Até entrar na escola, aos 7 anos, Lúcia Hiratsuka só falava japonês. Tudo o que ela sabia do mundo tinha como ponto de partida o país que os avós deixaram em 1925 em busca de uma situação melhor, e para onde imaginavam voltar um pouco depois, já mais ricos. Mas a vida foi encontrando seu lugar no interior de São Paulo, em meio a cafezais, bichos-da-seda e caquis, e a família foi crescendo.
Uma das principais ilustradoras brasileiras, dona de um delicado traço, Lúcia nasceu no sítio Asahi, em Duartina, em 1960, e cresceu ouvindo as histórias da avó, vendo a caprichada caligrafia do avô e lendo os livros – todos muito ilustrados – que chegavam do Japão para a família. Ali, antes mesmo de entrar na escola rural, distante quatro quilômetros de casa, caminho que ela percorria a pé, a menina já sabia o que queria fazer: estudar desenho no Japão, se não encontrasse um professor por aqui.
Para ilustrá-lo, ela escolheu a técnica japonesa sumiê. Na verdade, o livro nasceu como uma homenagem ao mestre Massao Okinaka, que lhe ensinou que esta arte é movimento, é a captura do essencial – do que sentimos como essencial. É simplicidade e sentimento. “Ele falava que nenhuma pincelada pode ser sem sentimento. Mas, para esse sentimento aparecer, você não pode titubear”, conta a ilustradora que, volta e meia, visita sua infância para criar histórias.
Em Chão de Peixes, encontramos o quintal de Lúcia, ou melhor, o quintal de sua memória. Coelhos, formiguinhas, galinhas ciscando, uma libélula, grilos, vaga-lumes, a vaca num “eterno domingo”, a fogueira na qual assavam batata-doce. Tudo registrado com delicadeza por imagens, brancos e textos – um poema, uma frase, às vezes um haicai. Antes de entrarmos em seu universo, a dedicatória da autora: “Para você encontrar a vagareza de um caracol, a simplicidade dos capins e a liberdade dos peixes”. Dali, somos levados ao poema Quintal: “Na lua do meu quintal, tinha dois coelhos/ Que faziam bolinhos./ E eu/ esperando…/ Mas lá do alto/ Só vinha a chuva. / Será que os bolinhos eram de chuva?”. E o passeio segue em cada detalhe.
O peixe do título vem, possivelmente, do início de tudo. Reza a lenda que, certa vez, sua avó desenhou um peixe no chão do sítio e ela ficou encantada.
Lúcia começou sua carreira recontando as lendas japonesas que ouvia dessa mesma avó, a Orie que anos atrás foi homenageada com um belo livro que leva o seu nome e que nos conta sobre a infância dela no Japão. Quando começou a pensar na direção que daria para a sua obra autoral, ela passou os olhos pela livraria e ficou com a impressão de que tudo já havia sido feito. “Entendi que não adiantava eu ficar olhando para fora, que tinha que buscar alguma coisa dentro de mim que me motivasse a contar”, explica.
Foi em sua infância e nas histórias que outras pessoas contavam dos tempos de criança que ela encontrou essa matéria-prima que ela transforma ora em livro para crianças já crescidas, como é o caso de Os Livros de Sayuri (SM), que remete a um fato vivido por sua mãe e por tantas famílias de origem japonesa que, vivendo no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, tiveram de enterrar livros, tema da obra, e não podiam falar japonês. Ou para crianças menores. Dois exemplos: o próprio Orie (Zahar) e o recente O Caminhão (Cortez), que mostra a ansiedade de uma família pela chegada do caminhão que, nos tempos de Lúcia, era uma das poucas opções de lazer e uma alegria quando ele montava seu cinema no sítio.
Lúcia vê algo em comum em sua obra – para além do cenário rural. “Encontramos sempre um personagem em transformação, espantado com alguma coisa ou diante de algum conflito geralmente simples”, explica. No caso de Sayuri, a situação é mais complicada: a garota precisa encontrar uma forma de poder estudar em plena guerra.
E por que a infância? O que ela significou para autora? “A infância foi para mim um período de muitas brincadeiras e experiências incríveis, mas também de muita inquietação. Desde essa época, eu fazia perguntas a respeito do sentido da vida, qual seria o meu papel no mundo, quais eram os meus sonhos, por que nasci naquele lugar. E as angústias dos adultos também me afetavam”, responde. E completa: “Hoje percebo que todas as questões da minha infância são as minhas verdadeiras questões. E ela é, para mim, como um mapa. Se eu me perco, busco encontrar o caminho lembrando dos sonhos, dos anseios que povoaram aqueles tempos”.
Maria Fernanda Rodrigues