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Filme revela história da vida de Cora Coralina num misto de documentário e ficção

Cora Coralina

Essa é a história da menina feia da Ponte da Lapa. Da menina triste e nervosa, amarela de rosto empalamado e pernas moles, que tinha duas irmãs lindas e que poderia ter sido amada por ser a caçula, mas então veio mais uma e ocupou seu lugar. Ficou sozinha, fechada em seu mundo imaginário. A menina é Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nascida na cidade de Goiás em 1889 e rebatizada, por ela mesma, já aspirante a poeta, como Cora Coralina.

Ao longo de seus 95 anos de vida – de muito trabalho, garra e coragem e de alguma alegria –, Cora carregou essa menina ao seu lado, e quando começou a escrever mais sistematicamente e a publicar seus livros, já mais velha, lá estavam a garota, a casa da infância, que foi a casa da velhice, as memórias – tudo o que ela viu, sentiu, viveu neste quase um século, e que não foi pouco.

A história da poeta, uma doceira de mão cheia, é contada em Cora Coralina: Todas as Vidas, que chega aos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói, Brasília e Goiânia nesta quinta-feira, 14.

Com direção de Renato Barbieri e produção de Marcio Curi, morto em 2016, o filme teve uma primeira exibição no Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), em 2015, na cidade natal da poeta, e foi apresentado em outros festivais. Agora, poderá ser visto pelos numerosos leitores de Cora, uma das escritoras mais queridas do País.

Não se trata de uma cinebiografia tradicional tentando dar conta de uma rica história de vida, o que seria impossível. É um docfic em que vemos, sim, atrizes no papel de Cora, mas não numa narrativa linear ou cronológica. Walderez de Barros, Teresa Seiblitz, Camila Márdila e Maju Souza passeiam pela tela, pelos lugares de Cora, em silêncio ou recitando seus poemas. E tem uma quinta Cora, a Cora menina de 5 anos, interpretada por Camila de Queiroga Salles que está por ali, entre as cenas, brincando com a terra, correndo entre árvores centenárias, regando o jardim – como sua trisavó fez muitos e muitos anos antes naquele mesmo cenário.

Em alguns momentos o filme vai para o estúdio, e ouvimos essas atrizes e ainda Zezé Motta e Beth Goulart lendo os poemas de Cora. Há também a parte documental, com depoimento de pessoas que conviveram com ela, como a amiga Antolinda Borges, para quem Cora foi “uma guerreira”, e a filha Vicência, de pesquisadores de sua obra e de seus biógrafos Rita Elisa Seda e Clóvis Carvalho Britto, autores de Raízes de Aninha (Ideias e Letras), obra que inspirou “livremente” o filme.

Quando Cora Coralina atravessou a Ponte da Lapa em 1956, quatro décadas depois de deixar a casa da infância em busca do seu destino, como escreveu, ela não pretendia ficar. Voltou para resolver problemas burocráticos e “para matar saudades velhas e carregar saudades novas”, como a ouvimos contar no filme.

Filme retrata a vida de Cora Coralina com poemas e histórias
A volta de Cora à casa da infância é a cena mais bonita, na opinião de Walderez Foto: Tucuman Filmes

Deixou filhos, netos e bisnetos em São Paulo. “Longe do Rio Vermelho, fora da Serra Dourada, distante dessa cidade, não sou nada, minha gente”, ela escreveu depois. E ficou lá, na velha casa deserta, domando a memória que voltou com toda a força, como ressalta o biógrafo Clóvis Carvalho Britto, até morrer, em 1985, aos 95 anos.

Essa volta é a cena mais bonita para Walderez de Barros. É a Cora de 58 anos que está ali, e é Walderez que a interpreta neste retorno. Mas não só ela – e este é um dos achados do diretor Renato Barbieri na opinião da atriz. “Quando ela está voltando para Goiás Velho e passando pela ponte, ele filma comigo, com a Tereza, com outras. Ela está voltando depois de 45 anos para aquela casa, mas carrega todas as vidas dentro dela, inclusive a que virá”, diz Walderez ao Estado.

Essas vidas todas são mencionadas nos depoimentos, que vão dando pistas de sua longa caminhada – e do que fez em cada pouso. O início e o fim são na cidade de Goiás. Mas Cora passa alguns anos na Fazenda Paraíso. Depois, deixa a região com o futuro marido rumo a Jaboticabal. Com os filhos crescidos, a família vai para São Paulo – e então ela se vê viúva vendendo livros para a José Olympio de porta em porta. De lá, segue para Penápolis, onde entra para a Ordem Terceira de São Francisco. Em Andradina, faz de seu sítio pousada de boiada.

Cora levou 20 anos para conseguir comprar de volta a casa velha da ponte – o dinheiro que ganhava com os doces que fazia, usado para as contas do dia a dia, para ajudar os necessitados e para pagar a casa, era guardado no colchão. A doceira Cora virou lenda, e ao longo dos anos milhares de turistas bateram à sua porta atrás dos famosos doces glaceados. “Fiz os melhores doces da minha cidade e talvez do meu país”, ouvimos Cora dizer com sua voz orgulhosa e já fraquinha. Vendia os doces, mas não perdia a chance de mostrar aos visitantes seus poemas.

Com a vida encaminhada, decide cuidar de seus escritos. Quer publicar Poemas dos Becos de Goiás e Outras Eistórias Mais, e, como lembra sua filha Vicência, ela ingressa num curso de datilografia. E datilografa seus manuscritos e os envia à José Olympio. Aos 75 anos, em 1965, estreia na literatura .

Mais tarde, em 1980, um texto de Carlos Drummond de Andrade publicado pelo Jornal do Brasil apresenta Cora Coralina a novos leitores e sua fama cresce.

Atriz experiente, Walderez de Barros conta que ficou nas nuvens com o convite para interpretar a poeta, teve medo e se acalmou quando leu o roteiro e entendeu a intenção do diretor: ela não seria a única Cora – porque se fosse, e se fosse para retratá-la de forma realista, não aceitaria. “Seria demais”, diz.

Atuar onde a poeta viveu, estar em sua casa, que hoje é um museu, ver seus objetos, a cadeira onde ela sentava, o fogão onde fazia seus doces, ela conta, foi muito emocionante. E relembra que se aproximou disso tudo com cuidado. “Tenho muito respeito por esses lugares mágicos. Eles conservam a energia da pessoa que esteve lá. Eu me aproximo com cuidado para não atrapalhar essa energia. Foi muito emocionante principalmente por eu saber que estava participando de um filme com essa complexidade, que não estava simplesmente contando uma história. Biografia… biografia você dá uma googlada e fica sabendo”, diz.

Para a atriz, Cora foi uma mulher genial e pé no chão, que narrou sua vida em seus poemas. Ela completa: “Quem faz um trabalho como fazer um doce, mexer aquele tacho, é uma pessoa de verdade. E você lê a poesia dela e pensa: que força tem essa mulher. Ela era fantástica”.

Estadão

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