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Com ‘Chão de Peixes’, Lúcia Hiratsuka volta à infância

SAO PAULO - SP / 31.01.2018 / ILUSTRADORA LUCIA HIRATSUKA / CADERNO 2 Lucia Hiratsuka, ilustradora e escritora infantil. Lucia lanca o livro infantojuvenil 'Chao de peixes' em fevereiro. FOTO AMANDA PEROBELLI / ESTADAO

Até entrar na escola, aos 7 anos, Lúcia Hiratsuka só falava japonês. Tudo o que ela sabia do mundo tinha como ponto de partida o país que os avós deixaram em 1925 em busca de uma situação melhor, e para onde imaginavam voltar um pouco depois, já mais ricos. Mas a vida foi encontrando seu lugar no interior de São Paulo, em meio a cafezais, bichos-da-seda e caquis, e a família foi crescendo.

Uma das principais ilustradoras brasileiras, dona de um delicado traço, Lúcia nasceu no sítio Asahi, em Duartina, em 1960, e cresceu ouvindo as histórias da avó, vendo a caprichada caligrafia do avô e lendo os livros – todos muito ilustrados – que chegavam do Japão para a família. Ali, antes mesmo de entrar na escola rural, distante quatro quilômetros de casa, caminho que ela percorria a pé, a menina já sabia o que queria fazer: estudar desenho no Japão, se não encontrasse um professor por aqui.

 Aos 10, ela e os irmãos que já estavam em idade escolar se mudaram com os avós para Duartina. Aos 15, veio para São Paulo porque uma tia disse que na Capital ela encontraria tudo. Fez o então colegial – ainda pensando em desenhar. Antes de entrar na faculdade de Belas Artes, essa mesma tia descobriu uma escola de desenho de moda.
Ela, que já sabia costurar, arrumou o primeiro emprego numa loja de tecidos da Rua 25 de Março, onde criava modelos para os clientes. Tinha 17. A faculdade, ela pagou com a ajuda de um emprego no Banco do Brasil. E, ali, durante o curso, se deparou com a primeira frustração: ela queria, sim, desenhar, mas descobriu que queria, sobretudo, contar histórias.
Isso tudo Lúcia vai lembrando num início de tarde no fundo da NoveSete, uma simpática livraria especializada em literatura infantil e juvenil na Vila Mariana. Ela tem em mãos o boneco de seu novo livro, uma versão ainda quase artesanal de Chão de Peixes, que chega às prateleiras na próxima semana pela Pequena Zahar e nos remete ao tempo de brincadeiras no quintal, de fruta colhida do pé e muita história. Um tempo de coisas simples.

Para ilustrá-lo, ela escolheu a técnica japonesa sumiê. Na verdade, o livro nasceu como uma homenagem ao mestre Massao Okinaka, que lhe ensinou que esta arte é movimento, é a captura do essencial – do que sentimos como essencial. É simplicidade e sentimento. “Ele falava que nenhuma pincelada pode ser sem sentimento. Mas, para esse sentimento aparecer, você não pode titubear”, conta a ilustradora que, volta e meia, visita sua infância para criar histórias.

Em Chão de Peixes, encontramos o quintal de Lúcia, ou melhor, o quintal de sua memória. Coelhos, formiguinhas, galinhas ciscando, uma libélula, grilos, vaga-lumes, a vaca num “eterno domingo”, a fogueira na qual assavam batata-doce. Tudo registrado com delicadeza por imagens, brancos e textos – um poema, uma frase, às vezes um haicai. Antes de entrarmos em seu universo, a dedicatória da autora: “Para você encontrar a vagareza de um caracol, a simplicidade dos capins e a liberdade dos peixes”. Dali, somos levados ao poema Quintal: “Na lua do meu quintal, tinha dois coelhos/ Que faziam bolinhos./ E eu/ esperando…/ Mas lá do alto/ Só vinha a chuva. / Será que os bolinhos eram de chuva?”. E o passeio segue em cada detalhe.

O peixe do título vem, possivelmente, do início de tudo. Reza a lenda que, certa vez, sua avó desenhou um peixe no chão do sítio e ela ficou encantada.

Lúcia começou sua carreira recontando as lendas japonesas que ouvia dessa mesma avó, a Orie que anos atrás foi homenageada com um belo livro que leva o seu nome e que nos conta sobre a infância dela no Japão. Quando começou a pensar na direção que daria para a sua obra autoral, ela passou os olhos pela livraria e ficou com a impressão de que tudo já havia sido feito. “Entendi que não adiantava eu ficar olhando para fora, que tinha que buscar alguma coisa dentro de mim que me motivasse a contar”, explica.

Foi em sua infância e nas histórias que outras pessoas contavam dos tempos de criança que ela encontrou essa matéria-prima que ela transforma ora em livro para crianças já crescidas, como é o caso de Os Livros de Sayuri (SM), que remete a um fato vivido por sua mãe e por tantas famílias de origem japonesa que, vivendo no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, tiveram de enterrar livros, tema da obra, e não podiam falar japonês. Ou para crianças menores. Dois exemplos: o próprio Orie (Zahar) e o recente O Caminhão (Cortez), que mostra a ansiedade de uma família pela chegada do caminhão que, nos tempos de Lúcia, era uma das poucas opções de lazer e uma alegria quando ele montava seu cinema no sítio.

Lúcia vê algo em comum em sua obra – para além do cenário rural. “Encontramos sempre um personagem em transformação, espantado com alguma coisa ou diante de algum conflito geralmente simples”, explica. No caso de Sayuri, a situação é mais complicada: a garota precisa encontrar uma forma de poder estudar em plena guerra.

E por que a infância? O que ela significou para autora? “A infância foi para mim um período de muitas brincadeiras e experiências incríveis, mas também de muita inquietação. Desde essa época, eu fazia perguntas a respeito do sentido da vida, qual seria o meu papel no mundo, quais eram os meus sonhos, por que nasci naquele lugar. E as angústias dos adultos também me afetavam”, responde. E completa: “Hoje percebo que todas as questões da minha infância são as minhas verdadeiras questões. E ela é, para mim, como um mapa. Se eu me perco, busco encontrar o caminho lembrando dos sonhos, dos anseios que povoaram aqueles tempos”.

 

 

Maria Fernanda Rodrigues

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