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“Mar de rosas”, “Das tripas coração” e “Sonho de valsa”, filmes anti-realistas, potencializam a comédia como crítica da ordem vigente

A trilogia de Ana Carolina

O cinema de Ana Carolina expõe a base patriarcal da formação social.

Ela é a primeira a usar a comédia exótica para criticar a ordem vigente. Diferente dos filmes de outras diretoras contemporâneas.

Mar de rosas (1977), Das tripas coração (1982) e Sonho de valsa (1987) abrem mão do realismo, favorecendo a estética da carnavalização.

Isso explica, até certo ponto, a dificuldade que os estudos acadêmicos tradicionais de crítica do cinema latino-americano têm em lidar com seus filmes, estudos estes que frequentemente enfatizam os aspectos e as funções sociais e políticas dos filmes.

Ao mesmo tempo em que os estudiosos de cinema têm explorado os caminhos pelos quais os filmes como Patriamada, de Yamasaki (1984), e Camila, de Bemberg (1984), abordam fatos históricos específicos, parecem aturdidos com o que alguns classificaram de “surrealismo” de Ana Carolina e com a falta de referências históricas explícitas de seus filmes. Generosamente salpicados com elementos do absurdo, seus filmes parodiam incansavelmente a ordem patriarcal e questionam sua relação com sonhos e fantasias.

Os filmes de Ana Carolina expõem as estratégias discutidas por Robert Stam em Subversive Pleasures: Bakhtin, Cultural Criticism, and Film [Prazeres subversivos: Bakhtin, crítica cultural e cinema], onde se explora o potencial subversivo das formulações de carnavalização e carnavalesco de Mikhail Bakhtin.

“Virando o mundo de cabeça para baixo”, privilegiando a polifonia turbulenta ao invés do monólogo autoritário, exaltando o corpo, as articulações carnavalescas desafiam (se não subvertem) hierarquias estabelecidas (políticas, sociais, estéticas) e, consequentemente, a ordem vigente.

Como Stam coloca: as teorias de Bakhtin “promovem (…) o uso subversivo da linguagem daqueles que não possuem poder social (…)” e são particularmente úteis para uma “análise da oposição e das práticas marginais, sejam elas de Terceiro Mundo, feministas ou de vanguarda”.

A carnavalização da América Latina e, particularmente, do Brasil de Ana Carolina, é literal e metafórica – presente na miscigenação de culturas (africana, europeia, indígena) na festa anual e na vida cultural.

Apesar de Stam não discutir especificamente os filmes de Ana Carolina, sua polifonia, com ênfase na voz do “corpo dos pequenos” (grupos sem poder), no discurso (sobre sexo e outras funções do corpo) e no uso geral da inversão da ordem pedem por uma análise.

Das tripas coração, de Ana Carolina, dá a ela a possibilidade de criticar o patriarcado de uma maneira que outras mulheres cineastas, que trabalham com realismo, não conseguem.

Essa análise desafia inúmeras tendências teóricas tanto da crítica de cinema da América Latina quanto da feminista. A crítica de cinema latino-americana tem, de uma maneira geral, ignorando a utilidade das teorias do cinema psicanaliticamente informadas.

A crítica da psicanálise nos estudos culturais da América Latina freqüentemente baseia-se na premissa de que há na região uma ruptura com as tradições “ocidentais” de indivíduo e núcleo familiar, que formam o contexto por trás da origem e da aplicabilidade da psicanálise, da forma como é articulada por Freud e Lacan.

Apesar de talvez ser convincente quanto à expressão cultural de grupos indígenas, esta premissa não tem suporte em se tratando do trabalho de artistas como Ana Carolina, que nitidamente se desenvolve e circula dentro de um campo cultural tremendamente influenciado pelos conceitos “ocidentais”.

Os filmes de sua “trilogia” acima mencionada enfocam o desenvolvimento do sujeito feminino ao longo de sua “adolescência, juventude e maturidade”.

Trabalham as relações entre sexualidade, família, lei e o sujeito dentro da teoria psicanalítica. Em Mar de rosas, uma jovem da classe média tenta matar sua mãe, que tinha tentado matar seu pai.

Em Sonho de valsa, uma mulher se debate com o desejo incestuoso pelo irmão ao mesmo tempo em que anseia por independência.

Sugerimos assistir a trilogia e avançar nas análises.

cljornal com in formasções de Laura Podalsky

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