Quando você detalha tecnicamente, as pessoas percebem que foram assediadas. Quando os meninos começam a ter contato com o assunto, percebem que isto acontece com eles também, e assim ligam o alerta. Estamos destrinchando o que ocorre para que isso seja extirpado ou minimizado“, diz Martorelli.

Como exemplo da falta de estrutura dos clubes, ele cita problemas básicos com a alimentação inadequada oferecida aos jovens, fato que abre a possibilidade de acontecer um “convite” mal intencionado para almoçar.

A própria posição hierárquica de treinadores e preparadores, pessoas que muitas vezes decidem se o adolescente joga ou não, se passa no teste ou é dispensado, colabora para que o abuso aconteça.

Dois anos após o início da campanha “Chega de abuso no esporte“, o presidente do Sindicato dos Atletas diz já ser possível perceber que diminuiu o desconforto em tratar do assunto.

“A coisa tem mudado. Há a necessidade de discutir o tema“, diz. Ao contrário de dois anos atrás, Martorelli avalia que, hoje, 80% das portas se abriram. Entre os grandes clubes do estado, apenas o São Paulo ainda segue “fechado” para o projeto do sindicato, por razões que Martorelli acredita serem “outras“, sem entrar em detalhes.

Seja como for, o presidente do Sindicato dos Atletas acredita que o recente escândalo de abuso sexual na ginástica brasileira e o caso envolvendo um jovem atleta do Santos, contribui para que os responsáveis abram os olhos.

“Isso tudo muda a perspectiva, a resistência mudou. Como o assunto é público, se você não quer falar, então algum problema tem. Hoje tudo mostra que nossa preocupação estava correta.”

Com formação jurídica e atualmente estudando psicanálise, Martorelli explica que a estratégia do Sindicato agora é propor a elaboração de um protocolo para os clubes “conhecerem o caminho” do problema e saberem como agir.

Ele afirma que muitos clubes, cientes da própria responsabilidade com seus atletas, ainda preferem “sentar em cima” de uma denúncia, ao invés de tomar uma atitude.

Encontrar um modo de fiscalizar como os clubes esportivos tratam os pequenos “atletas” que frequentam seus espaços é uma das tarefas que move Itamar Batista Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil, ONG especializada no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.

“Não consigo entender como essas organizações que trabalham diretamente com crianças e adolescentes não têm um programa de atendimento para elas. Isso pode ser em qualquer modalidade esportiva“, destaca.

Na opinião dele, os clubes deveriam ter seus projetos cadastrados no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que por sua vez acompanharia as atividades desenvolvidas com as crianças, tal como acontece com organizações de educação e ensino complementar.

“Se não tenho o registro das atividades feitas com as crianças e adolescentes, não consigo propor uma fiscalização, nem do Ministério Público e nem do conselho tutelar, pra saber se de fato está sendo seguido aquele programa aprovado no CMDCA“, explica.

Mas para Itamar Gonçalves, esse é apenas um aspecto do problema. O outro, e talvez o mais importante, seja a criação de programas de prevenção como base para o enfrentamento.

“Os clubes e instituições também ficam fragilizados por não haver uma política de prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes. Isso daria segurança para o clube e também às famílias que têm seus filhos atendidos.”

Segundo ele, pesquisas nacionais e internacionais comprovam que pessoas interessadas em se aproveitar de crianças e adolescentes vão justamente procurar esses espaços de convívio.

Sem programas de prevenção, a atuação se resume a denúncias de casos já acontecidos. Para evitar agir só depois da violência consumada, o gerente de advocacy da Childhood Brasil propõe que os clubes esportivos tenham um código de conduta ética, o qual definiria como a criança é recebida no local e qual o papel de cada um dos profissionais envolvidos.

Ele também defende que os profissionais do clube — “da portaria até os gestores” — recebam orientações sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes, com a postura clara do clube de que tal crime não será tolerado.

Essa orientação abrangeria inclusive os fornecedores da instituição, seja da área de alimentação ou de equipamentos esportivos, todos inseridos nesse código de conduta ética a enfatizar que abuso sexual é crime.

Se orientar os profissionais adultos é um caminho, outro tão importante quanto, na opinião de Itamar Gonçalves, é educar as próprias crianças, trabalhando com elas a ideia de medidas autoprotetivas e apresentando os possíveis canais de denúncia.

“Atuamos muito na prevenção secundária, ou seja, já aconteceu, e nós então formamos profissionais para acolher essa criança. Porém não vemos nada, ou quando vemos são ações bastante pontuais, para que esse crime não aconteça.

Prevenir é o melhor investimento que temos, seja por complicações na vida adulta ou pela própria situação do clube que fica exposto a esse tipo de problema“, explica. “Meu grande sonho é que alguma organização chama-se esse grande pacto.”

A criação de uma ouvidoria voltada exclusivamente para os atletas complementaria as possíveis medidas a serem adotadas para que a violência e o abuso sexual nos clubes esportivos não aconteça.

“Todas essas ações juntas, ajudam no sentido da prevenção“, define. Nos casos envolvendo crianças e adolescentes, o gerente de advocacy da Childhood Brasil enfatiza que, quanto antes se conseguir responsabilizar o agressor e tirar a vítima da situação de violência, a chance dela superar o trauma é muito maior do que se guardar segredo para, quem sabe, um dia ter coragem de fazer a revelação.

“A violência sexual não deixa provas, por isso a voz da criança ou do adolescente é extremamente importante. A violência quando ocorre é no âmbito privado, então ou a criança fala sobre o que está acontecendo ou aconteceu, ou fala o adulto que cometeu“, diz Itamar Gonçalves, considerando que a segunda alternativa é pouco provável.

Denúncias de violência e abuso sexual costumam acontecer muitos anos após o fato.

E mesmo se fossem feitas depois de alguns dias ou semanas, normalmente não deixam marcas físicas. Todavia, há situações que ajudam a elucidação do crime, como a lembrança de locais, cheiros e detalhes que só quem realmente sofreu a violência poderia saber.

Outro elemento que costuma ajudar a responsabilizar o agressor é quando a vítima confidencia o que está sofrendo com algum colega do clube ou equipe.

Em alguns casos, essa confidencia está relacionada a tentativa de saber se o abuso acontece só com ela ou se é uma prática que atinge outras pessoas.

“É difícil (a prova), por isso insisto no trabalho de prevenção, por isso é importante dar voz às crianças e, quando acontecer, acolher a denúncia“, insiste Itamar Gonçalvez, lembrando a lei que recentemente criou o mecanismo do “depoimento especial”.

“Se a criança disser não, no mundo do esporte, ela tem grande chance de não passar por isto. Ela tem que saber que pode dizer não, e que não precisa ceder ao jogo de sedução do adulto, mas ela tem que estar preparada, e é isto que chamamos de práticas auto protetivas.”

Decidir se condena ou absolve alguém acusado de cometer violência sexual é tarefa que faz parte da vida do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Reinaldo Sintra.

“São dos processos mais difíceis de serem julgados, porque normalmente resta a palavra da vítima e a palavra do acusado“, afirma.

“Se não houver uma violência física expressiva, ela desaparece em dias. Se você tem um abuso sexual com penetração, e a pessoa deixa o esperma dentro da pessoa violentada, com o passar dos dias, o organismo expele e você não vai conseguir fazer um espermograma, então não deixou marca nenhuma.”

Arranhões, roxos ou marcas de apertão também costumam desaparecer em poucos dias. A violência e o abuso sexual normalmente são crimes que acontecem sem deixar testemunha.

Apesar da dificuldade, Reinaldo Sintra explica que há formas de se chegar a uma conclusão independente da palavra da vítima ou material genético.

São indícios e estudos psicológicos que podem ajudar o juiz a formar a opinião de que a vítima realmente sofreu alguma coisa.

“Para a pessoa que é abusada ou violentada, tal agressão é inesquecível e normalmente gera consequências que perduram, não são físicas, são psicológicas, mas um bom profissional pode avaliar que a vítima apresenta reflexos na sua postura, na forma de ser, de agir e interagir, que pode comprovar que efetivamente alguma coisa aconteceu. Existem sinais clássicos que podem dizer que aparentemente a vítima não está mentindo porque ela vivencia, internamente, conflitos decorrentes de uma violência ou abuso sexual“, explica o desembargador do TJ-SP.

Em outro exemplo, diz que podem haver testemunhas, pessoas que na época do fato, a vítima relatou o ocorrido.

Você tem formas (de provar), mas é uma prova extremamente difícil de ser feita e não precisa ter muito tempo, pode ter acontecido ontem, e hoje normalmente você tem a palavra da vítima e do acusado, e você tem que decidir.

É um processo complexo e muito difícil de ser julgado. A pena é altíssima e as consequências para quem é acusado são severas, e pra quem é acusado injustamente vai guardar isso pro resto da vida.

Se é preso, vai ser marcado dentro do sistema penitenciário. Se é uma pessoa casada, provavelmente vai ter problemas. Se é pai, vai ter dificuldade de relacionamento com os filhos.

É seríssimo para quem sofreu o abuso, e é seríssimo para quem é acusado injustamente. Então a responsabilidade do juiz é muito grande.

O desembargador Reinaldo Sintra chama atenção para o fato dos adultos que cuidam das crianças exercerem autoridade sobre elas, serem vistos como pessoas que merecem respeito e obediência, como é o caso do técnico ou do preparador físico.

Essa influência acaba sendo um componente significativo que facilita a possibilidade de abuso.

“É aí que reside o grande perigo. Se são pessoas interessadas em condutas não aceitas, como o relacionamento sexual, você vai ter o facilitador que é justamente essa ‘submissão’ da criança ou adolescente àquela pessoa“, afirma.

Se o jovem depende do técnico para ser colocado como titular, por exemplo, ele está numa posição de submissão.

“Esse adulto passa a ter um poder que, às vezes, faz com que a criança ou o adolescente não consiga resistir a determinados convites ou se submeta a aceitar determinadas condutas que caracterizam o abuso. Esse é o grande perigo. A facilidade que esses ambientes fornecem a quem pretende fazer esse mal às crianças e adolescentes.”

Ao contrário do gerente de advocacy da Chilhdood Brasil, Itamar Gonçalves, o desembargador Reinaldo Sintra não defende a necessidade de controle externo dos clubes.

Para ele, a atuação da Justiça, do Ministério Público ou do conselho tutelar, deve ocorrer apenas em situações onde exista risco real para a criança ou adolescente.

“Quando a situação não aparenta risco, o Estado deve ficar de fora, não deve atuar interferindo em todas as atividades de uma vida social“, opina Sintra.

Essas agremiações esportivas, escolas de futebol, não lidam com crianças em situação de risco e não geram risco para essas crianças. Por isso entendo que não haveria necessidade de uma interferência do Estado neste tipo de atividade.

Ele interfere quando há uma denúncia de que naquele local houve um desvirtuamento, então é preciso uma ação do Estado para recompor a situação, para afastar o risco, mas não que eu deva estar presente para fiscalizar aquela atividade. Eu não vejo de que forma a fiscalização poderia ser feita num programa de um clube ou escola de futebol.”

Como exemplo contrário, o desembargador cita o caso de um projeto cujo objetivo é lidar com adolescentes em conflito com a lei, situação que, ele acredita, tem outro tipo de trabalho e de preocupação e, neste caso, o Estado deve controlar.

Ao invés de uma interferência do Estado, Reinaldo Sintra pondera ser melhor a Federação Paulista de Futebol determinar que toda escolinha tenha uma equipe de formação psicológica e social para acompanhar as crianças dentro da proposta esportiva, para saber se está sendo exigida demais, se está se afastando da família ou se ali existe um problema de relacionamento que precise de determinada providência. Caso haja alguma notícia de abuso ou violência sexual, então poderia haver interferência.

Por outro lado, o desembargador do TJ-SP concordo com o gerente de advocacy da Childhood Brasil no que se refere ao próprio clube ter órgãos de fiscalização interna e controle na contratação dos profissionais.

Reinaldo Sintra sugere que os clubes criem um acompanhamento psicológico para os jovens que exercem a atividade física, uma pessoa que seja referência fora da equipe e que, assim, a criança ou o adolescente possa conversar e contar algo errado que esteja acontecendo.

Você tem mecanismos próprios que não são de força fiscalizatória, mas de acompanhamento e ajuda na visão de problemas. Quem pretende ter esse tipo de atividade deve se proteger para que esses fatos não ocorram.

Há consequências na área do direito penal, civil e administrativo, explica o desembargador. Para ele, o importante é que os adultos criem condições para que a criança tenha em quem confiar, uma pessoa capaz de auxiliar se acontecer uma situação de abuso.

“É importante que a gente trate o abuso sexual não como uma coisa natural, mas como um assunto que seja conversado para que as pessoas não tenham medo, receio e desconhecimento.”

Por fim, Reinaldo Sintra pondera ser preciso ter cuidado para não transformar o abuso sexual numa “caça às bruxas“. Na visão do desembargador, há que se ter cautela para prevenir, sem coibir manifestações de carinho.

“Um abraço segue sendo uma coisa boa, uma criança sentar no colo de um adulto pode ser uma coisa boa, uma criança receber carinho de um adulto pode ser uma coisa boa. Então não olhar tudo com sexualidade, senão vamos perder uma característica humana importante que é a afetividade.

Temos que conversar com cautela para que a gente não faça um bicho de sete cabeças com a afetividade, que é fundamental e necessária. A afetividade é uma coisa legal, então temos que ter cuidado para não transformar tudo em abuso“, analisa.

Entre a defesa da afetividade e a proteção da criança, o Brasil ainda procura encontrar o melhor meio de vencer esse jogo.

Luciano Velleda

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