A mera possibilidade de vitória de Donald Trump nas eleições nos EUA, em novembro próximo, sugere um clima de celebração em Moscou – e a cada provocação sobre Ucrânia e OTAN, ouvem-se rolhas de champanhe batendo no teto do Kremlin. Não é novidade essa correlação inusitada. Mas, quais os caminhos que levaram a esse paroxismo, no sentido clínico da palavra, estado ou fase de uma doença em que os sintomas se tornam mais fortes e agudos?
A visão introspectiva de Donald Trump sobre relações internacionais pode ser vista como um vetor disjuntivo de proporções imprevisíveis.
Se o império norte-americano está em queda, o landing poderá ter o efeito suplementar de tensionar o frágil equilíbrio que sustenta a estabilidade entre as nações. Esforços multilaterais do tipo ONU e assemelhados serão afetados, a civilização terráquea entrará na soi-disant multipolaridade: quem tiver poder nuclear sai na frente, quem não tiver terá de contentar-se com o bom mocismo das conversas ao pé do ouvido.
A Rússia de Vladimir Putin é um dos que sai na frente, configurando uma economia de guerra que provavelmente exigirá novas expansões para sobreviver. China, Índia e Europa (França e Inglaterra) estarão à espreita: os Estados Unidos, às voltas com disfuncionalidades políticas, também. Paquistão e Israel rondam a área. Para não falar dos newcomers, Irã e Coreia do Norte.
Encarar um cenário como esse, distópico e aterrorizador, não é fácil. O cinema, discurso que oscila entre a transparência e a opacidade, é uma janela que se oferece. Aleksei German (1938-2013), notável realizador russo, foi dos que aceitou o desafio e mergulhou fundo – seu É difícil ser um Deus, finalizado em 2013, é uma ficção científica escatológica e não-asséptica, porta de entrada – ou saída – de um mundo pós-apocalíptico.
Fantasia
Aleksei German refere-se orgulhosamente como, no seu exame de admissão para o Instituto Estatal de Teatro, Música e Cinema de Leningrado, declarou que o único filme soviético verdadeiro era Cinderella (1947), de Nadezhda Kosheverova – pura fantasia em pleno stalinismo. Fantasia, naqueles tempos, era estratagema para escapar da censura – fabulações esópicas, como se dizia na URSS.
O pai de Aleksei, Yuri German, era escritor e jornalista, além de roteirista, na linha do realismo socialista e as infalíveis mensagens comunistas – mas pontuados de intrigas e aventuras, que faziam dele um autor popular. Não era especialmente ativo na elite intelectual: convidado para jantar de escritores com Stálin, deixou-se seduzir pela figura “charmosa” do líder.
Com o tempo, relativizou essa impressão. Aleksei German conta do oficial da polícia secreta que visitou a família após a guerra e contou sobre os horrores dos expurgos, para constrangimento e medo de Yuri. “Porquê você está me dizendo isso?” indagou: “Você é um escritor”, respondeu o interlocutor.
No dia seguinte, o oficial se matou e a polícia foi à casa de Yuri interroga-lo. Ao contrário de Nikita Mikhálkov, também filho de escritor famoso, Aleksei German construiu sua carreira com filmes críticos e de difícil apreensão – apesar de utilizar eventualmente roteiros do pai, alguns inacabados, como ponto de partida. Sua genealogia funcionou dialeticamente – relação próxima com a figura paterna, temperada por embaraços circunstanciais.
Trabalhou muito, mas completou apenas seis filmes – em um deles, O Sétimo Companheiro, compartilhou a direção com colega veterano (Aleksei German, num excesso de autocrítica, considera o resultado “fraco”). Nos demais, elaborou uma linguagem nostálgica, balizada por um tom pessoal de memórias e asserções morais. Seus filmes são sobre um passado meticulosamente recriado, filtrado por fantasia e lembranças.
E sempre sintonizados com o tempo da produção – a superestrutura ideológica que vigorava na URSS, a transição abrupta pós-queda do muro e a era Putin. Foram longas as negociações com o establishment censório no período soviético, e também longos os intervalos entre as produções no período capitalista.
German foi dos cineastas que mais se beneficiou da perestroika de Gorbachev. Meu amigo Ivan Lapshin – baseado em texto do pai sobre um “devotado detetive comunista” – se passa em 1935, época dos grandes projetos e crises abafadas, véspera do terror dos expurgos. Lapshin persegue criminosos, mora num apartamento comunal e confraterniza com uma trupe de teatro.
Lançado em 1985, captou o clima de desilusão reinante – comunismo era essencialmente bom, mas algo o levou ao declínio e à corrupção.
Andrei Tarkovski e um razoável consenso crítico consideravam Aleksei German como um dos três mais importantes diretores do cinema russo. Depois do exílio e morte de Tarkovski em 1986, ele e Kira Murátova se destacaram, indubitavelmente. Após Lapshin, esperou quatorze anos até rodar sua próxima produção, Khrustalyov, Meu Carro!, lançada em 1998.
O complô dos médicos judeus
Um dos fenômenos associados ao cinema, desde os primórdios, é a capacidade de transporte que oferece ao espectador, transporte mental e psíquico – na terminologia contemporânea, a famigerada imersão, aquele mergulho que arrasta nossos sentidos para uma atmosfera outra, para além do imediato que nos circunda.
Como isso se dá, como os filmes são capazes de construir uma fenomenologia da percepção – foi e é tema de longos e acalorados debates.
O que importa aqui é destacar a imersão particular que se depreende de Khrustalyov, Meu Carro!, o longa que Aleksei German completou em plena Rússia pós-comunista de Boris Yeltsin. Durante as quase duas horas e meia de ação, ingressamos numa outra Rússia, aquela da longa ditadura stalinista, exatamente no curto e dramático momento de transição – a morte de Stálin, no início de março de 1953.
Delineado em roteiro que German escreveu com sua esposa, Svetlana Karmalita – por sua vez inspirado de texto do poeta Joseph Brodsky sobre a vida comunal em um apartamento soviético – Khrustalyov, Meu Carro! tem como marco temporal os últimos dias de grande Líder, quando, debaixo do frio moscovita, Stálin exalou seus derradeiros delírios paranoicos, o “complô dos médicos” – uma conspiração de médicos judeus, apoiada pela CIA, em vias de assassinar os principais quadros do Partido Comunista, inclusive ele próprio.
Nosso protagonista é Yuri Klenski – um corpulento bigodudo sem um fio de cabelo, general e neurocirurgião, extrovertido e pândego – que administra família e agregados no caos do lar, ao mesmo tempo em que chefia um hospital cheio de doutores igualmente pândegos e pacientes à beira da histeria. A descrição remete a um tipo de encenação própria de um teatro farsesco, muita gente em cena, passando pelo olho da câmera – testemunhos oculares da paranoia reinante.
Afinal, como reproduzir a vida soviética nos últimos dias de Stálin? Fotografia preto-e-branco em alto contraste, câmera na mão acompanhando o frenesi, cenários claustrofóbicos e camadas dissonantes de pista sonora – pode ser uma alternativa. Claro, não é uma evidência imediata decodificar tudo isso, e cabe ao espectador deixar-se imergir para, em algum lugar fulgurante, captar a vibração histórica das imagens e sons propostos.
Numa época em que o controle sobre qualquer tipo de informação pública era ferreamente exercido, Stálin sofre um derrame devastador e alguém tem de cuidar – sobra para Yuri Klenski, que além de médico é judeu dotado de insaciável apetite sexual. Se foi perseguido, preso, torturado e sodomizado durante o “complô”, não importa – é ele quem vai checar a saúde do Grande Líder.
Paradoxalmente, o enredo de Khrustalyov, Meu Carro! é linear: acontecimentos se sucedem numa linha do tempo, poucos dias gelados de fevereiro e março. Yuri bem ou mal conduz a narrativa. Mas estamos em um pesadelo: fragmentos passam a uma velocidade vertiginosa, somos levados a orientar nossa leitura sobre pedaços de vitalidade que se apresentam, carregados de farsa e sarcasmo, vulgares e brutais. Toda essa estética corrosiva é, mal resumindo, uma metáfora dos tempos obscuros e selvagens de Stálin.
Tempos psicóticos, para utilizar um termo desgastado da psicologia. O realizador, Aleksei German, disse em entrevista que se trata de uma metáfora para o terrível trauma psicológico resultado da violação anal perpetrada pelo Estado, pelos czares e pelos bolcheviques. A Rússia, enfim, é um país de extremos.
Atribui-se a Nikita Khruschov uma singular descrição do dia em que Stálin teve o derrame que o matou: Lavrenti Beria, excitado, debruçou-se sobre o corpo imobilizado do líder, acusando-o de tirania e crueldade – um breve abrir e fechar de olhos foi suficiente para que se arrependesse e ficasse de joelhos pedindo perdão.
A cena pode ter sido imaginária, mas sugere o poder aterrorizador que Stálin concentrava, fundado na racionalidade marxista-leninista e envolto em uma camada absolutista análoga à dos czares – até o sanguinário Beria o temia (de acordo com historiadores, entretanto, Beria não estava presente no leito de morte do Comandante Supremo).
Na versão de German, Yuri Klenski chega na dacha do ditador – a cena foi filmada na verdadeira dacha de Stálin, em Kuntsevo – toma um banho, recompõe-se e é recebido por Beria. Massageia a barriga inchada de Stálin, a fim de aliviar a pressão: não teve efeito, ele já estava morto. Beria beija Klenski, abre a porta e grita para seu motorista: “Khrustalyov, meu carro!”
Não sabemos, e provavelmente nunca saberemos, o que realmente se passou naquele dia na dacha. Sabemos, graças ao documentário de Sergei Loznitsa, o que se passou logo depois – o funeral faraônico de Joseph Stálin.
Deus está cansado
Vivemos em uma quadra da história que muitos chamam de pós-moderna, onde os ideais iluministas que eram defendidos durante a era moderna aparentam um indisfarçável declínio – a queda do muro em Berlim, em 1989, é lembrada como marco dessa ruptura histórica.
O projeto socialista caiu, e a globalização capitalista se impôs, para o bem e para o mal. Imagine, caro leitor, vivenciar uma transição dessas do outro lado do muro, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS: como absorver essa reviravolta e criar produtos simbólicos que possam, de alguma maneira, exprimir o jump-cut – para usar uma metáfora cinematográfica – do salto experimentado.
É Difícil ser um Deus, finalizado em 2013, último filme de Aleksei German, estabelece uma rota surpreendente para mergulhar nesse delicado assunto, a (tumultuada) passagem do tempo no imenso espaço russófono. Em um futuro distante, viajante da Terra visita outro planeta similar ao nosso, mas “800 anos atrasado”. Sua missão é ajudar o desenvolvimento da sociedade em direção ao Renascimento/Iluminismo.
O livro homônimo que serviu de base para o filme, publicado em 1964 pelos irmãos Strugatsky – os mesmos que inspiraram Andrei Tarkovski em Stalker, de 1979 – propunha-se a denunciar que religião e fé funcionam como instrumentos de opressão, inibindo o progresso científico da humanidade.
A URSS, em tese, era o resultado tangível desse progresso – o lugar privilegiado em que nasceu o “homem novo soviético”, signo do “novo mundo”, resultado concreto do processo histórico evolutivo.
Aleksei German começou a adaptar o livro ainda nos anos 1960, na vigência do comunismo. Atravessou os percalços experimentados pelo seu país até aterrissar no ano 2000, quando iniciou as filmagens (ano em que Putin chegou ao poder).
A locação foi o entorno do castelo Tocnik, na República Tcheca, os trabalhos prolongaram-se até 2006 – German faleceu nos momentos finais da pós-produção, em 2013: mulher e filho, também cineasta, terminaram o filme.
É Difícil ser um Deus não faz concessões: é pós-apocalíptico, pós-narrativo, é uma sequência de espaços-tempos sem distanciamento, é um pântano grotesco que desafia nossa razão espectatorial ao mesmo tempo que afunda nossa sensibilidade convencional num mar de lama, vermes, intestinos, excrementos, dejetos – é uma ordem visual que sugere, como notaram críticos atentos, os cenários pictóricos do formidável Hieronymus Bosch.
Lá estão crianças que brincam com cadáveres apodrecendo na chuva, lixões fumegantes, caminhos intransitáveis, e malucos semi-humanos de um submundo-tornado-mundo. Nativos locais riem compulsivamente e não param de olhar a câmera – a celebrada quarta parede dilui-se na entropia das imagens.
Nesse mundo, Deus está cansado. O Homem não parece ser a joia da criação. É Difícil ser um Deus tem um guia no movimento browniano de sua linguagem: Don Rumata (Leonid Yarmolkin), tido como filho ilegítimo de um ser divino. Ele veio da longínqua Terra para acelerar o fim do feudalismo no planeta atrasado – tal como a revolução bolchevique fez com a monarquia czarista.
Rumata, o semideus, atravessa quase todas as cenas do filme, arrogante e impaciente, no meio do conflito feudal – quando Rumata se esconde, os locais se escondem e fogem.
Por todos os lados, rostos enrugados, sorrisos maliciosos, bocas desdentadas e órbitas oculares vazias. Cenografia e câmera virtuoses promovem a imersão nesse ambiente fétido, viscoso, amoral, onde fluidos corporais em estado de ebulição se mesclam o tempo todo – um pesadelo sensualizado, misteriosamente infantilizado.
O Caos primordial reina supremo, e não há fim para ele. O nobre Don Rumata, um homem do futuro, foi concebido durante a prevalência do idealismo soviético. Uma alegoria distante do sistema, que German atualizou – e radicalizou – para a contemporaneidade do século 21, violento e demasiadamente humano.
Por alguma (boa) razão, a obra de Aleksei German está disponível no Youtube.
João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo).