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Portadores de HIV perdem aposentadoria com novo pente-fino

AIDS

“Hoje minha carga viral é zero, mas foram muitos anos usando vários tipos de medicação, e não só essa de hoje que é mais avançada. Conseguir um trabalho hoje, aos 54 anos, já é impossível. Se eu conseguir, vou ter que ir toda hora indo ao médico para fazer os exames relativos ao HIV, além de todos os outros de que preciso. Moro de favor na casa de um amigo. Com um salário mínimo só dá para ajudar com uma conta ou outra. Este mês veio menos de 500 reais. O que eu faço com isso?”, lamenta.

A advogada de Antônio*., Maria Eduarda Aguiar, é presidente do Grupo Pela Vidda do Rio de Janeiro, dedicado à população que vive com HIV. Desde março de 2018, já passaram pela mesa dela mais de 60 casos de pessoas portadoras do HIV que foram desaposentadas depois de rápida perícia médica. Para ela, o problema vai muito além do quadro de saúde – que pode ser suficientemente grave.

“Recebi casos de pessoas que têm problemas cognitivos sérios e com lipodistrofia nas nádegas, que mal conseguem ficar sentadas por muito tempo. Essas pessoas, de um modo geral, enfrentam um isolamento social de muitos anos, sem acesso ao mercado de trabalho. Tenho um cliente que mora num quartinho nos fundos de uma instituição espírita. Como é possível tirar um salário mínimo dessa pessoa e fazê-la voltar a trabalhar depois de tantos anos, já na faixa dos 50 anos?”, questiona a advogada.

E o problema não está restrito à população LGBT. Clara*, de 49 anos, também é cliente de Maria Eduarda. Ela é soropositiva e foi contaminada aos 21 por um namorado. Só foi descobrir a doença 10 anos depois, quando a filha nasceu. Mesmo não tendo transmitido a doença para o marido e para a recém-nascida, enfrentou divórcio, discriminação e depressão. Tentando dar a volta por cima, dedicou-se ao ofício de secretária, mas teve que abandoná-lo por causa de uma significativa perda auditiva.

“Nunca poderia imaginar o HIV na minha vida. Era forte, bonita e trabalhava. Sofri muito com os efeitos dos remédios, pois cheguei a tomar uns 20 comprimidos por dia. Fiz muita terapia, pensei que ia morrer. E quando comecei a trabalhar como secretária num consultório médico, comecei a perceber que não entendia o que os pacientes falavam no telefone. Precisei começar a batalha para me aposentar e já são nove anos desde que comecei a receber benefício”, relata Clara*.

A advogada tem encontrado, como alternativa nos tribunais, o enunciado  78 da Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. Nela, está escrito: “Comprovado que o requerente de benefício é portador do vírus HIV, cabe ao julgador verificar as condições pessoais, sociais, econômicas e culturais, de forma a analisar a incapacidade em sentido amplo, em face da elevada estigmatização social da doença”. Com isso, a perícia médica se torna insuficiente para resolver o caso, e torna-se necessária a avaliação de um assistente social.

“É preciso olhar para a pessoa com HIV de forma mais ampla. São pessoas que viveram muitos anos sem tratamento, e que têm impedimentos socioeconômicos reais na nossa sociedade. Uma perícia médica nunca vai ser o suficiente. Essas pessoas sequer deveriam passar por esse processo de revisão”, pondera a advogada.

Passaram pelo pente-fino do INSS os beneficiários que estavam há dois anos ou mais sem revisão. Ficou liberado quem tem mais de 60 anos, ou quem tem 55 anos e recebe o benefício há pelo menos 15. Em outubro de 2018, a gestão anterior declarou que terminaria a revisão até o fim de sua gestão. Mas o governo de Jair Bolsonaro acaba de declarar que vai fazer uma nova auditoria em 2 milhões de benefícios.

Paralelamente a isso, o Projeto de Lei 10.159/2018, do Senado, prevê que pessoas com HIV/Aids aposentadas por invalidez podem ser dispensadas da reavaliação feita pelos médicos peritos do INSS. A PL foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados. Se não for apresentado recurso para votação do assunto no plenário da Casa, segue para sanção de Bolsonaro. O articulador da PL, Renato da Matta, está confiante na articulação com as bancadas do Congresso, e já está em contato com o gabinete presidencial.

“Temos em torno de 25 mil pessoas aposentadas pelo HIV. Pouquíssimas conseguiram reverter a situação do pente-fino pelo total despreparo dos peritos judiciais em relação a AIDS. O HIV não tem cura, e é considerada uma doença crônico-degenerativa, vive em constantes agravos”, pontua o militante.

Enquanto aguardam  pelos recursos na Justiça e pelos trâmites no Legislativo, os beneficiários com HIV estão à deriva. Clara* agora recebe metade do benefício e já busca uma nova posição no mercado de trabalho, apesar das dificuldades em se recolocar depois de anos afastada e do problema auditivo:

“Não sei no que essa história vai dar. Para trabalhar está complicado. Moro sozinha e tenho minhas contas para pagar. Já cortei telefone fixo e internet desde que comecei a receber pela metade. Por enquanto sigo sem perspectiva”. *Nome fictício, a identidade foi preservada a pedido do entrevistado.

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