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Godard: O esforço para redefinir as bases da representação cinematográfica do mundo

Jean Luc Godard

Vendo ou revendo o conjunto dos filmes de Godard, a coerência e a organicidade do seu projeto estético saltam aos olhos e ficam evidentes.

Seu trajeto revela o esforço mais tenaz, consequente e influente de todo o cinema moderno para redefinir as bases da representação cinematográfica do mundo, cujo horizonte ele nunca abandona.

Um mundo em acelerada transformação, que sua obra a um só tempo testemunha e comenta.

A pesquisa estética e a renovação incessante das formas no seu cinema procuraram sempre representar mais e melhor este mundo do que o fazia o leque de formas disponíveis do cinema que o precedeu.

E procuraram representá-lo ao modo não de um espelho mimético, mas de um armazém ou um «museu do mundo», cujos pedaços ele vai recolhendo de filme a filme, na fisionomia da cidade contemporânea, na imagerie produzida pela comunicação de massa, nos fenômenos históricos mais dramáticos do século, na vida ordinária cada vez mais submetida ao império da mercadoria, nas relações e situações de trabalho atentamente observadas.

Colecionar assim os pedaços do mundo supõe uma escolha estratégica dos aspectos a privilegiar de sua paisagem visível (e audível), mas também um aprimoramento constante dos meios expressivos capazes de apreendê-los e capturá-los a contento.

Tal aprimoramento inclui um gesto constante de autorreflexão (tematização do aparato cinematográfico, mise-en-scène do trabalho do cineasta, exercício da autocrítica na fatura mesma dos filmes) e mobiliza por vezes a criação de uma persona do cineasta, cuja evolução em seus filmes parece constituir, por si só, uma via de acesso privilegiada ao seu modo de conceber sua própria função social.

Para além dos personagens moralmente duvidosos que ele assume em pontas de seus primeiros filmes e das figuras do idiota melancólico que ele representa em filmes dos anos 1980, o cineasta aparece encarnando a consciência ou a memória do cinema em mesas de montagem, em estúdios cheios de telas, em sua biblioteca etc.

E o pensamento do cinema aparece em vários filmes como uma conversa paritária entre vozes masculinas e femininas, ou como uma conversa desordenada, sem protocolos estáveis (Un film comme les autres, 1968), ou ainda como um monólogo melancólico, que dá o tom de boa parte de sua filmografia tardia.

Esquematizando bastante, eu diria que este esforço godardiano de reinventar em seus filmes a representação do mundo conjugou ao longo dos anos, em dosagens variáveis, dois momentos, ou movimentos, ou dimensões: uma dimensão destrutiva e outra construtiva.

Ele instaura uma dialética sui generis entre a desconstrução da representação do mundo promovida pelo cinema narrativo clássico (com seu sistema de gêneros, suas convenções e seus horizontes de expectativa) e a construção de uma nova modalidade de representação, em que a narração vai sendo cada vez mais atravessada pelo pensamento.

Sua desconstrução se dá pelo desrespeito às convenções dos gêneros cinematográficos, pela violência feita ao decoro, pela frustração do horizonte de expectativas previsto pelos gêneros que os filmes emprestam, misturam ou parasitam.

O corolário desta destruição é a adoção de uma verdadeira estratégia deceptiva, que se adensa a partir das experiências do Grupo Dziga Vertov, e marca boa parte da filmografia posterior de Godard, redundando em conflitos, quiproquós e recusas pelos produtores de filmes cuja encomenda ele subvertia – os casos mais recentes foram King Lear (1987), Le rapport Darty (1989) e The old place (1998).

Sua reinvenção da representação do mundo integra o pensamento à narração. Desde meados dos anos 60, a lógica que rege o fluxo de imagens e sons dos seus filmes vai se aparentando mais à argumentação do que à narração, mais ao ensaio e ao pensamento do que ao relato.

Vejamos nas notas que seguem como se deu esta constituição do pensamento no cinema de Godard, como este foi ganhando a forma da argumentação e portanto do ensaio ao longo de seu trajeto.

1.
Todos se lembram de filmes narrativos dos anos 1960 nos quais o pensamento se insinuava em parênteses filosóficos que suspendiam a ação para mostrar protagonistas femininas conversando com intelectuais conhecidos, em duos de interlocutores aos quais o cineasta delegava o exercício argumentativo.

Tais parênteses apareciam em situações mundanas da vida comum ou ordinária, em espaços quaisquer de sociabilidade – cafés, sala de jantar, cabine de trem –, não necessariamente associados ao labor intelectual. E a figuração do pensamento consistia ali em filmar a enunciação, por pensadores socialmente reconhecidos e suas interlocutoras, de algum raciocínio intelectual.

Consistia em mostrar alguém exprimindo diante da câmera um pensamento. Numa palavra, o que víamos ali era o pensamento no filme, e não ainda o pensamento do filme, ou o filme em si mesmo como ato de pensamento.

No 11o tableaux de Vivre sa Vie (1962), Brice Parain filosofava por acaso com Nana (Anna Karina), que o abordara numa mesa de café, sobre a linguagem, sua relação com o pensamento, a existência, a mentira, o erro e o amor.

Nesta conversa de poucos minutos, respondendo às perguntas de Nana, o pensador invoca sucessivamente Platão, a filosofia francesa do século XVII (Descartes talvez?), Kant, Hegel e Leibniz, para sustentar que pensar e falar são indistinguíveis, que o pensamento exige certa ascese, certa renúncia à vida comum para retornar a ela com mais profundidade, que o erro e a mentira pertencem à busca da verdade etc.

A referência de Parain a esta série de filósofos canônicos é precedida por sua invocação inicial de uma passagem do romance Vingt ans après (1845), de Alexandre Dumas[ii], antecipando um gesto que reaparecerá noutros momentos do cinema de Godard: sua recusa em situar a filosofia num plano superior ao da literatura, como se o pensamento literário tivesse menos dignidade do que o filosófico.

Numa cena de jantar entre amigos em Une femme mariée (1964, 36’20”- 38’40”), anunciada pela cartela «L’Intelligence», o intelectual e crítico de cinema Roger Leenhardt evoca uma tirada antiga de um amigo filósofo para definir a sua concepção de inteligência.

Antes de se referir a um verso de Apollinaire ao qual sua interlocutora Charlotte o fez pensar, Leenhardt discorre sobre a inteligência num terreno estritamente intelectual, típico da teoria do conhecimento: «L’intelligence, c’est comprendre avant d’affirmer. C’est, dans une idée, de chercher à aller plus loin… de chercher la limite, de chercher son contraire … Par conséquent, c’est de comprendre les autres, et, entre soi et autrui, entre le ‘pour’ et le ‘contre’, de trouver petit à petit un petit chemin».

Em cena longa perto do fim de La chinoise (1967), o intelectual e militante anticolonialista Francis Jeanson conversa num trem com Véronique (Anne Wiazemsky) e, entre referências ao teatro e à ação cultural que pretendia desenvolver, mobiliza questões caras à filosofia política (como o problema da legitimidade da representação nas ações políticas) ao fazer objeções à posição voluntarista e terrorista da jovem amiga, que pretendia explodir bombas na universidade para forçar seu fechamento.

Os dois interlocutores aparecem no mesmo plano ao discutirem política.

O pensamento parecia delegado a alguns personagens e circunscrito a alguns parênteses de filmes narrativos, ele começa a invadir a narração na voz do próprio cineasta em diversos momentos de Deux ou trois choses que je sais d’elle (1967) para ganhar dali em diante o primado em vários dos seus filmes, numa inflexão ensaística que marcará cada vez mais a sua obra.

Entre outras seqüências de Deux ou trois choses notáveis a este respeito, lembro uma única, ambientada mais uma vez num café (26’10” – 30’44”), que permite um paralelo revelador com a já comentada de Vivre sa vie.

Assim como Nana no filme de 1962, a protagonista Juliette (Marina Vlady) vai lá pelas tantas a um café, onde a nova cena se desenrola, desta vez com personagens mais numerosas e decupagem mais complexa, evidenciando uma mudança na mise en scène godardiana do pensamento.

Ao invés de delegado aos personagens que aparecem ali, este é acionado pelo próprio cineasta, cujo monólogo sussurrado irrompe em 6 momentos da cena, alternado aos sons ambientes do café (vozes, tilintar de copos, máquina de chopp, barulhos do fliperama no café ou de carros na rua etc) por um trabalho muito inventivo de mixagem.

Em seu monólogo, Godard se pergunta sobre a verdade, a natureza do objeto (que permite a comunicação entre os sujeitos e portanto a vida social), as relações sociais entre os indivíduos, o mundo presente com seus avanços e impasses, as relações entre linguagem, consciência e mundo.

Nesta sucessão de questões, seu raciocínio volta a recorrer, sem hierarquizá-las, a formulações literárias e filosóficas, invocando entre outros o Baudelaire do poema «Au lecteur» (na fórmula «mon semblable, mon frère», repetida 3 vezes), o Sartre de L’être et le néant (cujo léxico ele mobiliza ao falar de culpabilidade, ser e nada) e o Wittgenstein do Tractatus Logico-philosophicus (na proposição segundo a qual «les limites de mon langage sont celles de mon monde»).

A articulação entre as palavras proferidas pelo cineasta e os demais elementos visuais e sonoros da cena adensa a construção do pensamento, que não se limita mais ao seu substrato discursivo verbal, e integra uma dimensão propriamente audiovisual, como ocorrerá em boa parte dos ensaios fílmicos posteriores de Godard.

No curso do monólogo, a passagem de um argumento a outro é toda mediada pelos planos da xícara de café, objeto que permite passar de um sujeito a outro na decupagem da cena, e que em seguida parece remeter à relação do sujeito com o mundo que se comenta, ganhando o aspecto cósmico de uma galáxia mais para o fim da cena, quando as bolhas de ar se agrupam e formam desenhos no seu interior].

Assumido pelo cineasta, e disseminado em vários momentos de Deux ou trois choses, seu primeiro filme marcadamente ensaístico, o pensamento ganha dali em diante o primado sobre a narração em vários outros, nos quais tende a migrar, por assim dizer, da esfera do mundo representado para um espaço outro, próprio do cineasta que o aborda, um espaço simbólico e circunscrito em que ele exerce seu trabalho de interrogar e apreender o mundo.

Isto começa a aparecer já no segmento Caméra-Oeil, sua contribuição ao filme coletivo Loin du Vietnam (1967), em que ele reflete atrás de uma câmera postada no terraço do seu apartamento parisiense sobre sua relação com o Vietnã, à luz da recusa dos vietcongs em aceitar sua visita de solidariedade.

O espaço próprio à sua atividade de cineasta, aqui representada pelo manejo da câmera, aparece de cara, logo no início do segmento.

Em seguida, Godard constrói em seu monólogo político um pensamento que desta vez não se limita a conviver com uma cena pré-existente, como ocorria em Deux ou trois choses.

Agora, é o seu raciocínio mesmo que aciona o fluxo de imagens e sons do filme, com o qual acaba por se confundir.

Depois de descrever a filmagem que faria se fosse um cinegrafista de TV, Godard conta não ter sido autorizado por Hanói para filmar no país, e procura extrair as consequências deste veto: falar do Vietnã em seus filmes, refletir sobre como traduzir sua solidariedade para com os vietnamitas do norte.

Buscando tal tradução, ele percebe que ao invés de invadir novamente o Vietnã com uma pretensa generosidade, o melhor é se deixar invadir por ele, e encontrar noutra parte o correlato da luta pelo Vietnã, de modo a «criar dois, três, muitos Vietnãs», como dizia Che Guevara, ou «criar um Vietnã dentro de nós», segundo sua própria formulação.

Guiné, isto se faria contra o ocupante português. Em Chicago, pelos negros. Na América do Sul, pela América Latina e contra os neocolonialismos que a agridem.

Na França, pelos operários da Rhodiaceta, para estreitar as relações entre as lutas dos cineastas e as dos trabalhadores em geral, que costumam estar muito desvinculadas umas das outras, em prejuízo de ambas.

Se não há situação revolucionária na França, a tarefa seria ecoar o grito dos que a vivem de verdade, dentre os quais o Vietnã é o símbolo maior de resistência.

Esta argumentação de extrema lucidez aciona imagens e sons do Vietnã, de outros povos, dos trabalhadores franceses, de operações militares americanas etc, num fluxo que não se distingue mais do pensamento enunciado pelo cineasta. Passamos assim de um pensamento no filme para um verdadeiro pensamento do filme.

Esta esfera própria do pensamento do filme reaparece em Le Gai Savoir, no qual os personagens de Jean-Pierre Léaud e Juliet Berto ocupam o espaço muito emblemático dos estúdios vazios da ORTF (coração da televisão francesa) nos turnos da noite.

Ali, examinam e discutem imagens e sons da atualidade francesa que se propuseram a recolher, a voz sussurrada do cineasta interagindo com eles de modo a formar um trio de analistas em ação.

No fim deste verdadeiro exercício de epistemologia da mídia, Godard conclui sussurrando que «ce film n’a pas voulu, ne peut pas vouloir expliquer le cinéma ni même constituer son objet, mais, plus modestement, donner quelques moyens eficaces d’y parvenir. Ce film n’est pas le film qu’il faut faire, mais si l’on a un film à faire, il passe nécessairement par quelques-uns des chemins parcourus ici».

Este gesto de autocrítica se torna uma das operações argumentativas mais salientes de certos filmes de Godard no decênio 1968-78, nos quais a esfera própria do pensamento se instala, senão visualmente na imagem, ao menos na construção.

Depois do Gai Savoir, a autocrítica se torna um princípio de composição de vários deles, de Pravda (1969) a France Tour Détour: deux enfants (1978), passando por Vent d’Est (1969), Luttes en Italie (1970), Tout va bien (1972) e Numéro Deux (1975).

Com variantes que não cabe detalhar aqui, alguns destes filmes se organizam não pelo avanco de uma intriga, mas por rodadas de argumentos, um bloco cumprindo a tarefa de criticar um outro que o precedeu.

É o que faz Pravda em sua abordagem, dividida em 4 partes, da realidade social de Praga em 1969. Cada uma das três últimas partes se incumbe de criticar e retificar o que a parte anterior conseguiu construir, aperfeiçoando os métodos de construção das imagens e dos sons.

No fim da primeira parte (8′-10′), por exemplo, os locutores dizem que o filme até ali se limitara a mostrar impressões de viagem, lembranças da realidade tcheca concreta, no nível insuficiente da informação.

Seria preciso ultrapassar o conhecimento sensível para aceder ao conhecimento racional daquela realidade, passar do sentir ao saber. Seria preciso então na segunda parte começar a montar o filme e desmontar as contradições do revisionismo: organizar de outro modo as imagens e os sons, para obter uma análise concreta da situação concreta da Tchecoslováquia.

É o que faz também Vent d’Est, de estrutura bipartite, uma voz feminina criticando severamente na segunda parte (49′-59′) as insuficiências do método falso de abordagem das lutas sociais utilizado na primeira (desvinculado das massas, baseado num estilo de slogan e cartaz, alheio às lutas reais, carente de pesquisa, tributário da sociologia burguesa e do cinema verdade, aparentado ao das televisões burguesas e dos seus aliados revisionistas) e formulando a tarefa do cinema materialista como um combate ao conceito burguês de representação, depois de encenar uma tentativa frustrada de diálogo com o cinema revolucionário do Terceiro Mundo, do qual Glauber Rocha aparecia como emblema.

É o que faz ainda, na outra ponta deste grupo de trabalhos, cada episódio da série France Tour Détour, dividido entre um bloco principal em que os cineastas conversam com o casal de protagonistas crianças, e um epílogo em que outro casal, no papel de jornalistas, critica o primeiro bloco, vislumbra melhorias, propõe outros métodos de abordagem para os temas em questão.

Estes e alguns outros filmes de caráter ensaístico (Letter to Jane, 1972, Ici et ailleurs, 1974, Les enfants jouent à la Russie, 1993 etc) levam longe, em seu agenciamento específico das imagens e sons, um vigoroso exercício do pensamento áudio-visual por Godard e seus parceiros.

Eles podem assumir a forma de gêneros discursivos bastante diversos, como a carta, o esboço, o auto-retrato, a evocação, a elegia, mas tendem todos a minimizar ou a abandonar de vez a intriga e os personagens para se organizarem como um pleno fluxo de pensamento, uma argumentação ou, talvez mais precisamente, uma ruminação por imagens e sons.

Vários deles trazem ainda uma representação sensível, uma espécie de cenografia destas operações de pensamento audiovisual. Os exemplos são muitos, e dão a ver o pensamento em ato do cineasta, em salas de montagem, moviolas, monitores de vídeo, aparelhos de mixagem etc.

Isto ocorre, entre outros, em Numéro Deux, Changer d’Image (1982), Lettre à Freddy Buache (1982), Scénario du film Passion (1982), Petites notes à propos du film ‘Je vous salue, Marie’ (1985).

O veio ensaístico do cinema de Godard, em que o exercício e a representação do pensamento ganham o primado sobre a narração, continua aparecendo nos seus filmes tardios, como no notável JLG/JLG – Autoportrait de décembre (1994) e num conjunto de ensaios breves e muito densos que se seguiram às Histoire(s) du Cinéma (1988-98), como The Old Place (1998), De l’origine du XXIe siècle (2000), Dans le noir du temps (2002) e Liberté et patrie (2002). Destes últimos, alguns chegam a tematizar frontalmente o pensamento, antevendo seu desaparecimento, referindo-se à polissemia do verbo pensar, retomando uma de suas figuras filosóficas mais emblemáticas etc.

The Old Place se apresenta de início como um ensaio, na cartela «An Anne Marie Miéville Jean Luc Godard Essay», e se autodefine um pouco depois nas duas cartelas «vingt-trois exercices / de pensée artistique», antes de refletir, bem mais adiante, sobre a ação de «penser avec les mains» (30′).

Dans le noir du temps encadeia dez blocos sobre os dez últimos minutos de uma série de coisas, o terceiro dos quais se debruçando sobre «Les dix dernières minutes de la pensée» (2’47”- 4’03”) e retomando em over, sobre imagens de pessoas jogando livros no lixo, um comentário ao Cogito cartesiano: «Dans le ‘je pense, donc je suis’, le ‘Je’ du ‘Je suis’ n’est plus le même que le ‘Je’ du ‘Je pense».

Liberté et patrie lembra, logo aos 20″, que «du mot pensée il n’y a pas à attendre qu’il soit employé de manière homogène, plutôt le contraire».

Um pouco antes, JLG / JLG consagrava a cenografia cinematográfica do pensamento, no rastro de vários dos filmes anteriores já referidos aqui, em cenas do cineasta às voltas com telas, câmeras ou operações manuais de montagem.

Mas esta cenografia convivia com uma outra, mais próxima de um modelo literário do pensamento.

Na verdade, a mise en scène mais clara e enfática no filme do trabalho de pensamento de Godard, numa passagem em que o vemos elaborar um argumento com idas e vindas, hesitações e retificações (6’45”–10’45”), mostra-o na posição de escritor, sentado à escrivaninha com lápis e papel à mão, socorrendo-se de um livro de Aragon para arrematar com um poema de Le crève-coeur seu raciocínio grave e melancólico sobre a cultura e a arte, a regra e a exceção.

Segundo tal raciocínio, existe a cultura, que é da ordem da regra, e existe a arte, que é da ordem da exceção.

Todos dizem a regra: cigarros, computadores, camisetas, televisão, turismo, guerra. E ninguém diz a exceção. Esta não se diz, ela se escreve (Puchkin, Flaubert, Dostoievski), se compõe (Gershwin, Mozart), se pinta (Cézanne, Vermeer), se filma (Antonioni, Vigo), se vive, e se torna então a arte de viver (Srebrenica, Mostar, Sarajevo).

É da regra querer a morte da exceção, e é então da regra da Europa da cultura organizar a morte da arte de viver que ainda florescia sob nossos pés.

Numa fórmula ligeiramente diferente, este argumento já aparecera um ano antes num filme fulgurante de dois minutos, Je vous salue, Sarajevo (1993), enunciado em over, de modo resoluto, por sua voz rouca e cavernosa, sobre imagens de uma foto de Ron Haviv da guerra dos Bálkans mostrando três soldados de pé ao lado de três vítimas civis caídas no chão, provavelmente abatidas por eles.

Ao retomar agora uma variante do mesmo texto, Godard promoveu literalmente uma mise en scène da elaboração do seu pensamento, que já se constituíra alhures – mas decidiu fazê-lo como um escritor.

Nada de equipamentos cinematográficos, nada das imagens técnicas que davam o tom de boa parte dos seus filmes anteriores, e mesmo de outras cenas deste auto-retrato.

A mise en scène do pensador como cineasta convive assim com a do pensador como escritor, que parece privilegiada no momento mais claro de apresentação do seu trabalho de pensamento.

Num curioso paradoxo, tal convívio e tal privilégio ficam ainda mais claros no trabalho de Godard em que o exercício cinematográfico do pensamento atinge seu grau mais alto de elaboração e complexidade: a série monumental das Histoire(s) du Cinéma (1988-98), ponto culminante do seu ensaísmo fílmico.

Ali, um plano inscreve a palavra ‘pensamento’ sobre a imagem de Godard com equipamentos de vídeo ao fundo, a cartela «Cogito ergo video» propõe uma variante do Cogito cartesiano associado à operação de ver (que vários de seus filmes defendiam em detrimento das operações de ler ou escrever, mais diretamente associadas à escrita) e alguns planos espalhados pela série continuam a trazer imagens de moviolas e películas.

No entanto, no momento mesmo em que o filme inteiro se constitui como um fluxo de pensamento, e de máxima densidade, a mise en scène da sua elaboração pende claramente para a caracterização de Godard como homem de letras, insistindo em mostrá-lo no espaço da sua biblioteca, consultando e folheando livros ou batendo à máquina de escrever.

Ao longo de praticamente todos os oito episódios, com raras exceções, o espaço que predomina quando o cineasta aparece em pessoa não é o da sala de montagem ou de edição, mas o da biblioteca.

Por vezes, a imagem da biblioteca chega a se superpor como um fantasma ao rosto do cineasta ou a filmes seus e de outrem. E reforçando esta tendência, o último episódio chega a incorporar, ao som de um monólogo imprecatório de Artaud, aquele plano já comentado de JLG / JLG em que Godard encena seu trabalho de pensamento não na câmera, na mesa de edição ou na moviola, mas sentado à escrivaninha com papel e lápis.

Retomar este plano parece uma forma de duplicar o privilégio concedido no filme de 1994 ao auto-retrato do artista como homem de letras.

O privilégio cenográfico da biblioteca sobre a sala de montagem ou edição encontra reforço e confirmação na assimilação de Godard a Borges, selada no desfecho da série, no minuto final do seu episódio.

Encerrando a invocação de um conjunto de escritores (Arthur Rimbaud, Georges Bataille, Maurice Blanchot, Emily Dickinson), Godard diz neste desfecho de 35 segundos (36’06’-36’40’) a passagem de Coleridge citada por Borges em seu ensaio «A Flor de Coleridge» incluído em Otras Inquisiciones (1952).

O bloco começa com a imagem de uma flor amarela, sobre a qual se inscreve a expressão «Usine de rêves», que costumava definir o cinema, de modo a superpor os universos da literatura e do cinema numa mesma imagem.

Logo a seguir, surgem a cartela «Jorge Luis Borges», explicitando a remissão ao seu texto, e pouco depois um retrato de Godard de óculos escuros, que pisca em alternância com a flor e acaba por sucedê-la, num paralelismo evidente com o que ocorrera segundos antes com o nome do escritor argentino.

O esquema flor/Borges/flor/Godard sela assim a assimilação dos dois artistas, assim como a superposição flor/ «Usine de rêves» já assimilara as duas artes.

Entre a primeira imagem da flor e a imagem final sobrepondo o retrato do cineasta a uma pintura que mostrava um pintor caminhando solitário numa paisagem (paraíso?), Godard diz em over na sua própria língua o texto que Borges atribui a Coleridge: «si un homme, si un homme, si un homme traversait le paradis en songe, qu’il reçut une fleur comme preuve de son passage et qu’à son réveil il trouvât cette fleur dans ses mains, que dire alors?

Completando, porém, ao modo da conclusão, a formulação de Borges, ele fecha o episódio e a série inteira com as palavras «J’étais cet homme», como se atribuísse in fine à sua persona a função de guardião da memória do sonho edênico (ou da usina de sonhos) do cinema, assim como Borges parece ter atribuído à sua a função de guardião da memória da literatura inteira.

2.
Se tomamos a série das Histoire(s) como o ponto culminante deste trajeto que descrevi aqui muito sucintamente, ainda que ela não constitua o último trabalho em data e tenha sido sucedida por vários outros filmes de muita densidade artística, é significativo que ela se encerre com a assimilação do pensamento cinematográfico de Godard ao de Borges, representante de um pensamento literário que, nela, convive com o de filósofos, historiadores etc, confirmando assim um traço que já apontei lá atrás, no exemplo de Vivre sa Vie (1962).

No itinerário de Godard, o cinema teria assim se transformado cada vez mais claramente num dispositivo de pensamento, assimilável porém a outros na lida comum com a decifração do mundo em que nos foi dado viver.

*Mateus Araújo é professor de teoria e história do cinema na ECA-USP.

Os filmes citados podem ser encontrados via internet, pesquisa avançada sobre cinema.

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