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Por que 2017 está sendo visto como ano da ‘revolução psicodélica’ na saúde

Imagem de LSD; após décadas de 'portas fechadas' para estudos, pesquisadores avançam na investigação sobre uso terapêutico de psicodélicos

O ano de 2017 será lembrado como marco do “renascimento psicodélico”, pela derrubada de barreiras à pesquisa e ao uso terapêutico de drogas psicoativas como ayahuasca, LSD e ecstasy.

A avaliação é do neurocientista Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e um dos principais pesquisadores sobre o tema no país.

Como evidências desse suposto “renascimento”, Ribeiro cita o crescimento de público (e de órgãos interessados em patrocinar pesquisas) no principal encontro do setor, o avanço de estudos clínicos e a ampliação das pesquisas no Brasil.

A expressão usada por Ribeiro reflete o slogan do último congresso da ONG Maps (Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos, em inglês), que em abril reuniu nos Estados Unidos cerca de 3 mil pessoas de 40 países. Financiada por doadores, a entidade pesquisa e promove o uso médico de drogas psicodélicas desde 1985.

Em geral, todos os participantes compartilhavam da crença no potencial das drogas psicodélicas para curar doenças, mas Ribeiro lembra como o perfil do público mudou desde o primeiro encontro da associação, em 2011.

“O primeiro congresso não passou de 300 pessoas, com muitos hippies-chic da Califórnia e poucos cientistas. Neste ano havia muitos pesquisadores renomados, imprensa internacional e fundações e empresas interessadas em financiar pesquisas”, afirmou o pesquisador à BBC Brasil.

Maps 2017Direito de imagemREPRODUÇÃO/MAPS
Image captionAmbiente do congresso da Maps de 2017: público de evento foi de hippies a empresas interessadas em financiar pesquisas

A antropóloga Beatriz Labate, autora de livros sobre o uso da ayahuasca em rituais religiosos, participou do encontro e endossa a avaliação de Ribeiro.

“A conferência foi fantástica, havia uma sensação de ter sido histórica. Os estudos estão mostrando cada vez mais uma forte evidência dos potenciais terapêuticos dos psicodélicos, e há um certo clima de que pode haver uma transformação real da legislação de drogas”, afirma Labate, professora visitante do Centro de Pesquisa e Estudos de Pós-Graduação em Antropologia Social (Ciesas) de Guadalajara (México).

MDMA e estresse pós-traumático

Um dos pontos altos do encontro foi a apresentação de resultados de estudos do uso de MDMA, o princípio ativo do ecstasy, para tratamento de estresse pós-traumático. Em um vídeo, um veterano da guerra do Iraque relatou benefícios de experiências sob efeito da droga.

No ano passado, os EUA autorizaram a última etapa de estudos do emprego da substância para tratar o transtorno, um distúrbio de ansiedade que costuma acometer pessoas que tenham sido vítimas ou testemunhas de situações violentas e traumáticas.

Financiada pela Maps, a atual fase de estudos com humanos, que deve incluir o Brasil, é a última antes de uma eventual aprovação do MDMA como droga de prescrição pela FDA, a agência americana que regula medicamentos e alimentos. A expectativa da ONG é que a terapia com a substância seja autorizada nos EUA até 2021.

MDMADireito de imagemMAPS
Image captionDose usada em estudo clínico com MDMA nos EUA; potencial para tratamento de estresse pós-traumático

Os estudos anteriores, da fase dois, envolveram 130 pacientes com estresse pós-traumático – como veteranos de guerra, vítimas de violência sexual, policiais e bombeiros – que não tinham respondido a tratamentos tradicionais com medicamentos ou psicoterapia.

Após administração de três doses de MDMA sob orientação de um psiquiatra, os pacientes registraram, em média, uma queda de 56% na gravidade dos sintomas. Ao final do estudo, dois terços dos pacientes já não se encaixavam nos critérios que caracterizam o distúrbio.

“Essas substâncias não são maravilhosas para todo mundo. No ambiente correto, com pessoas certas, estado fisiológico (do paciente) correto, dose correta, são poderosíssimas. A Psiquiatria vai adorar quando começar a utilizar, porque são muito eficazes”, afirmou Ribeiro à BBC Brasil.

Estudos mostraram que a terapia com MDMA funciona porque a droga leva o cérebro a liberar hormônios e neurotransmissores que evocam sentimentos de empatia e confiança, enquanto reduzem medo e emoções negativas. Isso facilitaria os pacientes a analisarem com mais clareza seus traumas e os impactos em suas vidas.

Mas há quem acredite que uma eventual aplicação terapêutica, mesmo sob circunstâncias controladas, possa incentivar o uso ilegal recreativo das substâncias. “Isso passa uma mensagem de que essa droga irá ajudá-lo a resolver seus problemas, quando muitas vezes ela cria problemas”, afirmou o psicólogo Andrew Parrott, da Universidade de Swansea (Reino Unido), ao jornal The New York Times.

Outro ponto importante é que o comprimido de ecstasy vendido de forma ilegal nas ruas, e que supostamente teria o MDMA em sua composição, pode ser formado por outras substâncias, perigosas e potencialmente danosas à saúde.

Ayahuasca e depressão

Quem também apresentou estudos no congresso Ciência Psicodélica 2017 foi o neurocientista brasileiro Dráulio de Araújo, do Instituto do Cérebro da UFRN.

Araújo e equipe estudam há oito anos o potencial antidepressivo da ayahuasca, chá também conhecido como santo-daime e usado há séculos em rituais religiosos na América do Sul.

Comunidade Ceu da Lua CheiaDireito de imagemREPRODUÇÃO/FABIO FLECHA
Image captionProdução do chá de ayahuasca em igreja na Grande São Paulo; Brasil está à frente de estudos sobre potencial médico da bebida

No experimento mais recente, selecionaram 29 pacientes com depressão resistente a tratamento – 14 receberam a ayahuasca e 15 tomaram um chá como placebo. Após uma semana, 64% dos pacientes do grupo da ayahuasca tinham reduzido os sintomas da depressão.

“Embora o efeito placebo seja alto nesses casos, superior a 50%, o efeito da ayahuasca foi estatisticamente mais significativo do que nesse grupo de controle”, diz Araújo. No Brasil, o uso religioso da ayahuasca é legal, regulamentado desde 2010.

Outra linha de pesquisa sobre ayahuasca e depressão, mas usando componentes isolados da bebida, é liderada pelo neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto D’or de Pesquisa e Ensino.

A equipe de Rehen comprovou que uma molécula da bebida, a harmina, pode incentivar o processo de neurogênese, de formação de novas células neurais humanas – efeito semelhante aos alcançados por medicamentos tradicionais para depressão – e a própria regeneração de neurônios.

Após quatro dias em contato com células relacionadas ao processo de formação de neurônios, a harmina elevou a proliferação dessas células em 70%.

Embora mais estudos sejam necessários e não haja garantia de que o uso do chá de ayahuasca tenha o mesmo efeito, pois as interações bioquímicas são mais complexas com a bebida integral, pesquisadores já colocaram o composto na lista de possíveis drogas contra depressão.

Para a antropóloga Beatriz Labate, o Brasil está assumindo um papel de destaque nas pesquisas sobre potencial terapêutico da ayahuasca.

“O uso da ayahuasca é regulamentado no Brasil, e está ligado a tradições com raízes culturais na Amazônia, além de ter uma penetração e legitimidade razoável em grandes cidades. Tudo isso cria um ambiente de pesquisa mais favorável, com maior acesso à substância, menos burocracias, estigmas e bloqueios. Também há um diálogo entre pesquisadores e usuários, o que é muito rico”, afirma.

‘Renascimento’ da terapêutica psicodélica

Fala-se em “renascimento” da ciência psicodélica porque drogas como LSD, sintetizada pela primeira vez nos anos 1930, foram alvo de centenas de estudos clínicos nos anos 1950 e 1960.

Pesquisadores acreditavam que essas substâncias poderiam revelar dados sobre o funcionamento da mente e abrir caminhos para tratamentos revolucionários. Ao mesmo tempo, as drogas eram celebradas por artistas e músicos como parte da contracultura da era hippie.

Sidarta RibeiroDireito de imagemREPRODUÇÃO
Image caption‘Quando regulamentar os (usos terapêuticos) dos psicodélicos vamos caminhar para uma situação como esporte de aventura. Fazer paraquedismo ou mergulho é seguro ou perigoso, depende de seu treinamento’, afirma Sidarta Ribeiro

Mas o foco, na cobertura da imprensa, em casos de problemas decorrentes do consumo desmedido dessas drogas, como suicídios e suposta decadência moral, levaram a uma reação que culminou com a proibição nos EUA, em 1970, do uso do LSD e de outros psicodélicos – legislação que foi seguida por outros países.

Isso levou a um hiato de quase uma geração nas pesquisas científicas rigorosas sobre os efeitos das substâncias psicodélicas, que começaram a ser retomadas apenas no final dos anos 1990.

“Essa demanda de pesquisa e aplicação na área médica ficou reprimida por 30 anos, e hoje há uma evolução gradativa na ciência dos psicodélicos”, avalia Dráulio de Araújo.

O neurocientista diz não acreditar que substâncias como LSD e MDMA serão encontradas em prateleiras de farmácias no futuro. Para ele, o cenário mais provável, caso passem por todos os testes e autorizações, é que se enquadrem mais como auxiliares de tratamento do que como medicação em si.

“Não vejo a perspectiva de um médico receitar, por exemplo, 50 ml de ayahuasca para um paciente com depressão, mas a possibilidade de um uso controlado, no ambiente correto, como uma ferramenta de procedimento.”

Para Sidarta Ribeiro, é preciso regulamentar o uso terapêutico de todas essas drogas, “porque todas podem ser usadas e abusadas”. “Isso dará segurança de uso pessoal, porque não há droga do bem e droga do mal. Se fosse para proibir substâncias perigosas, o álcool seria proibido e o ecstasy seria liberado”, afirma.

Ribeiro vê ainda um lado moral da “revolução psicodélica”.

“A promessa psicodélica no curto prazo é cuidar do sofrimento humano, mas no longo prazo é cuidar da estruturação social. Porque vivemos numa situação de muito sofrimento na sociedade, pela desigualdade gigantesca, porque as pessoas que têm muito, e muito mais do que podem usufruir, não estão satisfeitas. A promessa dos psicodélicos é mudar isso”, sugere.

Thiago Guimarães

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