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Descendentes de escravos continuam lutando pelo direito a terra no Brasil

Rejane Maria da Costa posa para foto em seu quintal, em Búzios

Rejane Maria da Costa se desentendeu com vizinhos e enfrentou repetidas ameaças de morte durante sua batalha pelo reconhecimento da comunidade onde seus ancestrais habitavam, mas continua determinada a manter a luta pelos direitos de sua pequena comunidade de descendentes de escravos.

“Não vamos desistir”, disse a mulher de 42 anos, de renda limitada, na sua casa em Maria Joaquina, um bairro pobre do balneário de Búzios, a cerca de 170 quilômetros do Rio de Janeiro. “Não posso ter medo. Não estou lutando só por algo para mim. Estou lutando para algo para todo nós.”

Quando o Brasil aboliu a escravidão, há 130 anos, pelo menos 4 milhões de escravos tinham sido trazidos à força da África para trabalhar em lavouras de cana-de-açúcar e em outros setores da economia do país. Muitos dos escravos que conseguiam escapar das condições cruéis de trabalho construíram acampamentos e novas casas ao redor do país, que ficaram conhecidos como quilombos.

A luta por moradia segura de cerca de 16 milhões de quilombolas, como os moradores dessas comunidades são conhecidos, faz parte da complexa questão fundiária brasileira. Problemas relacionados a registros formais e titulação de territórios geram uma enorme tensão e muitas vezes resultam em conflitos sobre direitos de propriedade.

Herança amarga

Para os quilombolas, a herança amarga da escravidão ainda persiste. O Quilombo Maria Joaquina é o lar de 87 famílias descendentes de antigos escravos, e Rejane lidera os esforços para obter os documentos que provem seus direitos sobre a terra onde moram. É uma tarefa complicada e também perigosa.

No ano passado, 14 quilombolas foram assassinados no Brasil, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), e seis deles eram ativistas.

Rejane conta que recebeu ameaças de morte que ela acredita terem vindo de um vizinho que reivindica a mesma terra. Ela ainda evita sair à noite e diz estar sempre alerta. “Para minha própria proteção, me disseram para sumir por um tempo”, disse.

A Constituição brasileira estabelece que quilombolas têm direito permanente e não transferível à terra que ocupam historicamente, mas o processo para obter o título é longo e burocrático. Maria Joaquina foi oficialmente reconhecido como um quilombo em 2011, mas o processo de titulação está emperrado no governo desde 2013.

O orçamento do governo para a certificação dos direitos à terra dos moradores de quilombos foi reduzido em 94% nos últimos cinco anos. As autoridades dizem que não há recursos suficientes para custear os estudos antropológicos em campo ou para pagar as indenizações necessárias para os despejos de não-quilombolas.

Disputa

Enquanto isso, a falta de clareza legal sobre a propriedade da terra causou racha entre os vizinhos. Diversos moradores do quilombo afirmam que entraram em confronto com o cuidador de uma fazenda que fez sua própria reivindicação de uma porção da terra do quilombo.

Os quilombolas acusam o fazendeiro de bloquear o acesso à floresta onde eles costumavam coletar sementes de aroeira, uma importante fonte de renda para a comunidade. O fazendeiro nega qualquer conflito, mas contesta o direito dos quilombolas às terras que ocupam há gerações, alegando falta de documentação.

A professora Nilma Acciolli, historiadora que estuda os 10 quilombos da região, disse que o Quilombo Maria Joaquina foi estabelecido como uma fazenda de mandioca há cerca de 200 anos, usando trabalho escravo.

“Essa área era predominantemente ocupada por negros desde o século 19”, disse. “Além de serem descendentes de escravos, eles estão lá vivendo, plantando, ocupando a terra há muito tempo. Se você mora lá e mantém a terra produtiva, você tem o direito a ela.”

Para Rejane, a perspectiva de finalmente ter o tão sonhado título em suas mãos é motivação suficiente para continuar lutando. “Imagino o dia em que o título sair. Vai estar chovendo muito e nós vamos estar na chuva, cantando, dançando, pulando, comemorando porque aí, sim, a gente vai estar realmente liberto.”

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