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O oprimido – “La Terra Trema” e “Barravento

“Podemos dizer que três tipos de filmes foram fundamentais para o desenvolvimento do Cinema Novo: os primeiros filmes de Rosselini e Visconti – Roma cidade aberta, La terra trema […] e Paisà; os filmes mexicanos de Buñuel, como Los Olvidados e Nazarin; e os filmes russos de Dovjenki e Eisenstein” (Glauber Rocha).

A influência do Neorrealismo italiano no Cinema Novo é ponto pacífico entre os estudiosos de cinema. Os realizadores brasileiros do cinema que começou a surgir no início dos anos 1960 assinalavam a importância do filme italiano do pós-guerra (ao lado das estratégias de produção a baixo custo da Nouvelle Vague).

O Neorrealismo tornou-se um modelo devido a seu modo de produção, à filmagem em cenários naturais e ao uso de atores não profissionais.

Este modelo encorajou Glauber Rocha a fazer sua famosa afirmação de que para fazer cinema um verdadeiro cineasta precisa somente de “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”.

E Nelson Pereira dos Santos a dizer que “Cinema Novo é o nosso jeito de fazer filmes com o dinheiro que temos. É como na época do Neorrealismo italiano. Aliamos os problemas de nossa realidade intelectual àqueles da economia”.

Em outra ocasião, Nelson foi ainda mais preciso em sua afirmativa acerca dessa influência europeia no cinema brasileiro independente, não industrializado: “O que me impressionou nos filmes neorrealistas não foram os temas ou seu estilo, mas o modo de produção –, eles provaram que se pode fazer filmes sem dinheiro”.

Embora esta afirmativa limite a influência do Neorrealismo italiano no Cinema Novo basicamente ao modo de produção, uma série de analogias entre ambos os movimentos tem sido feita por críticos e estudiosos.

Principalmente a tese de que o primeiro filme de Glauber, Barravento (1962), é o correspondente ao drama épico sobre pescadores sicilianos de Luchino Visconti, La terra trema (1947) – observação feita por Richard Roud, tão famosa quanto controversa.

Há vinte anos, William Van Wert rejeitou esta colocação em seu ensaio “Ideologia no Cinema do Terceiro Mundo”, dizendo que “Barravento de Glauber é frequentemente (e erroneamente, acredito) referido como o equivalente no Terceiro Mundo ao La terra trema de Visconti […] Van Wert conclui seu ensaio assinalando que “Barravento não é outro La terra trema […]”.

Qual das duas afirmativas é verdadeira – esta ou a dos oponentes de Van Wert – é algo que não trataremos agora. Entretanto, gostaria de mostrar uma leitura de Barravento e de La terra trema à luz de sua intertextualidade, já canonizada, que definitivamente pode ser vista com base em suas estruturas narrativas similares.

Analisarei ambos os filmes levando em conta a estilística, a iconografia e a ideologia como manifestações cinematográficas significativas, dentro de contextos específicos de uma transformação do cenário social e cultural.

Luchino Visconti foi, a princípio, incumbido pelo Partido Comunista Italiano de fazer um documentário sobre pescadores sicilianos que pudesse ser usado como propaganda eleitoral para o PCI.

Como se sabe, Visconti devolveu o dinheiro aos comunistas e transformou o projeto de um filme de curta-metragem em um épico de três horas de duração sobre uma família de pescadores que tenta se libertar da exploração dos revendedores locais.

Com a ajuda de dois assistentes, Francesco Rosi e Franco Zeffirelli, Visconti filmou em cenários naturais, sem atores profissionais e sem roteiro.

As pessoas escolhidas na vila siciliana falavam em sua própria língua e não foram dubladas para o lançamento do filme. Consequentemente, a maioria do público italiano não conseguiu entender o dialeto siciliano.

Visconti, por sua vez, insistiu no uso do dialeto (ao contrário de Rossellini) como um posicionamento político, pois, como o comentário em “italiano” no início do filme coloca, “a língua italiana não é a língua dos pobres na Sicilia.”

O que é particularmente interessante neste contexto é a adaptação livre que Visconti fez do romance famoso A casa junto à nespereira, de Giovanni Verga, que “construiu um estilo que acomodaria o italiano literário aos ritmos, dicção, idiomas e mentalidade da Sicilia oral”.

A criação linguística de Verga, que sugere a natureza da linguagem narrativa como a de um “coral” e “a mentalidade popular da comunidade de Acitrezza”,tem sido relacionada à noção de “discurso indireto livre”.

Essa natureza coral da linguagem torna-se significativa não só através do uso que Visconti faz do voice-over, como também se expande na narrativa, ao apresentar um efeito específico de coral: Visconti efetivamente trata a comunidade da vila como um coletivo que (ironicamente) testemunha e comenta o destino dos protagonistas revoltosos.

Este “efeito coral” será um ponto de ligação importante com o Barravento de Glauber, que discutirei adiante.

O romance aclamado de Verga conta a estória de Malavoglia, uma família pobre de pescadores de uma comunidade pequena que luta pelo pão de cada dia dentro de um contexto essencialmente imutável.

Visconti reinterpreta o romance de acordo com os problemas da Itália contemporânea (final dos anos 1940), e a partir daí sugere “que muito pouco mudou na Sicília desde que o romance foi publicado em 1881”.

Agora, gostaria de colocar que a vila Acitrezza, de Visconti, possui várias facetas da literatura que são típicas do que Mikhail Bakhtin chama de “idílio cronotopo” no romance. Para Bakhtin, o “cronotopo” é a “ligação intrínseca entre as relações temporais e espaciais”,[ onde “o tempo, seja como for, aumenta, toma corpo, torna-se artisticamente visível; da mesma forma, o espaço torna-se responsável pelo movimento do tempo, enredo e história”.

No caso específico do idílio, Bakhtin distingue muitos tipos puros como “o idílio amoroso […]; o idílio com foco no trabalho de agricultura; o idílio que lida com artesanato; e o idílio familiar”. Mas não importa quais as diferenças entre estes tipos de idílios; ainda assim, têm muito em comum.

Eles são “todos determinados por sua relação geral com a unidade imanente de tempo folclórico. Isso fica evidente, principalmente, na relação especial que o tempo tem com o espaço no idílio: um fechamento orgânico, um enxerto de vida e de eventos em um lugar, em um território familiar com todos os seus recantos e frestas, suas montanhas familiares, vales, campos, rios e florestas, a própria casa.

A vida idílica e seus eventos são inseparáveis deste recanto espacial do mundo concreto, onde pais e avós vivem e onde seus filhos e netos viverão”.

A razão pela qual citei Bakhtin é para sugerir que, apesar de “Visconti reescrever à luz de Marx” (Geoffrey Nowell-Smith), ele põe a luta de classes de seu protagonista Antônio no “idílio cronotopo” de um romance do século dezenove e o sujeita ao que Bakhtin chama de “ritmo cíclico do tempo tão característico do idílio”.

Falar de idílio à luz do sofrimento tremendo dos pescadores pode soar bizarro. Contudo, o cotidiano da vila com sua submissão às forças da natureza e à vida exposta de seus habitantes – nascimento, paixão, casamento, trabalho, morte – carregam todas as facetas do “idílio cronotopo” e sua passagem de tempo cíclica.

Além disso, a noção de tempo folclórico e seu momento antidialético inerente é reforçada pela narrativa paratáctica com a qual Visconti se comunica, estilisticamente, através de tomadas mais longas do que o comum, e filmagens complexas de grande profundidade.

Mas por que isso? Por que essa maneira especial de movimento de câmera vagaroso, os planos fixos, a total exclusão de ângulos inusitados e tomadas mais abertas, reforçam a noção de aprisionamento do personagem principal?

Afinal, Antônio tenta romper os ciclos de tempo folclórico através do desafio da tradição e da ordem social de exploração. Visconti, o diretor mais fiel às ideias do Neorrealismo italiano, testemunha essas tentativas frustradas com cuidado.

Por um lado, como Bazin observa, “Visconti […] parece que queria, de alguma forma sistemática, basear a construção de sua imagem no próprio evento. Se um pescador enrola um cigarro, ele não nos poupa de nada: vemos toda a operação; não será reduzida ao seu significado dramático ou simbólico, como uma montagem normal”.

Por outro lado, e apesar da aclamada sobriedade de imagens, Visconti atinge o que Bazin chama de “síntese paradoxal de realismo e estética”.

Nowell-Smith se refere ao mesmo fenômeno como “realismo pictórico”, que é resultado da tensão entre a alegoria ideológica de La Terra Trema e – como Sitney denomina – “a nostalgia monumental da iconografia do cotidiano na família Valastro”. Em outras palavras, “a atenção ao detalhe e ao ritmo da vida da vila frequentemente deixa a política de lado”.

O que sugiro é que Visconti – pelo menos até certo ponto –, sem querer (ou inconscientemente), reforça a noção de Bakhtin da estética inerente do “idílio cronotopo”: “A rigor”, diz Bakhtin, “o idílio desconhece os detalhes triviais do cotidiano. Qualquer coisa que se assemelhe ao cotidiano […] começa a parecer precisamente a coisa mais importante da vida.

Porém, todas essas realidades básicas da vida estão presentes no idílio, não sob seu aspecto realístico […], mas amortecidas, e até certo ponto, sublimadas”.

Embora o retrato que Visconti faz da sofredora família Valastro não nos poupe de sua miséria, há – apesar de a estória ser profundamente depressiva – certo lirismo nas imagens que subverte a alegoria ideológica, até certo ponto. Dessa forma, Visconti mostra uma determinada continuidade entre as condições do século passado, do fascismo e da Itália do pós-guerra.

Os slogans pró Mussolini, pintados após 1945, permanecem legíveis nas paredes das casas dos atacadistas.

A partir daí, Visconti claramente sugere que o novo governo dos Democratas-cristãos é não só herdeiro dos fascistas, como também comprometido com uma política que resiste a qualquer mudança séria no sul oprimido.

Afinal, Antônio, que parte para se tornar um empresário (autônomo), segue as aclamadas regras da Democracia Cristã, para abrir seu próprio pequeno negócio e correr riscos (econômicos) próprios, não da coletividade. Naturalmente, esta é uma das razões pelas quais sua resposta individualista à opressão de sua classe falha.

Por um lado, Visconti, com certeza, deve muito à tradição da ópera, principalmente na descrição das lutas sociais e emocionais. Nowell-Smith chega a ponto de sugerir que toda a narrativa é organizada como uma ópera: “o que vem da cena são os elementos da ação, o estilo do cenário, a grandiosidade e a sutileza da música […] a ação se desenrola vagarosamente, em uma série de quadros, com coro, solos e duetos”.

Por outro lado, insisto ainda no fato de que sua estética, seu “realismo pictórico”, tem raízes fincadas numa tradição literária burguesa.

Quando, no final do filme, o derrotado Antônio está condenado a voltar a trabalhar em um barco de atacadistas, há quase que uma contemplação, uma aura de algo reconfortante no fato de que – embora Antônio tenha sofrido tanto no curso da narrativa – ainda há a opção de retornar à mesmice e retomar o ritual familiar, que foi uma parte essencial da vida, por gerações e gerações.

O espírito de idílio – perversamente destorcido – sopra em volta do herói destruído.

Já em 1965, Pier Paolo Pasolini afirmava que o Neorrealismo não era – como foi, e ainda é, colocado – uma regeneração cultural; era tão-somente uma crise, “embora excessivamente otimista e entusiasta no começo.”

Na perspectiva Neorrealista, diz Pasolini: “permaneceu a expansão fictícia da linguística pascalina, que era uma dilatação do ego e um mero aumento lexical do mundo; permaneceu um populismo romântico, um modo De Amicis, se preferirmos, que foi encoberto pelas camadas culturais oprimidas pela retórica nacionalista; permaneceu por uma escolha de uma linguagem hermética, ou decadente e classificatória, ao ponto de a poética ser uma pré-condição, um lirismo a priori ao lidar com a realidade”.

O que é particularmente interessante nesta citação é como Visconti lida com atores que não-profissionais. O uso de retratos formais de família como veículo de uma aura quase sagrada relaciona-se com o personagem de Mara, a irmã de Antônio, que sacrifica seu amor para se dedicar à família. Os gestos e olhares de Mara são tão sublimes que parecem ser copiados de um retrato de uma santa. A beleza de sua pose transcende seu sofrimento.

Bazin tem apenas elogios para essa solução (ainda que elogios reveladores do que Pasolini, ironicamente, chamaria de outro “lirismo a priori no lidar com a realidade”): “Visconti vem do teatro. Soube se comunicar com os atores que não eram profissionais […] algo mais que naturalidade, uma estilização do gesto que é a coroação da conquista da profissão de um ator”.

Por uma razão me detive tanto na estilística de La terra trema e suas implicações: queria colocar o filme não só no contexto da Itália do pós-guerra e seu modo de produção, mas, acima de tudo, numa tradição (literária) que está inscrita no sistema iconográfico do texto cinematográfico.

Já sugeri algumas semelhanças com Barravento e agora vou examinar alguns detalhes do filme de Glauber – nos moldes estabelecidos até aqui para La terra trema.

Barravento abre com uma afirmativa marxista. De maneira didática, o prefácio estabelece o movimento antagônico que norteará todo o curso do filme: a contradição entre mito e modernidade, religião e economia, superstição e racionalidade.

O prefácio de Visconti – quando explica o uso do dialeto – vira a voice-over irônica do narrador, que se reflete nos eventos e emoções dos personagens em um discurso indireto livre. Glauber, por sua vez, quase paternalisticamente, explica qual é o problema da comunidade negra da Bahia que vai descrever.

Glauber é bastante explícito sobre o papel de seu filme: “Religião é o ópio do povo. Abaixo o pai! Viva os homens que pescam com redes! Abaixo as preces! Abaixo o misticismo!” Esta afirmação radical feita pelo diretor parece ser – pelo menos na minha opinião – estranhamente dissonante com o desenvolvimento da narrativa de Barravento.

A posição ambígua de Glauber com relação à religião e ao misticismo dos negros, que mais tarde se transforma em uma atitude positiva para com o candomblé, torna-se a força de seu primeiro filme.

Como Visconti, é (estilisticamente) fascinado pelo que está (politicamente) criticando. Como Visconti, demonstra certa nostalgia por um tipo de vida rural que condena como miserável.

Glauber transforma as mesmas “origens míticas”, que considera fonte do sofrimento do povo, através de uma montagem frenética. Ninguém precisaria de candomblé para usar técnicas eficazes de montagem – mas no caso de Rocha, isso não só “ajuda”, como também é usado como instrumento.

A encenação da religião dos negros (como detalhada mais adiante) torna-se parte integrante da organização da mise-en-scène de Glauber e, portanto, parte decisiva de sua estética – que é a estrutura operacional do filme.

Principalmente o uso da música tradicional é um ótimo exemplo de sua prática de dinamizar os elementos tradicionais. A fim de reforçar meus argumentos, vou descrever com detalhe as primeiras cenas (na minha opinião a melhor parte do filme), onde Rocha sobrepõe a chegada de Firmino ao processo de trabalho do povo da vila, isto é, dos pescadores.

Esta cena de pescaria começa com um plano geral, no qual a mise-en-scène é comporta de linhas paralelas. Os pescadores estão perfilados em sintonia com a costa, a água e o horizonte. A imagem está em equilíbrio. A trilha sonora, o coro tradicional do candomblé, lentamente aumenta de ritmo.

O segundo plano, também um plano geral, prepara a mise-en-scène para os conflitos da montagem: a fila de pescadores forma uma diagonal que atravessa a composição paralela da mise-en-scène.

Há dois cortes para Firmino, cujo motivo musical é uma voz em solo (já que ele não faz parte da comunidade). Glauber começa cortando o processo de pescaria de acordo com a música. O efeito é extraordinário: planos médios dos pescadores são feitos da cintura para cima e da cintura para baixo, alternadamente.

A sucessão dessas tomadas provoca um conflito eisensteiniano: em um plano, os homens mexem a rede do fundo e da esquerda da imagem para a frente e para a direta; no seguinte, fazem o inverso. Mesmo dentro de cada plano visto isoladamente existe um conflito gráfico entre a direção da água que flui e os pés dos homens que tentam se mover contra a maré.

A impressão geral desta montagem é a de que os homens nunca deixam o lugar, ao contrário, sempre iniciam o movimento de onde começaram, repetidamente. Basicamente, a impressão é a de que cada novo plano joga os pescadores de volta para onde haviam começado.

Portanto, a montagem sugere exaustão e inutilidade, uma batalha inútil com as forças da natureza. Glauber consegue fazer o que tanto causava admiração no trabalho de William Faulkner, que é o “movimento perpétuo carregado de contradições […], esta proximidade, esta busca por tomadas completas carregando toda a informação.”

Seu uso da música do candomblé reforça esta conquista: “O berimbau e o coro dos homens nos levam aos pescadores e, então, um plano deles em close é acompanhado por uma música que chama e responde com o ritmo vivo, incisivo dos tambores.

Estes indicam a natureza funcional de sua música – ela fornece ímpeto para o trabalho; mas as palavras nos remetem para sua escravidão, que expressa gratidão pelo presente marítimo que são os peixes”.

O ritmo da música do candomblé é “vivo, incisivo” e sustenta totalmente a montagem de cena dinâmica de Glauber, onde a letra da música aponta para a religião fatalista da comunidade guiada pela tradição, com sua adoração pela deusa do mar, Iemanjá.

Em outros filmes, ele claramente afirma que a música “é a voz autêntica do Brasil e de seus povos”, mas em Barravento, a música ainda é uma parte ambígua de forças antagônicas que empurram a narrativa para frente.

A estrutura operacional de Barravento – que se torna óbvia nas cenas de dança e luta – foi reconhecida pela literatura e pelo próprio diretor: “No Brasil, principalmente entre os negros, há esta representação teatral de sua própria história.

Quando retrato este aspecto não o faço por folclore, nem para aplicar as teorias de Brecht… Estou tentando fazer um filme musical, sem a estrutura de trilha sonora […] É por isso que gosto do que podemos chamar de “cinema-ópera”, Welles, Eisenstein”.

Além disso, Glauber admite que, principalmente em termos de mise-en-scène, acha o catolicismo e as religiões negras mais interessantes: “Há também o fato de que a religião dos negros criou seu próprio teatro no Brasil, sua própria estrutura dramática, técnica de interpretação, cultura e música”.

Glauber usa essas “estruturas dramáticas” próprias das religiões negras para forjar o curso da narrativa. Os protagonistas importantes, como o filho-de-santo Aruan, a prostituta Cota, Firmino e um dos pais-de-santo do candomblé, dançam em círculo e introduzem seus personagens aos espectadores através de um solo no centro.

Num plano geral, visto de cima, a comunidade aparece em um círculo – considerando-se Visconti, poderia se dizer um coral – que deixa a garota branca Naína de fora. Ela corre em direção à formação fechada, vira-se e tenta escapar. Firmino a segue e a arrasta para a dança.

Mas ainda não chegou a hora de sua integração na comunidade; ela resiste. Firmino começa a brigar com Aruan, cuja santidade constantemente desafia, e eles lutam capoeira (outro ritual artístico ao invés de “ação”).

Nessa sequência, Firmino literalmente quebra o círculo da comunidade. O cafetão vestido de branco representa o desafio do racional e a contrapartida para os fiéis religiosos da vila. Como a comunidade de La terra trema, os habitantes em Barravento estão ligados por laços de “cronotopos” folclóricos, com seu tempo cíclico.

Firmino, por sua vez, representa o homem da cidade que acredita no “tempo fragmentado, na frivolidade” da vida urbana, e sua mensagem de libertação mais tarde irá romper o fluir ritualístico dos eventos dentro da comunidade. A missão de Firmino, como a de Antônio em La terra trema, é libertar seu povo da exploração econômica, que é reforçado pela religião.

Neste ponto, parece que uma comparação mais detalhada com La terra trema, de Visconti, será útil. Até agora, a diferença estilística entre os dois diretores é óbvia: Visconti narra sua estória em estilo paratáctico com planos abertos, longos, e com profundidade de campo, o que reforça a iconografia nostálgica do cotidiano dos Valastros.

Glauber, por sua vez, conta sua estória através do uso exaustivo de montagem. Para Visconti, diz Bazin, cada imagem tem um significado próprio: “Por mais maravilhosos que os barcos pesqueiros possam ser quando deixam o porto, continuam sendo apenas barcos da vila; não como em Potemkin, o entusiasmo e o suporte do povo de Odessa, que enviava barcos pesqueiros lotados de comidas para os rebeldes”.

Eisenstein criou um simbolismo via montagem, e sua influência em Glauber torna-se óbvia sob esse aspecto.

Todas as “ações” em Barravento – como a cena da capoeira, sem falar em sua montagem brilhante – são muito mais encenadas do que representadas; são parte do que Glauber chamou de “técnica de interpretação”, mais a ideia do que vai acontecer do que o evento em si: são parte do operacional, da mise-en-scène da religião dos negros com seus códigos simbólicos.

Até Firmino, que veio para sacudir e iluminar a comunidade, tem que tomar parte no ritual.

Ele e Aruan encarnam o confronto “entre mitos e realidade, entre religião e revolução”.

São representantes de códigos simbólicos antagônicos, são quase a mostra visual da metáfora da antítese de Barthes como forças estruturais no discurso simbólico: “a antítese é a luta entre duas plenitudes colocadas ritualmente face a face como dois guerreiros armados. […]

Toda junção de dois termos antitéticos, toda mistura, toda conciliação… enfim, toda passagem através da muralha da antítese… assim se constitui a transgressão.

Essa transgressão é iniciada com a sedução de Aruan e com a sexualidade de seu corpo: “Essa transgressão não é de maneira nenhuma catastrófica […] e ainda assim sua indignação é clara.”

A secularização de Aruan – sobreposta ao ritual frenético religioso – simboliza a transgressão do sagrado para o secularizado. A tempestade de mudanças, o Barravento, está à solta. Em La terra trema, ao contrário, a tempestade que destrói o barco pesqueiro dos Valastros torna um fator destrutivo em um investimento de alto risco.

Em Barravento, simboliza profanação e perda do sagrado, mas também libertação e iluminação.

O modo particular do uso da dialética de Glauber é discutido na análise de Van Wert sobre a influência do impacto do cinema de Eisenstein. Van Wert alega que Eisenstein “cria uma síntese artificial para uma dialética basicamente hegeliana, através de uma montagem imposta pelo diretor, e não através de uma síntese denotativa dentro do filme”.

Em outras palavras, o terceiro elemento da dialética, a síntese, está ausente nos filmes de Eisenstein e é criada na mente dos espectadores. Isso é o que Van Wert chama de “síntese terminal”.

Glauber, por sua vez, substitui esta síntese terminal com o início de outra dialética: “Nenhuma simples oposição é claramente exposta ou resolvida. É dialética mais pela manutenção da conclusão estrutural de Lévi-Strauss sobre o mito: aqueles opostos irremediáveis buscam fatores (analogias) que permitem um fator mediador, que, por sua vez, torna-se um dos dois fatores opostos que permitirão um outro fator mediador, e assim por diante, até que, finalmente, o impulso intelectual por trás do mito, mas não o mito em si, morra”.

A noção de Van Wert de uma “corrente dialética”, uma dialética potencialmente aberta, parece ser bastante correta. Firmino e Cota são os iniciadores deste processo dialético. Juntos, encenam de novo a narrativa condutora do mito da deusa do mar que colocou um feitiço sobre a vila.

Iemanjá tomou suas vítimas no passado e reconciliou-se com o casto marido Aruan. Este evento foi a origem traumática que estruturou a concepção mítica do mundo e a composição social da vila.

Um dos sacerdotes conta a Naína essa estória e sua parte nela – o que resulta na posição “privilegiada” que ela e Aruan ocupam dentro da hierarquia da comunidade.

Enquanto em La terra trema, o protagonista é expulso da ordem social por causa de suas ações individuais, a exclusão, no mundo de Barravento, dá origem à narração mitológica. Firmino, com a ajuda de Cota, “reconta” a estória do mito através da “vitimização” de um dos membros da vila, de sua oferta à deusa do mar.

Quando Chico morre, o sacrifício é repetido; só que, desta vez, é profanado e secularizado ao mesmo tempo em que o corpo de Aruan se “re-humaniza”. Quando Barravento, o vento das mudanças sociais, termina, o mundo torna-se mais racional.

O que Van Wert chama de “busca de analogias, que permitem um fator mediador” são os casais homólogos Firmino e Cota, Aruan e Naína. Os iniciadores do movimento dialético transmitiram sua missão para outro fator mediador: Aruan, e sua futura mulher.

Aruan abraça a ideia de Firmino, das dimensões libertadores da vida na cidade, para onde finalmente quer ir para procurar trabalho. Naína, por outro lado, reverte completamente seu movimento: enquanto ele pretende sair da cidade, ela se inicia no ritual de Mãe Dadá.

Este passo parece bastante enigmático: Por que – depois de o feitiço (e a estrutura do mito) ser quebrado – uma branca forasteira se tornaria membro do candomblé? Toda a missão da narrativa não foi dedicada à abolição da religião? E por que uma branca?

Sobre isso só posso especular. Talvez Glauber quisesse reagir à apelação social da elite governante do Brasil, de aumentar a conscientização da população de “casar com brancos”.

O casamento de Aruan e Naína, que se tornou membro do candomblé, não só subverte o Estado Novo de Vargas com sua tentativa de reprimir o candomblé, como também faz uma aliança de uma mulher branca com as raízes da tradição africana.

Como fica demonstrado ao longo de Barravento, Glauber não mata o mito em si, como Van Wert o coloca, mas o impulso intelectual por trás dele. O condutor mítico da narrativa como um instrumento de exploração, isto é, o impulso intelectual que mantém a classe oprimida dos donos de redes foi “re-encenado” e “re-lido”.

Ao longo de todo o processo, Glauber usou “instrumentos de interpretação” da religião negra para reexaminar a própria religião dos negros.

Ao encenar os elementos da tradição e dinamizá-los via montagem, ele expulsa seu significado opressivo inerente sem “matar” sua forma, ou seja, seu ritual.

Minha conclusão, depois de comparar La terra trema e Barravento, é a seguinte: ambos, Visconti e Rocha, estão criticando uma situação política com a qual não concordam.

Ambos começam com uma sociedade em que partes marginalizadas dela são exploradas, e ambos tentam analisar as razões e condições dessa opressão.

Ambas as “análises” são levadas a cabo através do uso de registros estilísticos fundamentados em tradições operacionais específicas.

Particularmente, a estética de Visconti – seu “realismo pictórico” – é profundamente enraizada na mesma tradição que ele acusa de opressão de classes, a tradição burguesa que, neste caso, não se espelha nos mecanismos de exploração – como Lukács alegaria –, mas esteticamente os “disfarça” através da contemplação em que uma certa dose de nostalgia está inscrita.

Glauber, por outro lado, critica a visão mágica do mundo e sua relação com a organização social, mas o faz apoiando-se estilisticamente em uma tradição operacional – uma tradição (a religião negra) que vem sendo marginalizada ao longo da história.

A partir daí, o estilo visual de Glauber, ao contrário do de Visconti, fica ao lado da história do oprimido, mesmo que o preço seja o de não se livrar da religião, do ópio social.

*Alexandra Seibel é doutora em Cinema pela New York University. Autora, entre outros livros, de Visions of Vienna: Narrating the City in 1920s and 1930s Cinema (Amsterdam University Press, 2017).

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