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Mulheres quilombolas transformam plantas típicas do Cerrado em remédios, alimentos e cosméticos

Dirani Francisco Maia, uma das mulheres que fazem parte do projeto "Mãe de Óleos Kalunga". — Foto: Fábio Tito/G1

Quando criança, Dirani acompanhava sua mãe no trabalho na roça. A mãe derrubava cachos do coco indaiá, uma espécie típica do Cerrado, e a menina ia recolhendo os frutos do chão. “Com 10 anos eu já sabia tirar o óleo também”, conta Dirani Francisco Maia, hoje com 55 anos. Moradora do Quilombo Kalunga, no nordeste de Goiás, hoje ela segue passando o conhecimento para suas filhas e netas. A diferença é que o trabalho se profissionalizou e hoje a venda dos óleos de coco é uma fonte de renda da família.

O conhecimento passado de geração em geração é uma das características dos povos tradicionais do Brasil. Hoje, mais de 650 mil famílias se declaram assim no país. Entre as sete categorias mapeadas, os quilombolas são um deles. Nesta série de reportagens do Desafio Natureza sobre Povos Tradicionais, o G1 visitou o território kalunga para conhecer o modo de vida dos quilombolas e sua relação com o meio em que vivem.

Dirani é uma das 10 mulheres que compõem as Mães de Óleos, marca criada por mulheres kalungas para comercializar os produtos feitos com recursos naturais do Cerrado, bioma que, com suas árvores baixas e retorcidas, esconde uma rica biodiversidade.

O projeto surgiu com o apoio da Articulação Pacari, rede formada por 18 organizações comunitárias de mulheres do Cerrado. A articulação identificou artigos produzidos pelas mulheres que tinham potencial de serem comercializados, como os óleos de pequi, mamona e tingui, além da pimenta de macaco, da polpa do coco indaiá e de remédios feitos de raízes naturais, entre outros produtos.

Dirani Francisco Maia, uma das mulheres que fazem parte do projeto "Mãe de Óleos Kalunga". — Foto: Fábio Tito/G1
Dirani Francisco Maia, uma das mulheres que fazem parte do projeto “Mãe de Óleos Kalunga”. — Foto: Fábio Tito/G1

Em parceria com as mulheres, a entidade ajudou a elaborar a logomarca e os rótulos dos produtos, se adequando às necessidades do grupo, como a falta de alfabetização. “A gente viu a importância de colocar o desenho do produto que elas estão vendendo em cada rótulo. Por exemplo, no óleo de mamona, ter a mamoninha desenhada”, contou Jaqueline Evangelista, coordenadora executiva da Articulação Pacari.

Com a profissionalização, o próximo passo foi conectar as mulheres com feiras de cidades próximas, como Alto Paraíso, referência para turistas que visitam a Chapada dos Veadeiros. O foco do projeto é a venda direta, sem intermediários.

“Com o óleo de coco você pode fritar um ovo, pode botar no cuscuz, pode botar no feijão, fazer qualquer coisa com ele. É bom para a pele e para o cabelo também.” – Dirani Francisco Maia, quilombola

O pote de vidro com 50 ml de óleo de pequi ou coco indaiá custa cerca de R$ 10. O de mamona sai mais caro, o mesmo valor por 30 ml. Com a nova embalagem, as vendas aumentaram.

“É notório que a embalagem ampliou a identidade dos produtos enquanto povo e enquanto identidade de origem. Acho que é importante a gente pensar que, se aumenta a comercialização, aumenta a autonomia delas”, disse Jaqueline.

A Articulação Pacari ajudou a elaborar a logomarca e os rótulos dos produtos das "Mães dos Óleos". — Foto: Fábio Tito/G1
A Articulação Pacari ajudou a elaborar a logomarca e os rótulos dos produtos das “Mães dos Óleos”. — Foto: Fábio Tito/G1

Outra quilombola participante do projeto, Neuza Fernandes da Cunha, de 49 anos, tem os recursos para a fabricação dos produtos no quintal da sua casa. Ela conhece o ciclo e a época de cada planta, como o pequi, que só começa a dar frutos no fim do ano. “A gente já tem que pegar e guardar, senão vai ficar sem ter ele, eu ainda tenho do ano passado que eu peguei”, conta Neuza.

A venda dos produtos das Mães de Óleos chegou para complementar uma renda que sempre veio dos plantios. “Eu mais meu esposo nunca tivemos salário, a gente trabalha só de roça.” Com esse trabalho, Neuza e o marido criaram oito filhos, dos quais três chegaram à universidade, conta ela, orgulhosa.

“Desde os 5 anos que eu trabalho. Ó minha mão, cheia de calo, socando coco, socando coisa. Tirando óleo todo dia.” – Neuza Fernandes da Cunha, quilombola

Desde cedo na roça, Neuza disse que a vegetação diminuiu ao longo dos anos. “O pessoal colocava muito fogo. Hoje já melhorou mais porque tem o pessoal do Prevfogo, do Ibama.”

Um dos fatores que a fez perceber isso é o comportamento das araras, que, com a perda de área do seu habitat natural, passaram a bicar as frutas do quintal dela, o que antes era raro.

“Eu não corto uma árvore, só faço pegar a fruta. Eu sempre deixo o que está nascendo para mode de ter mais, senão o mais novo nem conhece. Tem que preservar a natureza”, afirma a kalunga.

A quilombola Neuza da Cunha vende produtos feitos com recursos típicos do Cerrado. — Foto: Fábio Tito/G1
A quilombola Neuza da Cunha vende produtos feitos com recursos típicos do Cerrado. — Foto: Fábio Tito/G1

Roças tradicionais

Além do uso de produtos naturais do Cerrado, os kalungas também mantêm roçados onde cultivam mandioca, milho, arroz, jiló, abóbora, fumo e algodão. Há quem conte que o trato com a terra foi aprendido com os avá-canoeiros, indígenas que habitavam a região quando a área começou a ser ocupada por pessoas escravizadas que fugiram das minas de ouro da região.

“Desafio que me mostrem outro lugar do Brasil que tem um Cerrado igual nós temos aqui. E olha que nós vivemos aqui quase 8 mil pessoas aqui dentro, então nosso meio nós sabemos preservar.” – Vilmar Souza, presidente da Associação Quilombo Kalunga

Coco indaiá, espécie típica do Cerrado, usado para fazer o óleo por mulheres kalungas — Foto: Fábio Tito/G1
Coco indaiá, espécie típica do Cerrado, usado para fazer o óleo por mulheres kalungas — Foto: Fábio Tito/G1

Vilmar contou que hoje o desafio é manter o meio ambiente preservado com as ameaças externas. “Nossa comunidade é rica e está sendo depredada por pessoas de fora, com a questão da pesca, da caça, tem também a questão do garimpo, a retirada de madeira.”

Com isso, um dos trabalhos da Associação Quilombo Kalunga é levar palestras sobre a importância da biodiversidade para os colégios públicos da região, focando em 19 espécies da fauna e da flora ameaçadas de extinção. “Para os nossos filhos terem a oportunidade de ver um jacu verdadeiro, um tatu-canastra, uma onça, uma águia, uma orquídea”, diz Vilmar.

Calendário em casa kalunga tem como tema a conservação da biodiversidade. — Foto: Fábio Tito/G1
Calendário em casa kalunga tem como tema a conservação da biodiversidade. — Foto: Fábio Tito/G1

Desmatamento e queimadas

A preservação mantida pelos kalungas não é o cenário em grande parte do Cerrado, bioma que já perdeu 50% de sua vegetação natural, segundo a ecóloga Isabel Figueiredo, do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Ela explica que o Cerrado é um importante bioma para a regulação do clima no Brasil, já que ele conecta a Amazônia, a Caatinga, o Pantanal e a Mata Atlântica.

“Também é uma região que tem uma importância enorme para a formação das grandes bacias hidrográficas do país, grande parte da água que vai para o São Francisco nasce no Cerrado”, disse Isabel.

O desmatamento do Cerrado para a transformação, principalmente, em grandes plantações de monoculturas, como a soja, já provoca alterações nos ciclos naturais. “Um número gigantesco de córregos e rios já secaram e vêm secando, e a gente também observa que os períodos de chuva estão variando muito.”

Neste ano, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam que o Cerrado só perde para a Amazônia em extensão de áreas queimadas. Considerando apenas setembro, o Cerrado registrou mais focos de queimadas do que a Amazônia, foram quase 23 mil focos de incêndio no bioma contra 19,9 mil na floresta amazônica.

Equipe do Prevfogo, do Ibama, no Vão de Almas, uma das comunidades kalungas, em Goiás — Foto: Fábio Tito/G1
Equipe do Prevfogo, do Ibama, no Vão de Almas, uma das comunidades kalungas, em Goiás — Foto: Fábio Tito/G1

 Paula Paiva Paulo

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