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A política externa brasileira ficou a reboque das emoções, ressentimentos e ciúmes pessoais do presidente

Vista sombria do Itamaraty

Se perguntarem a uma criança de cinco anos se a professora é bonita, ela responderá sim se gostar dela. Se não gostar, dirá que não é bonita. Uma criança com menos de sete anos não tem racionalidade desenvolvida para dizer: “ela é bonita, mas eu não gosto dela”.

Ou então: “eu gosto dela, mas ela não é bonita”. Uma criança não consegue compreender a complexidade e não separa a razão da emoção.

Jair Bolsonaro, muitas vezes, comporta-se como uma criança e não consegue fazer um raciocínio complexo. Para ele, não há adversários políticos, há amigos ou inimigos. Ele gosta de Donald Trump, apoiou o governo Trump que afirmou haver ganhado a eleição. Como ele gosta, Trump tem razão.

Houve fraude na eleição, Joe Biden perdeu e fraudou o resultado. Bolsonaro declarou isso oficialmente depois de concluída a eleição nos EUA.

O presidente do Brasil disse que houve fraude na eleição e que Trump venceu. Ele repetiu isso, meses depois, para uma delegação americana oficial que recebeu em Brasília.

O presidente brasileiro foi um dos últimos a reconhecer o governo de Joe Biden, repetiu várias vezes a mentira da extrema direita que, inconformada com a derrota, inventou a fraude.

O então Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que se notabilizou pela mediocridade e ignorância, chegou a demonstrar simpatia pela invasão do Capitólio em Washington.

Na abertura da Assembleia Geral da ONU em 2019, Bolsonaro tinha a expectativa de cumprimentar Joe Biden para melhorar sua relação, mas Biden entrou no Plenário por outra porta para evitar o contato.

Na Europa, Bolsonaro foi humilhado com o desprezo dos principais governos europeus. O presidente da França chegou a receber Lula com o cerimonial adotado para chefe de Estado.

Lula discursou no Parlamento Europeu e foi recebido pelo então futuro primeiro-ministro da Alemanha.

Para romper o isolamento diplomático do Brasil, tratado como pária pelas principais nações ocidentais, Bolsonaro decidiu ir à Rússia encontrar Putin, e depois visitar o regime fascista da Hungria, onde se sentiu em casa.

Mas na Rússia, pagou um preço. Fez cinco testes de Covid, ficou meio recluso no hotel, teve de homenagear os soldados soviéticos que lutaram na guerra contra o nazismo – sua ideologia de coração – e fez declaração de apoio a Putin em plena crise com a Ucrânia.

Putin tem lá suas razões. Está sendo cercado por bases militares americanas, via OTAN.

A Ucrânia, fronteiriça à Rússia, entrando na OTAN, receberia foguetes americanos apontando para o território russo. É verdade que alguns países europeus não apoiam a Ucrânia na OTAN, mas, de qualquer modo, os EUA já têm bases militares em vários países da Europa Oriental, como, por exemplo, a Romênia e Polônia.

A instalação polonesa, localizada perto da vila de Redzikowo, fica a 160 quilômetros do território russo e a apenas 1.300 quilômetros da cidade de Moscou que seria atingida por um míssil em pouco tempo.

O senador americano Bernie Sanders declarou: “Será que os EUA aceitariam uma aliança militar entre o México e a Rússia?” E a deputada de Nova York, Alexandria Ocaso-Cortez culpou o complexo industrial-militar americano, “faminto de receita” depois da retirada do Afeganistão.

A Rússia chegou a seu limite, como demonstra a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 para, segundo Putin, assegurar a autonomia das províncias separatistas de Donetsk e Luhansk, de língua e cultura russas.

A questão de fundo no conflito Rússia-Ucrânia-EUA é o gasoduto que liga a Rússia à Alemanha.

Essa parceria comercial vai necessariamente gerar uma parceria política, cultural e turística entre esses dois países, tornando desnecessária a OTAN e as bases militares americanas com seus mísseis apontando para a Rússia.

A Alemanha tenderia a puxar a Europa para se aproximar da Eurásia.

Mas nada disso interessa a Bolsonaro. Ele só pensa na reeleição e tudo indica que foi à Rússia pedir apoio eleitoral a Putin, o mesmo apoio concedido a Trump na eleição de 2016, quando a Rússia foi acusada de desencadear uma ofensiva de cyber ataque de fake news para apoiar Trump.

Mas Putin apoiou Trump porque tinha interesse em enfraquecer a Europa, assim como Trump que, com seu nacionalismo isolacionista e seu combate à multilateralidade, tentou enfraquecer a União Europeia.

Não vejo muito interesse de Putin em apoiar Bolsonaro, mas nunca se sabe, a política internacional tem seus mistérios.

Chamou a atenção de todo mundo a declaração oficial de Bolsonaro apoiando Putin em plena crise da Ucrânia.

O porta-voz da Casa Branca já disse que o Brasil está “do outro lado”. O Itamaraty, com sua reconhecida tradição de inteligência só rompida no governo Bolsonaro, se encontra em palpos de aranha para explicar que Bolsonaro não disse o que ele disse.

A bem da verdade, política externa independente, em função do interesse nacional, só tivemos mesmo nos governos do PT.

Depois do golpe do impeachment da então presidente Dilma – que não cometera nenhum crime – o Brasil retornou à sua tradicional posição de automático alinhamento unilateral com os EUA.

As duas Forças Armadas realizam operações conjuntas de treinamento desde 1960. Brasil e Estados Unidos têm parcerias nas áreas do ensino e instrução militar.

As Forças Armadas brasileiras participam de intercâmbios de instrutores com militares americanos e promovem a realização de diversos cursos e estágios para militares brasileiros nos EUA e vice-versa.

E, segundo consta, as Forças Armadas brasileiras costumam receber dos EUA algum equipamento militar obsoleto.

O isolamento político de Bolsonaro no mundo levou-o a aceitar o convite de Putin para visitar a Rússia.

Enfim, um presidente que gosta dele. Enfim, ele ia dar o troco no Biden. Levou na sua comitiva alguns generais que sempre apoiaram a vassalagem brasileira em relação aos EUA.

Com a crise na Ucrânia, o momento não era propício. E Bolsonaro ainda piorou a situação declarando oficialmente apoio a Putin.

Provavelmente, ele não tem consciência das implicações políticas de seus atos, muito menos no cenário internacional que ele via como um confronto entre os neofascistas de extrema direita – com quem se identifica – e os democratas de esquerda ou direita, seus inimigos.

O fato é que o Itamaraty se encontra agora numa situação muito difícil, impossível de ser consertada no atual governo.

O Brasil, casado com os EUA e seu vassalo fiel, cometeu adultério.

A política externa brasileira ficou a reboque das emoções, ressentimentos e ciúmes pessoais do presidente.

Biden não gosta de mim, logo ele é ruim. Putin gosta de mim, logo ele é bom. Esse tipo de raciocínio escandaliza qualquer um, particularmente quem tem noção de pensamento complexo, conceito desenvolvido pelo filósofo francês Edgard Morin.

Com a vitória eleitoral de Lula aparentemente assegurada, se não houver golpe palaciano contra a eleição ou seu resultado, o Brasil voltará a ter uma política externa independente e madura.

O novo governo terá de reconstruir a ótima imagem internacional que o Brasil tinha, e que foi jogada no lixo, assim como reconstruir tudo o que foi destruído na educação, saúde, ciência, cultura, meio ambiente, direitos humanos etc.

Enfim, reconstruir as políticas públicas e as instituições democráticas estraçalhadas nos últimos anos, rompendo assim com o impasse, doméstico e internacional, que sufoca o Brasil desde o advento do atual governo.

*Liszt Vieira é professor aposentado da PUC-RJ. Autor, entre outros livros, de Identidade e globalização (Record).

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