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A indiferença com as mulheres pobres supera a maldade crua

Violências contra as mulheres

Violências, descasos, explorações e descarte de corpos subalternos, especialmente de mulheres, não costumam render manchetes.

É longa a história de como a brutalidade, a miséria, o comércio e a necessidade de acumulação vão habitar e controlar o corpo feminino. Também é persistente a ausência de cobertura jornalística e combate a essa cultura de exploração, controle e consumo sobre a existência das mulheres.

Não por acaso, os meios midiáticos contribuem para essa prática na medida em que criam e disseminam padrões, naturalizam objetificações e abdicam do aprofundamento de questões vitais. Jornalismo e publicidade colaboram na submissão do corpo da mulher à lógica do consumo, da medicina e da correção social.

Tal postura faz parte do controle da vida psicossocial das mulheres, para que se conformem à identidade desejável e, nesse sentido, são acionados certos procedimentos que determinam o que pode e o que não pode ser dito.

Mas às vezes a perversidade supera o indizível. Foi o caso do aparecimento do tema pobreza menstrual e da maldade crua de um governo perverso. A pobreza menstrual ganhou o debate público.

A perversidade colocou a menstruação nas manchetes. Será que é uma pauta que veio para ficar ao lado de outras problemáticas que desafiam papeis e utilidades?

Nos reinos bárbaros da Europa e na alta Idade média, os senhores podiam emprestar esposa ou filhas. A prostituição ocasional em períodos de guerra e fome e como destino das aprendizes de artesãos e comerciantes era regra.

Na Alta Idade, tavernas e albergues se confundiam com prostíbulos. Mulheres da Grécia e Oriente Médio eram traficadas como escravas pelos mercados de Arles e Avignon e vendidas em bordeis, inclusive bordeis públicos, bordeis associados à Igreja, bordeis municipais que mantinham rotinas degradantes, persistindo esse comércio por toda a Idade Média (Flores, 2019).

O livro Calibã e a bruxa, de Sílvia Federici  faz uma minuciosa análise histórica mostrando que a discriminação contra as mulheres na sociedade capitalista não é o legado de um mundo pré-moderno, mas sim uma formação do capitalismo, construída sobre diferenças sexuais existentes e reconstruídas para novas funções sociais.

Nesse percurso, a autora visita a caça às bruxas dos séculos XVI e XVII, a ascensão da família nuclear, a apropriação estatal da capacidade reprodutiva das mulheres e o processo pelo qual o corpo proletário foi transformado em uma máquina de trabalho.

A autora chega ao século XXI, passados 500 anos de exploração capitalista, observando que a globalização ainda é movida pelo estado de guerra permanente, pela destruição de nossa riqueza comum e pelo alto preço que cabe às mulheres pagar, com aumento de violência de gênero e o peso do empobrecimento e de várias formas de despossessão.

Federeci defende que o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência, “na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos Homens, forçado a funcionar como um meio de reprodução e acumulação de trabalho”.

Isso explica a importância que o corpo feminino adquiriu em todos os seus aspectos- maternidade, parto, sexualidade-tornando mais complexa a ideia de um corpo apenas na esfera do privado, mas reconhecendo que existe uma política do corpo. Conforme as crises econômicas e demográficas haverá um disciplinamento das mulheres, a partir de elementos da sua própria feminilidade, com criação de preconceitos, tabus e proibições.

Nessa lógica se inscreve todo o tabu que cerca o período menstrual e o reconhecimento da indigência de tantas mulheres para conquistar o mínimo de dignidade diante dos seus ciclos naturais.

Garantir políticas de amparo e saúde, de acesso à higiene e de autonomia não se trata meramente de dar condições para que trabalhem ou estudem, mas sim de dignidade, respeito e reconhecimento. Essas complexidades não serão encontradas em matérias jornalísticas como regra.

Ainda assim, ter esse tema candente no debate público e ter repulsa à negação de uma política pública essencial à equidade e dignidade das mulheres mais vulneráveis é um avanço.

Em agosto deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4968/2019, da deputada Marília Arraes (PT-PE), que prevê a distribuição gratuita de absorventes para estudantes de baixa renda, mulheres em situação de vulnerabilidade e detidas.

O projeto em si não ganhou tanta repercussão, mas o veto da Presidência da República gerou revolta e estarrecimento.

A decisão ganhou espaço e cobertura incluindo o aprendizado do conceito “pobreza menstrual” que segundo a Unicef  é a situação vivenciada por meninas e mulheres devido à falta de acesso a recursos, infraestrutura e conhecimento para que tenham plena capacidade de cuidar da sua menstruação e que  pelos dados da ONU , no Brasil, atinge 25% das meninas entre 12 e 19 anos.

A atitude do Presidente incendiou as redes sociais e ganhou os noticiários. Uma busca no Google, na categoria Notícias, cruzando as palavras menstruação, Bolsonaro e absorventes, encontrou 3350 resultados. Como mero exercício de observação, foi pesquisado um dos veículos de referência no país, o jornal Folha de São Paulo.

O termo menstruação encontrou 1436 resultados de 1994 para cá, sendo que em setembro e uma parte de outubro foram nove matérias (ou colunas de opinião). Já o termo pobreza menstrual encontrou 16 menções.

A primeira matéria sobre acesso a absorventes é de 17 de março deste ano, mostrando que o assunto começava a ganhar interesse. Uma das reportagens no Painel do Leitor desafia as leitoras a contar sua história de pobreza menstrual:

“você já sofreu com a falta de absorventes? O que fez? Conte a sua história”.

Nos comentários, um homem escreveu algo um tanto óbvio: “quem sofre com esse problema não tem acesso ao jornal”.

Uma das ênfases do jornal foi retratar a reação de celebridades ao veto, reproduzindo postagens de famosas em suas redes sociais. As matérias apresentaram dados, mostraram iniciativas de organizações e ativistas que distribuem absorventes, mas não ouviram mulheres e meninas privadas do recurso básico.

Muito menos outras vozes populares que padecem de várias carências e que têm as próprias percepções das dificuldades em lidar com ciclos do corpo feminino. Mas o jornalismo enfrentou o tema. Bem diferente dos meios de comunicação institucionais do Governo Federal.

No site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não há nenhuma notícia contendo o termo pobreza menstrual.

Há 73 resultados da busca, mas todos são documentos e recomendações em formato PDF. Desses documentos, o mais recente é de 12 de janeiro de 2021, uma recomendação do Conselho Nacional de Direitos Humanos que  se dirige ao presidente e ao Congresso sugerindo a criação de política nacional de superação da pobreza menstrual.

O plenário do CNDH aprovou a recomendação justificando que a pobreza menstrual afeta milhares de meninas e mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade social no Brasil, como presidiárias e mulheres em situação de rua, por exemplo, e se caracteriza pela falta de acesso a produtos higiênicos adequados durante o período menstrual.

O documento refere que em 2014, no Dia Internacional de Luta das Mulheres, a Organização das Nações Unidas – ONU reconheceu que o direito das mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos.

Naqeule ato aprovado, o CNDH recomenda aos chefes dos poderes Executivo e Legislativo a criação de uma política nacional de superação da pobreza menstrual, para garantir que itens como absorventes femininos, tampões íntimos e coletores estejam disponíveis para todas as mulheres e meninas, privilegiando itens que tenham menor impacto ambiental.

A Recomendação nº 21, de 11 de dezembro de 2020, apreciada pelo colegiado durante a 14º Reunião Extraordinária, recomendou, ainda, a aprovação do Projeto de Lei n.º 4.968/19, que propõe fornecimento de absorventes higiênicos nas escolas públicas e do Projeto de Lei 3.085/19, que prevê isenção de imposto para os absorventes femininos.

No site da EBC a busca pelos termo pobreza menstrual não encontrou nenhuma referência. Já no site da Agência Brasil, foram seis resultados, sendo que nenhum refere ao veto do Presidente, um menciona a aprovação na Câmara da oferta gratuita de absorventes e os demais registram iniciativas regionais de distribuição de absorventes para estudantes.

 Como destaca a Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadoras com Visão de Gênero e Raça, filiada à Red Internacional de Periodistas conVisión de Género, no Brasil, não existe legislação ou política voltada para a comunicação da perspectiva de gênero na mídia.

O surgimento de uma imprensa feminista no país ocorreu no final da década de 1970 – o Jornal Brasil Mulher.O surgimento da imprensa feminista abriu espaço para o despertar das ideias feministas durante o fim da ditadura militar abordando a luta pela anistia, demandas por creches, por liberdades democráticas e questões relacionadas à violência doméstica, condições de trabalho das mulheres, direitos reprodutivos, aborto e sexualidade.

De lá para cá, a diretriz de gênero e perspectiva feminista vêm avançando, sobretudo em iniciativas alternativas (como por exemplo o Instituto AzMina, que atua na área de jornalismo, tecnologia e informação contra o machismo), fora da mídia corporativa, com iniciativas de  advocacia junto ao governo federal para a formulação de políticas públicas voltadas à comunicação e gênero.

Não é dispensável sublinhar que as tentativas de avanço ocorrem em um ambiente absolutamente hostil no país para o jornalismo e especialmente para as mulheres jornalistas. Segundo dados da  Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ), em 2019, explodiram os ataques à imprensa, devido à atuação frequente e sistemática do presidente do país.

Foram registrados 208 casos de violência, sendo 114 de descrédito da imprensa e 94 de agressões diretas a profissionais – um aumento de 54,07% em relação a 2018, quando ocorreram 135 casos.

Nesse contexto, o presidente do Brasil acumula, sozinho, 121 casos, o que corresponde a 58,17% do total, sendo responsável por 114 descrédito da imprensa, por meio de agressões a veículos e profissionais, além de sete casos de agressões verbais e diretas ameaças a jornalistas.

No que se refere à violência de gênero, segundo o relatório, 26% das vítimas de violência no exercício profissional são mulheres.

Esse é o mesmo Presidente que patrocina a indiferença ao drama da pobreza menstrual.

Simbolicamente, ciclos passam, sangramentos desparecem e a vida se reproduz fora da barbárie, mas o primeiro mandatário da nação continua na sua guerra contra tudo e todos que estão fora do seu controle, resistentes assediados em nome da civilização, da democracia e dos direitos da Constituição que ele faz sangrar todos os dias.

Sandra Bitencourt, jornalista, doutora em Comunicação e Informação, é pesquisadora do grupo de pesquisa Núcleo de Comunicação Pública e Política (NUCOP).

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