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Documentário, “Raul: o início, o fim e o meio”

A distância pode ser uma dádiva para alguns artistas. A morte, uma redenção. Em junho deste ano, Raul Seixas completaria 75 anos.

O filme dirigido por Walter Carvalho, co-dirigido por Evaldo Mocarzel e Leonardo Gudel, Raul: o início, o fim e o meio, de 2012 (disponível na Netflix), permanece um documento insuperável sobre a sua história, e aponta caminhos importantes para entender o lugar do maluco beleza na múltipla cena musical brasileira.

Embora mantenha a linha tradicional do melhores documentários, com entrevistas e imagens de arquivo, muitas inéditas, o filme refaz com maestria, ao longo de suas mais de duas horas, a história de um artista que foi uma lenda em vida, mas sobretudo ajuda a entender porque se tornou um mito depois de morto.

Desde a história do clube de rock ainda na Bahia, quando Elvis era a grande referência para os rapazes, passando pelas ex-mulheres e filhas que vivem nos EUA, produtores, amigos, músicos e compositores, os depoimentos do filme podem nos fazer crer muitas vezes que sempre foi assim, que Raul foi idolatrado e amado.

Mas os diretores tomaram o cuidado de mostrar que a transgressão estética do cantor foi um acontecimento raro na história de nossa música e seu legado estético-político algo que não pode ser esquecido.

Eu diria que esse lugar do artista não se confunde com o que nos acostumamos a chamar de “marginal” quanto pensamos em alguns nomes da nossa música.

Raul sabia onde estava. Quando afirma em uma cena que não pertencia à linha evolutiva da música brasileira (famosa frase de Caetano) e passa a mimetizar trejeitos bossa novistas no palco, sabemos que seu lugar é o da singularidade e da ironia. Nunca houve um transgressor como ele entre nós, este é o ensinamento principal do filme.

A palavra-chave para entender isso é assimilação. Enquanto grandes movimentos vanguardistas produziram, depois do auge, artistas integrados, que hoje ocupam seu lugar natural no cânone (sem nenhum demérito), Raul foi e permanecerá sendo um apocalíptico, junto com Tom Zé e alguns poucos outros, que jamais cederam ao “jogo” entre arte e mercado – há quem faça com maestria.

Os fãs vão se refestelar com as imagens de arquivo, que mostram toda a riqueza estética de sua revolução solitária. Mas algo no filme vai além desse, digamos, lugar-comum dos documentários musicais.

Duas narrativas se destacam no conjunto da reconstrução de sua figura, uma feminina e outra musical, que não raro se interpenetram. É sobre elas que gostaria de fazer algumas considerações.

A musical quase dispensa comentários. O rock brasileiro tem em Raul sua máxima expressão, estética, musical e poeticamente. Se há herdeiros, e há, ele se envergonharia de suas guinadas ideológicas em direção ao conservadorismo e seus arrependimentos ridículos.

Nos que mantiveram a justeza do exemplo, novos caminhos foram se desenvolvendo a partir dele, por razões diversas que não cabem aqui.

A segunda perspectiva narrativa me parece o grande diferencial do filme: o protagonismo das mulheres. Ao longo do filme essa linha vai se mostrando como uma opção descritiva definidora de uma imagem, em certa medida, contrária ao artista desmedido que vamos reencontrando enquanto sua carreira se desenvolvia – a realização da metamorfose ambulante que ele exaltou.

Na verdade, são elas que contam sua história afetiva, ou ao menos é através delas que o fio narrativo cria um paralelo com a via propriamente musical apresentada por músicos, produtores e parceiros, e que, em tese, seria a principal.

Aparentemente são duas as formas de contar a vida do herói. É como se existissem dois Rauls: um da desmesura e outro do afeto.

Não existem precedentes de revoluções musicais regadas a leite, mas Raul foi alcoólatra, não romantizemos este fato, quase todos os seus piores momentos foram resultado da relação autodestrutiva com a bebida que ele manteve ao longo de toda vida.

O que de pior e melhor ele experimentou foi efeito dessa relação que manteve com o álcool e que o filme não se preocupa em camuflar. Aliás, um dos méritos do documento é não idealizar seu objeto.

A decadência espreita o artista em momentos-chave de sua carreira, mas ele defendia-se dela com a força de sua música.

Se em outros documentários musicais, como Vinicius, de Miguel Faria Jr., ainda que de modo elegante e em tom de blague, podemos notar o incômodo das mulheres com a bebedeira de Tom e Vinicius, em uma cena antológica, em Raul os depoimentos diretos de suas ex-mulheres em nenhum momento do filme permitem denotar qualquer tipo de ressentimento, nem mesmo sobre as relações conflituosas que eventualmente envolviam mais pessoas. Vez ou outra elas silenciam, se omitem de lembrar o passado, mas sem deixar um rasgo sequer de mágoa.

Um marido e pai amoroso é a imagem que fica.

Resta lembrar do papel central de Paulo Coelho no documentário. Seu depoimento é longo, bem-humorado, surpreendente em alguns momentos, mas uma cena gravada em sua casa é o ponto alto do filme.

Em Genebra, onde vive, “onde não existem moscas”, uma resolve aparecer e perturbar a paz do entrevistado. A sequência é de morrer de rir, sobretudo para os que acreditam em espíritos, como ele.

*Henry Burnett é professor de filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil (Editora Unifesp).

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