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O filme de David Cronenberg, em exibição nos cinemas

Se o cinema de David Cronenberg é uma contínua reflexão sobre as interações e contaminações entre o orgânico, o mecânico e o humano, Crimes do futuro é sua obra mais radical e madura – ao menos até agora, já que esse canadense quase octogenário não para de nos surpreender.

Desta vez, conta-se a história de Saul Tenser (Viggo Mortensen), um homem cujo organismo passa a desenvolver por conta própria novos órgãos. Com sua parceira Caprice (Léa Seydoux), ele extirpa as anomalias em concorridas performances públicas.

Ao redor da dupla de artistas vai surgindo uma teia kafkiana de fiscais de órgãos, polícia de costumes e grupos clandestinos empenhados em desenvolver uma nova humanidade adaptada à degeneração natural do planeta.

Pelo menos em parte, o que torna o novo filme ainda mais desconcertante que os anteriores, correndo o risco de desagradar muitos espectadores, é sua ambientação espaço-temporal – e psicológica – imprecisa. Vou tentar explicar.

Em A mosca (1986), por exemplo, a bizarrice brotava de uma experiência de teletransporte malsucedida; em eXistenZ (1999) tratava-se de um jogo de realidade virtual; em Almoço nu (1992) o absurdo nascia da mente de um escritor alterada pelas drogas, etc.

Em Crimes do futuro estamos num terreno espaço-temporal incerto, em que a mais avançada tecnologia digital se exerce num ambiente sombrio e “antigo”, marcado pela ruína arquitetônica e por móveis e aparelhos obsoletos.

Diferentemente de um Blade runner, em que essa discrepância conferia um charme noir ao drama policial e à ficção científica, aqui a atmosfera é de pesadelo, acentuada pela ambientação noturna e soturna, em que boa parte do espaço (e dos próprios corpos) está sempre imersa em trevas.

Cirurgia e sexo
Os aparatos mais avançados de Crimes do futuro – da cama que se adapta ao corpo à cadeira que o alimenta, passando pelo console que controla as intervenções cirúrgicas – têm componentes aparentemente orgânicos, assemelhando-se a estranhos animais.

Um precursor dessa simbiose é o revólver de eXistenZ, que era feito de ossos e cartilagens animais e tinha como projéteis dentes humanos.

No universo peculiar de David Cronenberg o homem é um ser em mutação, assim como seu entorno natural e artificial.

A questão central é saber quem controla essa metamorfose: o indivíduo, o Estado, o mercado de arte, o poder econômico?

Trata-se, no fundo, de um problema político, além de moral e estético. O mais perturbador de tudo talvez seja a dimensão erótica que o cineasta vê e nos dá a ver na transformação corporal.

Algo já anunciado em Gêmeos (1988), Crash (1996) e eXistenZ e no romance Consumidos (Alfaguara), mas que agora parece atingir um apogeu, para não dizer um êxtase.

“Cirurgia é o novo sexo”, diz lascivamente Timlin (Kristen Stewart), uma perversa em roupas de crente neopetencostal.

O descompasso entre o figurino e a conduta da personagem Timlin não é a única ambiguidade em cena.

O próprio Saul Tenser, experimentador biológico, artista de vanguarda e defensor da liberdade individual, cobre-se com um hábito encapuzado de monge inquisidor, chegando a lembrar a tradicional personificação da morte.

A bem dizer, tudo é ambíguo e esquivo em Crimes do futuro, e nenhum significado se deixa apreender de forma inequívoca.

O corpo humano, para David Cronenberg, é uma máquina semovente e com vontades próprias, das quais nem sempre seu detentor tem consciência.

“Para mim, a arte é sempre uma experiência carnal. Estou sempre tentando mostrar isso na tela, de uma maneira, digamos, metafórica. O que eu quero é nos fazer voltar ao corpo.

Dizer: ‘Não nos esqueçamos do nosso corpo’”, declarou o cineasta numa entrevista à Folha de S. Paulo em 1999.

Crimes do futuro é o mais novo estágio dessa busca, uma das mais coerentes, íntegras e corajosas do cinema contemporâneo.

José Geraldo Couto

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