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Comentário sobre a carreira do ator francês Michael Lonsdale (1931-2020)

Michael Lonsdale

Em 2013 estava de passagem pela Gare du Nord, Paris. Era uma primavera úmida e um pouco fria para quem se habituara ao regime dos trópicos. O sol demorou a aparecer e para se estabelecer desde que chegara, o que não era exatamente um problema, mas, concedo, causava algum desconforto.

Estava instalado em casa de amigo, Faubourg la Poissonière, já em direção ao norte da cidade. Normalmente caminhava da Gare du Nord até chez moi, passando pelo Boulevard Magenta.

O Boulevard Magenta tem algo já da Paris turística e kitsch – um pouco em todo lugar, reconheçamos –, mas não me desagradava. Subindo a rua, ficávamos todos mais parecidos: estrangeiros, Capuletos e Montéquios, passantes de origens diversas. Ao caminho, a depender do desvio que fizesse, passava por um antigo mercado (um antigo halle) da idade parisiense da arquitetura do ferro. Entrei nesse mercado duas vezes, se bem me lembro. Uma vez só. Uma vez acompanhado.

Entre as várias saídas da Gare du Nord, sempre optei pela mais longa, naturalmente, apesar dessas medições serem relativas e variáveis em função de tempo, modo e lugar. A mais longa sempre me pareceu a mais natural. É uma vocação que preservo e cultivo.

Num desses percursos, encontrei Michael Lonsdale. O nome pode não remeter a muita coisa imediatamente. É um excepcional ator. Dos filmes que assisti, normalmente foi coadjuvante, mas coadjuvante marcante.

A exceção é O dia do Chacal (de 1973), filme excepcionalmente bem filmado, em que a ação e trama psicológica se entrecruzam. Soma-se a isso a economia importante dos diálogos: tudo está na ação, a própria ação e seu sentido, tornando qualquer discurso, que não esteja lá, no bojo da própria ação, dispensável e acessório. À sua maneira, é um filme antimoralista.

Poderia fazer par, curiosamente, com Monsieur Klein (Joseph Losey, 1976), outro filme de diálogos sumários, uma impressionante interpretação silenciosa de Alain Delon, o protagonista, em que Michel Lonsdale faz as vezes de canalha educadíssimo, com a diferença essencial que neste segundo caso há um claro sentido moral na mise-en-scène.

Não era, porém, desses filmes notáveis que me lembraria, se fosse me lembrar apenas de um único filme de Michael Lonsdale.

Ele estava em cadeiras de roda, ao pé da plataforma, nesse encontro inusitado de 2013, esperando o próximo Paris-Londres, presumo, acompanhando de uma amiga ou assistente. No primeiro instante não o reconheci, apesar de ser bom fisionomista.

Já o vi familiar no segundo instante. No terceiro instante, seu olhar plácido, seu jogo meticuloso e contido contagiou-me. Lembrou-me de outros tempos, que não os dele. Mais recentemente fez Ronin (1998) e Munique (2005). Não o reconheceria, porém, de nenhum desses filmes.

Em 1968, um pouco relutante, Trauffaut decide filmar uma continuação de Quatre cents coups (1959). Continuariam as aventuras de Antoine Doinel, aliás, Jean Pierre Léaud.

É o segundo longa metragem sobre a auto e para biográfica personagem de Trauffaut, e o terceiro filme do que seria o ciclo Antoine Doinel. Entre o primeiro (1959) e o segundo longa (1968), há um média metragem, L’amour à vint ans (1962).

Traufaut tinha sérias dúvidas sobre o destino desse filme e mesmo sobre sua realização, e era, a seu modo, a resposta que pretendia dar ao fracasso relativo do filme anterior, La marrié était en noir, (1968), filme feito com e para Jeanne Moreau, que muito mais tarde, responderia sobre a natureza de sua relação com Trauffaut, com a expressão “amizade amorosa”. O que era e foi rigorosamente verdadeiro.

Baiser Voleés foi um sucesso surpreendente de público e crítica, e deu inesperado fôlego financeiro ao Les films du Carrosse, produtora semi-artesanal de Trauffaut.

Terceiro filme da série sobre Antoine Doinel, havia, como há, nesse filme de expectativa modesta (um filme barato e filmado quase às pressas, bastante clássico na concepção) um tímido enigma, hoje um enigma de cinquenta anos: onde estaria aquele Antoine Doinel, jovem a procura de colocação, recepcionista de hotel e futuro ex detetive, em disputa amorosa e permanente com Cristine Darbon, naquela primavera marcante de 1968?

Ninguém mais distante do estudante colérico, em marcha pelas ruas da cidade, a mistura inusitada de O capital (o livro, naturalmente) e Coca-cola, na definição involuntariamente certeira de Godard, do que esse herói desajeitado, algo tímido, anacrônico, de outro tempo.

Era a sinceridade desconcertante de François Trauffaut, que nunca fora estudante, como o próprio se dirigiu àqueles estudantes em 1968, durante e depois da fronda em defesa da Cinemateca francesa, antecipação do que viria com a primavera, em uma auto-definição modesta e verdadeira, ele que lutava pela vida, torta e direita, desde os malfadados quatorze anos.

Trauffaut mantinha – sem que se soubesse se a seu grado ou não – nos idos daquele ano, primavera de 1968, um pé ao menos fora daquele tempo, fora daquela história, ou, talvez, dentro de outro tempo, dentro de outra história, ainda que a mil anos luz de A chinesa (1967), de Godard.

Entre tantos e quantos achados daquele filme, espécie de “teatro de boulevard” na aparência, apenas na aparência, estão Claude Jade como Cristine Darbon, encarnando um frescor juvenil, tátil, suave e intenso, ligeiramente stendhaliana; as memoráveis sequências do espelho e do pneumático (descubram jovens); Léaud ao natural e ao espontâneo, a toda prova; a canção de Charles Trenet, Que rest-il de nos amours?; Delphine Seryg, clássica tal como uma Helena de Troia que nunca precisaria ser sequestrada pelos troianos para se deitar com Páris; e, naturalmente, Michel Lonsdale.

Entre verdades e mentiras, os dias de Antoine Doinel são toda uma escola das paixões da alma, ao preço módico de um mísero bilhete de cinema.

A cada um o seu espelho, suas cartas de amor, suas paixões secretas, suas modestas ou grandes decepções, e que ninguém se furte em perguntar, cedo ou tarde, por quem os sinos dobram.

Eles dobram por alguém ou a lembrança desse alguém que nos desperta madrugada adentro, entre sono e vigília, uma noite quente, pensamentos díspares e a eminente necessidade de umas mal sapecadas linhas.

Antoine faz isso, como nós aprendemos a fazer, e o faz com o encanto do cinema somado ao encanto de quem ama o cinema.

O frescor invencível daquele filme, entre o tato e a polidez, sumamente despretensioso, permanece – tenhamos crescido ou não – pela razão simples de que não só de tudo fica um pouco, mas sobretudo porque, de algumas coisas, fica um pouco mais. Nem tudo muda, nem tudo permanece. Algumas coisas simplesmente ficam.

No filme de Trauffaut, Michael Lonsdale é Georges Tabard, Monsieur Tabard entre nós, bem sucedido comerciante de calçados femininos, casado com Madame Tabard, naturalmente, Delphine Seryig.

1 – Tabard tem um problema objetivo, desses que nos apavoram no cotidiano: ninguém o ama, e vai além disso, talvez haja alguém que definitivamente não goste dele. Quem sabe, fatalmente o odeie, consequência um pouco lógica do sentimento universal da falta de apreço.

Como homem direto e prático, homem de negócios, ele não aceita não saber quem é e de que se trata esse desprezo perigoso e difuso que esse Outro impertinente sente por ele, aqui e acolá.

Vai a uma agência de detetives procurar a ajuda que lhe falta para encontrar esse sujeito oculto a perturbar a ordem maravilhosa de sua vida. À primeira vista, os indícios não são muito claros, apesar de conclusivos.

Não há muitos traços desse sujeito impertinente por aí, mas é inegável que alguém não gosta de mim (não gosta dele, corrijo-me e tomo de empréstimo, em ato quase falho, para minha economia pessoal, a paranoia benigna e cativante de M. Tabard).

Assim, a segunda vista, esses indícios passam a ser determinantes: eles vêm de uma certeza absoluta, quase tão íntima quanto incomunicável. Não há como não levar isso em consideração.

Na agência trabalha Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud e vice-versa), e dado sua excepcional falta de qualidade como detetive, ele é designado a investigar alguém que todos acreditam que não exista, salvo a convicção de M. Tabard.

A revelação desse problema produz umas das sequências mais memoráveis, engraçadas e leves do filme. E faço um desvio improvável. Há em Memória póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o famoso diálogo entre Brás Cubas e Virgília.

Alguém já disse (tenho a impressão de ter sido Carlos Heitor Cony) que este seria o mais implícito diálogo explícito da literatura brasileira. Não é só isso, talvez seja um pouco mais.

À sequência na agência de detetives poderíamos reivindicar esse improvável parentesco na ordem da composição, levando-se em conta que, na agência, o explícito implícito é de outra natureza explícita.

A cena específica é um primor, com o perdão do adjetivo.

Oscilando entre rostos e os sentidos divergentes, em uma montagem perfeitamente ajustada e um pouco mais ligeira que a média do filme, campo e contracampo a serviço de uma comédia dos erros, a narrativa de M. Tabard é recortada pelas reticências de M. Blady (aliás André Falcon) dono da agência, que precisa acreditar no que ouve, apesar do que ouve.

Há um permanente subentendido de parte a parte, que ninguém ousa preencher, por motivos divergentes, naturalmente. M. Blady, para não perder o cliente, M. Tabard por não se supor louco.

O que para um é certeza evidente, para o outro é quase delírio, mas eles precisam se comunicar como se um não supusesse o que pensa o outro, apesar de supor. O que faz Trauffaut, com uma maestria descompromissada, é filmar isso, e filma bem e muito bem.

Michel Lonsdale e sua interpretação peculiar, seu jogo de cena único, entre a contenção e o enigma, incorpora esse estado de ânimo igualmente à maestria, e imprime uma verossimilhança à situação permitindo que o absurdo deslize suavemente ao prosaico, quase sem sobressaltos.

Está lá, como sempre, intrépido vendedor de sapatos de sucesso, a preencher a cena com a sua presença magnética.

O arremate é o fecho de ouro da sequência: M. Tabard, muito consciente de sua extravagância, antecipa-se a eventuais censuras: entre o psicanalista e o detetive, ele fica com o último, o que diz textualmente, o que significaria, em livre interpretação nossa, que o seu “inconsciente” é objetivo e não psicológico nem psicanalítico ou psíquico.

Nesse caso, praticamente todos os problemas teriam solução, bastaria que fosse encontrada, o que é uma verdade insofismável de detetives: o mistério é não haver mistérios que não possam ser solucionados.

Há que se considerar a complicação adicional do inconsciente psicanalítico, levando-se em conta essa última verdade de algibeira de que faz uso M. Tabard: ele, o tal inconsciente, seria o lugar em que se pode não se encontrar nem problemas, nem soluções, apenas desconforto.

Lembrei do chiste por razões que a razão desconhece: deixe-me lembrar. A conversa chegou nisso porque havia encontrado uma amiga no metrô, e ao me lembrar desse encontro do presente, lembrei-me daquele outro, do passado, de ter encontrado Michael Lonsdale, anos atrás, em uma estação de trens, em Paris, entre chuvas e sol de uma primavera instável.

E veio-me não sei que saudades daquele encontro e do tempo daquele encontro: Michael Longsdale atuara, involuntariamente, em meu teatro sentimental, à sua maneira, plácido, uma nota irônico, monumental, perfeito.

Entre ódios e amores, entre psicanalistas e detetives, entre 1968 e hoje, a ênfase contida e serena de M. Tabard talvez ensine algo sobre a atuação, a lição de Michael Lonsdale, e sobre as paixões da alma, a lição de Trauffaut: para atuar é preciso odiar e amar à distância, para viver com suas paixões, também.

As verdades do cinema não valem, entretanto, para a vida. Ensinam o que a vida não seria se fosse cinema.

O cinema substitui, pelo olhar, um mundo hostil por um mundo que concorda com os nossos desejos – pseudo André Bazin na abertura de O desprezo, Godard (1963). A história do mundo, a que não se filma, é a história do que não é cinema.

 Post scriptum
Em 21 de setembro de 2020 sobem os créditos e acendem-se as luzes para Michel Longsdale (24 de maio de 1931 – 21 de setembro de 2020), de carreira pródiga, comportando sucessos internacionais e comercias, com passagem pela franquia 007, bem como experiências cinematográficas no grande cinema europeu de invenção do pós-guerra e mesmo no cinema de vanguarda.

Trabalhou com praticamente todos os grandes diretores do ciclo: Brunel, Orson Wells, Trauffaut, Alain Renais, Duras, Eustache  com Une sale histoire (Jean Eustache, 1977), cuja excentricidade merece menção explícita. Atuou até os últimos anos de vida.

Dá-nos a impressão que, a despeito de todas as vidas acabarem invariavelmente, algumas acabam melhores que outras, ainda que essas medidas sejam as mais relativas que possam haver. A boa saída de cena cabe às grandes atuações. Fiquemos com essa esperança.

*Alexandre de Oliveira Torres Carrasco é professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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