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Trama Fantasma

Trama Fantasma

Foi muito venturosa para o cinema a aparição de Paul Thomas Anderson, dono de um mundo tão estranho quanto fascinante, descobridor ou impulsionador dos melhores atores e atrizes (ninguém em são consciência se atreveria a qualificá-los de coadjuvantes) que começaram a trabalhar nos anos noventa, autor de duas obras-primas sem prazo de validade, que evidenciam um talento fora do comum. São elas os perturbadores Boogie Nights e Magnólia, retratos complexos, tragicômicos, brutais e piedosos de gente à deriva, atormentada por seu passado ou por seu presente, viciados até o paroxismo em nome da sobrevivência, profissionais da pornografia no primeiro, testemunhas de um surreal, apocalíptico e redentor dilúvio de sapos caindo do céu sobre Los Angeles no segundo. Diante de qualquer filme que leve a assinatura desse homem, você sabe que vai encontrar propostas inevitavelmente insólitas, uma linguagem visual muito poderosa, raridades com pedigree. O que não impede que alguns deles me pareçam intragáveis, como essas bobagens com vocação brincalhona e excêntrica intituladas Embriagado de Amor e Vício Inerente. Tampouco suporto o interminável e delirante desenlace de Sangue Negro, nem o alcoolismo histriônico e agressivo representado pelo sempre chapado Joaquin Phoenix (e ao seu lado um Philip Seymour Hoffman genial, como sempre) no atraente, mas também irregular, O Mestre.

Apesar do seu status privilegiado no cinema de arte norte-americano, e de ser o queridinho de uma crítica apaixonada, nunca tinha recebido muitas indicações ao Oscar. Com Trama Fantasma, conseguiu um monte delas: o longa foi indicado a seis categorias no Oscar 2018, entre eles o de melhor filme, melhor diretor e melhor ator, para Daniel Day-Lewis, que anunciou que esta seria sua despedida dos cinemas.

E é provável que acabe sendo ungido. Seria o triunfo da qualité, do cinema supostamente sutil e profundo, do exercício de estilo com pretensões de brilhantismo, da convicção de que existe uma história muito perturbadora por trás de outra história que parece linear, de atrevidas e lisonjeiras comparações (eu não estranharia) entre a metodologia imagética utilizada por Paul Thomas Anderson e a narrativa literária de Henry James.

O protagonista supostamente pertence à raça dos artistas absolutos, cuja vida só encontra sentido através de suas criações. Ele as desenvolve por intermédio das roupas que inventa. O que em épocas antigas recebia a intolerável denominação de alfaiates e modistas, e que a pós-modernidade reivindicou com o título de estilistas. Esse homem elegante e de semblante frio, introvertido ao extremo, protegido por um irmã todo-poderoso e vampírico, que cumpre os sonhos de rainhas, aristocratas e milionárias inventando vestidos divinos para elas, conhecerá uma mulher jovem, suave, complacente e que possui o dom de acessar a sua hermética intimidade, e com quem estabelecerá uma relação enigmática nos âmbitos sentimental e profissional. Mas o maníaco e fascinante pavão não deixa de sofrer, suas depressões são cíclicas e inexplicáveis. As aparências podem ser enganosas. Aparentemente, existem poucos vícios tão fortes quanto o sadomasoquismo. O subterrâneo, não sejamos vulgares, pois estamos falando de arte.

Em Trama Fantasma, tudo aspira a ter uma aura de mistério e múltiplas interpretações. No meu caso, não é contagioso. Os personagens sofisticados e sua retorcida relação me desinteressam do começo ao fim. Foi filmado com muita competência. E é impossível afastar o olhar desse ator sempre magnético chamado Daniel Day-Lewis, nessa que ele diz ter sido a sua última atuação. Mas permaneço como um iceberg do começo ao fim.

 

 

CARLOS BOYERO

 

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