Trinta minutos depois de o voo decolar do Rio, o papa deixou sua primeira classe e cumpriu uma promessa que havia feito no voo de ida de Roma ao Brasil: responderia a perguntas dos jornalistas. Mas poucos imaginaram que a conversa duraria quase uma hora e meia.
Eis os principais trechos da entrevista:
– Nestes quatro meses de pontificado, o senhor criou várias comissões. Que tipo de reforma do Vaticano o Sr. tem em mente? O Sr. quer suprimir o Banco do Vaticano?
Papa Francisco – Os passos que eu fui dando nestes quatro meses e meio vão a duas vertentes. O conteúdo do que quero fazer vem da congregação dos cardeais. Lembro-me que os cardeais pediam muitas coisas para o novo papa, antes do conclave. Lembro-me que tinha muita coisa. Por exemplo, a comissão de oito cardeais, a importância de ter uma consulta de alguém de fora, e não uma consulta apenas interna. Isso vai à linha do amadurecimento da sinonalidade e do primado. Os vários episcopados do mundo vão se expressando e muitas propostas foram feitas, como a reforma da secretaria dos sínodos, para que a comissão sinodal tenha característica consultativa, como o consistório cardinalício com temáticas específicas, como a canonização. A vertente dos conteúdos vem daí. A segunda é a oportunidade.
A formação da primeira comissão não me custou mais de um mês. Já a parte econômica, eu pensava em tratar no ano que vem, porque não é a mais importante. Mas a agenda mudou devido a circunstâncias que vocês conhecem que é domínio público.
O primeiro é o problema do Ior (Banco do Vaticano), como encaminhá-lo, como reformá-lo, como sanear o que há de ser sanado. E essa foi então a primeira comissão. Depois tivemos a comissão dos 15 cardeais que se ocupam dos assuntos econômicos da Santa Sé. E por isso decidimos fazer uma comissão para toda a economia da Santa Sé, uma única comissão de referência.
Notou-se que o problema econômico estava fora da agenda. Mas estas coisas acontecem. Quando estamos no governo, vamos por um lado, mas se chutam e fazem um golaço por outro lado, temos que atacar. A vida é assim. Eu não sei como o Ior vai ficar.
Alguns acham melhor que seja um banco, outros que deveria ser um fundo, uma instituição de ajuda. Eu não sei. Eu confio no trabalho das pessoas que estão trabalhando sobre isso. O presidente do Ior permanece, o tesoureiro também, enquanto o diretor e o vice-diretor pediram demissão. Não sei como vai terminar essa história. E isso é bom. Não somos máquinas. Temos que achar o melhor. Mas o fato é que, seja o que for, tem que ser feita com transparência e honestidade.
– Uma fotografia do Sr. deu a volta ao mundo, quando o Sr. desceu as escadas do helicóptero em Roma para embarcar para o Brasil carregando sua mala preta. Reportagens levantaram hipóteses também sobre o conteúdo da mala. Porque o Sr. saiu carregando a maleta preta e não um de seus colaboradores? E o Sr. poderia dizer o que tinha dentro?
Papa Francisco – Não tinha a chave da bomba atômica. Eu sempre fiz isso. Quando viajo, levo minhas coisas. E dentro o que tem? Um barbeador, um breviário (livro de liturgia), uma agenda, tinha um livro para ler, sobre Santa Terezinha. Sou devoto de Santa Terezinha. Eu sempre levei eu mesmo minha maleta. É normal. Nós temos que ser normais. É um pouco estranho isso que você me diz que a foto deu a volta ao mundo. Mas temos de nos habituar a sermos normais, à normalidade da vida.
– Na busca por fazer as mudanças no Vaticano, o Sr. disse que existem muitos santos que trabalham e outros um pouco menos santos. O Sr. enfrenta resistências a essa sua vontade de mudar as coisas no Vaticano? O Sr. vive num ambiente muito austero, de Santa Marta. Os seus colaboradores também vivem essa austeridade? Isso é algo apenas do Sr. ou da comunidade?
Papa Francisco – As mudanças vêm de duas vertentes: do que pediram os cardeais e também o que vem da minha personalidade. Você falou que eu fico na Santa Marta. Eu não poderia viver sozinho no Palácio, que não é luxuoso. O apartamento pontifício é grande, mas não é luxuoso. Mas eu não posso viver sozinho. Preciso de gente, falar com gente, trabalhar com as pessoas. Porque é que quando os meninos da escola jesuíta me perguntaram se eu estava aqui pela austeridade e pobreza, eu respondi: não, não.
É por motivos psiquiátricos. Psicologicamente, não posso. Cada um deve levar adiante sua vida, seguir seu modo de vida. Os cardeais que trabalham na Cúria não vivem como ricos. Têm apartamentos pequenos. São austeros. Os que eu conheço têm apartamentos pequenos. Cada um tem que viver como o senhor disse que tem que viver. A austeridade é necessária para todos. Trabalhamos a serviço da Igreja.
É verdade que há sacerdotes e padres santos, gente que prega, que trabalha tanto, que trabalha e vai aos pobres, se preocupam em garantir que os pobres comam. Tem santos na Cúria. Também tem alguns que não são muito santos. E são estes que fazem mais barulho. Faz mais barulho uma árvore que cai do que uma floresta que nasce. Isso me dói. Porque são alguns que causam escândalos. Temos o monsenhor que foi para a cadeia (por lavagem de dinheiro). São escândalos que fazem mal. Uma coisa que nunca disse : a Cúria deveria ter o nível que tinham os velhos padres, pessoas que trabalham. Os velhos membros da Cúria. Precisamos deles.
Precisamos do perfil do velho da Cúria. Sobre a resistência, se tem, eu ainda não vi. É verdade que aconteceram muitas coisas. Mas eu preciso dizer: eu encontrei ajuda, encontrei pessoas leais. Por exemplo, eu gosto quando alguém me diz: “eu não estou de acordo”. Esse é um verdadeiro colaborador. Mas quando vejo alguém que diz: “ah, que belo, que belo”, e depois dizem o contrário por trás, isso não ajuda.
– O mundo mudou, os jovens mudaram. Temos no Brasil muitos jovens, mas o senhor não falou de aborto, sobre a posição do Vaticano sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo. No Brasil foram aprovadas leis que ampliam os direitos para estes casamentos, também em relação ao aborto. Por que o senhor não falou sobre isso?
Papa Francisco – A Igreja já se expressou perfeitamente sobre isso. Eu não queria voltar sobre isso. Não era necessário, como também não falei sobre outros assuntos. Eu também não falei sobre o roubo, sobre a mentira. Para isso, a Igreja tem uma doutrina clara. Queria falar de coisas positivas, que abrem caminho aos jovens. Além disso, os jovens sabem perfeitamente qual a posição da igreja.
– O Sr. teve sua primeira experiência de massas no Rio. Como o Sr. se sente como papa? É muito trabalho?
Papa Francisco – Ser bispo é lindo. O problema é quando um pessoa busca ter esse trabalho. Assim não é tão belo. Mas quando um senhor chama para ser bispo, isso é belo. Tem sempre o perigo e pecado de pensar com superioridade, como ser um príncipe. Mas o trabalho é belo. Ajudar o irmão a ir adiante. Têm o filtro da estrada. O bispo tem que indicar o caminho. Eu gosto de ser bispo. Em Buenos Aires, eu era tão feliz. Como padre eu era feliz. Como bispo, eu era feliz e isso me faz bem.
– No encontro com os argentinos, o Sr. disse que se sentia enjaulado. Por quê?
Papa Francisco – Vocês sabem que eu tenho vontade de passear pelas ruas de Roma? Adoro andar pelas ruas. E por isso me sinto um pouco enjaulado. Mas tenho que dizer que a Gendarmeria vaticana é boa. Agora me deixam fazer algumas coisas mais. Mas seu dever é garantir minha segurança. Enjaulado nesse sentido, de que gostaria de estar nas ruas. Mas entendo que não é possível. Em Buenos Aires, eu era um sacerdote das ruas.
– A Igreja no Brasil está perdendo fiéis. A Renovação Carismática é uma possibilidade para evitar que eles sigam para as igrejas pentecostais?
Papa Francisco – É verdade, as estatísticas mostram. Falamos sobre isso ontem com os bispos brasileiros. E isso é um problema que incomoda os bispos brasileiros. Eu vou dizer uma coisa: nos anos 1970, início dos 1980, eu não podia nem vê-los. Uma vez, falando sobre eles, disse a seguinte frase: eles confundem uma celebração musical com uma escola de samba. Eu me arrependi. Vi que os movimentos bem assessorados trilharam um bom caminho. Agora, vejo que esse movimento faz muito bem à Igreja em geral.
Em Buenos Aires, eu fazia uma missa com eles uma vez por ano, na catedral. Vi o bem que eles faziam. Neste momento da Igreja, creio que os movimentos são necessários. Esses movimentos são uma graça para a Igreja. A Renovação Carismática não serve apenas para evitar que alguns sigam os pentecostais. Eles são importantes para a própria Igreja, a Igreja que se renova.
– A Igreja sem a mulher perde a fecundidade? Quais as medidas concretas?
Papa Francisco – Uma Igreja sem as mulheres é como o colégio apostólico sem Maria. O papal da mulher na igreja não é só maternidade, a mãe da família. É muito mais forte. A mulher ajuda a Igreja a crescer. E pensar que a Nossa Senhora é mais importante do que os apóstolos! A Igreja é feminina, esposa, mãe.
O papel da mulher na Igreja não deve ser só o de mãe e com um trabalho limitado. Não, tem outra coisa. O papa Paulo VI escreveu uma coisa belíssima sobre as mulheres. Creio que se deva ir adiante esse papel. Não se pode entender uma Igreja sem uma mulher ativa. Um exemplo histórico: para mim, as mulheres paraguaias são as mais gloriosas da América Latina. Sobraram, depois da guerra (1864-1870), oito mulheres para cada homem.
E essas mulheres fizeram uma escolha um pouco difícil. A escolha de ter filhos para salvar a pátria, a cultura, a fé, a língua. Na Igreja, se deve pensar nas mulheres sob essa perspectiva. Escolhas de risco, mas como mulher. Acredito que, até agora, não fizemos uma profunda teologia sobre a mulher. Somente um pouco aqui, um pouco lá. Tem a que faz a leitura, a presidente da Cáritas, mas há mais o que fazer. É necessário fazer uma profunda teologia da mulher. Isso é o que eu penso.
– O que Sr. pensa sobre a ordenação das mulheres?
Papa Francisco – Sobre a ordenação, a Igreja já falou e disse que não. João Paulo II disse com uma formulação definitiva. Essa porta está fechada. Nossa Senhora, Maria, é mais importante que os apóstolos. A mulher na Igreja é mais importante que os bispos e os padres. Acredito que falte uma especificação teológica.
– Nesta viagem, o Sr. falou de misericórdia. Sobre o acesso aos sacramentos dos divorciados, existe a possibilidade de mudar alguma coisa na disciplina da Igreja?
Papa Francisco – Essa é uma pergunta que sempre se faz. A misericórdia é maior do que o exemplo que você deu. Essa mudança de época e também tantos problemas na Igreja, como alguns testemunhos de alguns padres, problemas de corrupção, do clericalismo… A Igreja é mãe. Ela cura os feridos. Ela não se cansa de perdoar. Os divorciados podem fazer a comunhão. Não podem quando estão na segunda união.
Esse problema deve ser estudado pela pastoral matrimonial. Há 15 dias, esteve comigo o secretário do sínodo dos bispos, para discutir o tema do próximo sínodo. E posso dizer que estamos a caminho de uma pastoral matrimonial mais profunda. O cardeal Guarantino disse ao meu antecessor que a metade dos matrimônios é nula.
Porque as pessoas se casam sem maturidade ou porque socialmente devem se casar. Isso também entra na Pastoral do Matrimônio. A questão da anulação do casamento deve ser revisada. Também é preciso analisar os problemas judiciais de anular um matrimônio. Porque os… eclesiásticos não bastam para isso. É complexo o problema da anulação do matrimônio.
– Como Papa, o senhor ainda pensa que é um jesuíta?
Papa Francisco – É uma pergunta teológica. Os jesuítas fazem votos de obedecer ao papa. Mas se o papa se torna um jesuíta, talvez devem fazer votos gerais dos jesuítas. Eu me sinto jesuíta na minha espiritualidade, a que tenho no coração. Não mudei de espiritualidade. Sou Francisco franciscano. Me sinto jesuíta e penso como jesuíta.
– O senhor se assustou quando viu o informe sobre o Vatileaks?
Papa Francisco – Não. Vou contar uma anedota sobre o informe do Vatileaks. Quando fui ver o papa Bento, ele disse: aqui está uma caixa com tudo o que disseram as testemunhas. Havia ainda um envelope com o resumo. E ele sabia tudo de memória. Mas não, não me assustei. São problemas grandes, mas não me assustei.
– Hoje os ortodoxos festejam mil anos do cristianismo. Seu comentário?
Papa Francisco – As igrejas ortodoxas conservaram a liturgia tão bem, no sentido da adoração. Eles louvam Deus, adoram Deus, cantam Deus. O tempo não conta. O centro é Deus e isso é uma riqueza. Luz é oriente. E o ocidente, luxos. O consumismo nos faz tão mal. Quando se lê Dostoievski, que acho que todos nós devemos ler, precisamos deste ar fresco do Oriente, desta luz do Oriente.
– O que o senhor pretende fazer em relação ao monsenhor Ricca (acusado de ter amantes) e como o Sr. pretende enfrentar toda esta questão do lobby gay?
Papa Francisco – Sobre monsenhor Ricca, fiz o que o direito canônico manda fazer, que é a investigação prévia. E nesta investigação não tem nada do que o acusam. Não achamos nada. É a minha resposta. Mas eu gostaria de dizer outra coisa sobre isso. Vejo que muitas vezes na Igreja se busca os pecados de juventude, por exemplo. Abuso de menores é diferente.
Mas, se uma pessoa, seja laica ou padre ou freira, pecou e esconde, o Senhor perdoa. Quando o Senhor perdoa, o Senhor esquece. E isso é importante para a nossa vida. Quando vamos confessar e nós dizemos que pecamos, o Senhor esquece e nós não temos o direito de não esquecer. Isso é um perigo.
O que é importante é uma teologia do pecado. Tantas vezes penso em São Pedro, que cometeu tantos pecados e venerava Cristo. E este pecador foi transformado em papa. Neste caso, nós tivemos uma rápida investigação e não encontramos nada.
Vocês vêm muita coisa escrita sobre o lobby gay. Eu ainda não vi ninguém no Vaticano com uma carteira de identidade do Vaticano dizendo que é gay. Dizem que há alguns. Acho que quando alguém se vê com uma pessoa assim devemos distinguir entre o fato de que uma pessoa é gay e fazer um lobby gay, porque todos os lobbies não são bons. Isso é o que é ruim. Se uma pessoa é gay e procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, pra julgá-la?
O catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas devem ser integrados na sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby, o lobby dos avaros, o lobby dos políticos, o lobby dos maçons, tantos lobbies. Esse é o pior problema.
Fonte: O Estadão