Recordemos a metáfora da curvatura da vara utilizada por Lênin: quando a vara está muito inclinada numa direção, se queremos encontrar o ponto de equilíbrio, é preciso incliná-la, primeiro, até ao extremo oposto. Lênin herdou este método de Marx. Um debate entre posições opostas, não se resolve produtivamente pela via das mútuas concessões.
Em um primeiro momento, para esclarecer as diferenças e reduzir as margens de erro, o melhor caminho é desenvolver cada uma das posições até ao extremo, para conferir quanto e quais das hipóteses iniciais se sustentam.
As forças que explicam os fluxos e refluxos das lutas sociais, as inflexões inesperadas, as longas estagnações, as bruscas acelerações e, de novo, a terrível lentidão das mudanças que não vêm, até que se precipitam transformações vertiginosas, quase como uma surpresa, não se revelam com facilidade.
A história conhece os movimentos de superfície, e as transformações nas camadas tectônicas mais profundas. O regime politico construído desde o fim da ditadura, a chamada Nova República, está ameaçado pelas investidas bonapartistas, mas ainda não ruiu.
Estamos em uma situação reacionária, porém, não contra revolucionária. Tampouco estamos em uma situação pré-revolucionária em que se abre a oportunidade de derrubar o governo, convocando o Fora Bolsonaro.
Este governo de extrema-direita não foi um acidente histórico.
Só foi possível porque aconteceu uma derrota séria. Acidentes históricos são compreendidos, em uma tradição teórica hegeliana, como fenômenos imprevistos, acasos, uma “ironia” da história, portanto, sem consistência duradoura.
Bolsonaro e a corrente neofascista que lidera são uma extravagância perigosa, mas, desde 2016 era uma candidatura favorita para chegar ao segundo turno de 2018. Nunca foi o melhor inimigo a ser derrotado. Mas sua eleição não foi, tampouco, uma derrota histórica.
Uma derrota histórica define um quadro estável duradouro da relação social e política de forças por um longo período. Ainda há reservas sociais e políticas na esquerda brasileira para deter Bolsonaro, e tudo que seu governo significa.
Existem debates históricos encerrados, e outros que estão em aberto. As interpretações sobre a derrota do Quilombo de Palmares, dos paulistas na Guerra dos Emboabas, da Inconfidência Mineira, da Confederação do Equador, de Canudos, ou do governo Jango Goulart em 1964 são debates instigantes sobre derrotas devastadoras, mas discussões encerradas.
A discussão das derrotas acumuladas nos últimos cinco anos têm, também, uma dimensão histórica, mas permanece em aberto. Trata-se de um debate de importância estratégica. Isso quer dizer que dele depende o futuro.
As três grandes batalhas políticas da última década foram as Jornadas de Junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff de 2016, e as eleições de 2018.
Perdemos todas, mas a relação entre os três processos é a chave da situação atual. Existem, grosso modo, três interpretações na esquerda brasileira sobre o significado do governo Bolsonaro.
Elas são incompatíveis. O debate entre as três pode e deve ser, intelectualmente, honesto. Entre as três há, também, posições intermediárias que fazem, como sempre acontece, mediações. Mas são três as grandes narrativas, em perspectiva histórica.
A primeira posição defende que junho de 2013 inaugurou uma onda conservadora, e abriu o caminho para uma ofensiva burguesa em 2015/16 que derrubou o governo Dilma Rousseff, criminalizou e prendeu Lula. O governo Bolsonaro resultou, essencialmente, de uma reação às reformas progressivas dos governos de coalizão liderados pelo PT, ou seja, de seus acertos.
A segunda considera que junho de 2013 foi uma mobilização democrática progressiva; as mobilizações contra a corrupção em 2015 estavam em disputa; e o governo Bolsonaro resultou, fundamentalmente, dos limites e dos erros dos governos do PT.
A terceira sustenta que as jornadas de junho de 2013 estavam, socialmente, em disputa, mas que as mobilizações da classe média em 2015/16 eram, politicamente, reacionárias.
Defende que o giro do governo Dilma Rousseff para o ajuste fiscal que produziu uma recessão econômica catastrófica, provocou desmoralização social entre os trabalhadores; concluindo assim que o governo Bolsonaro só foi possível em função de derrotas acumuladas pelos erros da direção do PT, mas seu significado histórico repousa numa reação burguesa, em escala continental, impulsionada pelo imperialismo.
A maioria do campo petista-lulista explica este processo como reação às reformas progressivas que foram feitas durante treze anos. Ou seja, foram derrotados pelos seus acertos, e não pelos seus erros. A ideia impressiona porque tem um grão de verdade. Nenhum governo, porém, é derrotado quando acerta.
Este campo identifica o início da ofensiva reacionária nas jornadas de junho de 2013, contextualiza o giro da burguesia para o impeachment na pressão de Washington, sublinha o papel das agências de inteligência e serviços secretos (a fórmula das guerras híbridas), adverte que o deslocamento da classe média seria produto de um incontível ressentimento social, e explica a debilidade da mobilização popular contra o golpe pela reestruturação produtiva.
Vê uma continuidade ininterrupta da dinâmica da luta social entre as Jornadas de Junho de 2013, as mobilizações pelo impeachment de 2015/16, as lutas contra Temer e a prisão de Lula, culminando com a eleição de Bolsonaro.
A análise se restringe a uma avaliação da evolução desfavorável da relação social de forças, desconsiderando as variações que a relação política de forças conheceu nesses cinco anos.
Quando aceita atribuir sentido à luta política, capitula a versões de teorias de conspiração. No aniversário dos seus quarenta anos a direção do PT abraça um discurso ideológico fatalista circular de auto justificação. Perdemos porque nossos inimigos eram mais fortes.
A segunda análise tem expressão em correntes da esquerda radical que vê, também, uma continuidade ininterrupta da dinâmica da luta social ao longo destes cinco anos, mas de signo oposto.
Por isso defende o Fora Bolsonaro como campanha política prioritária. A miopia tem o efeito inverso.
Despreza o peso acumulado das derrotas na consciência da classe trabalhadora, e sobrevaloriza as tensões do governo Bolsonaro com frações da classe dominante.
Desconsidera que prevaleceu a insegurança política na hora de lutar contra a reforma de previdência. Destaca, entretanto, os conflitos entre o governo de extrema-direita e o Congresso, o STF, e a mídia empresarial.
Explica o governo Bolsonaro como um acidente histórico. A eleição de Bolsonaro pode ser descrita como um acidente histórico, porque não era o candidato preferencial da burguesia.
Mas a ofensiva de golpes institucionais em Honduras, Paraguai, Brasil e Bolívia, não. Ela obedece a um projeto estratégico do imperialismo na America Latina.
O governo Bolsonaro só foi possível em função de um processo de acumulação de derrotas dos trabalhadores na luta de classes, anterior às eleições de 2018. Nesse contexto, o governo Bolsonaro se beneficia de uma grande unidade burguesa, e do apoio da maioria da classe média.
A terceira análise é aquela que identica melhor, dialecticamente, as contradições sociais e políticas do processo. A evolução política entre 2013 e 2018 não foi linear. As mobilizações de junho de 2013 foram um campo de batalha em que tudo estava em disputa, e o desenlace muito longe de estar pré-determinado. Tanto que Dilma Rousseff venceu as eleições em 2014.
Já as mobilizações de 2015/16 foram, desde o início, uma explosão de fúria reacionária da classe média. Um deslocamento tão reacionário que abriu o caminho para que a extrema direita, até então muito marginal, pudesse se transformar em um movimento com influência de massas.
Não é necessário um exercício de contrafactuais, recorrendo a hipóteses do que poderia ter acontecido se o governo do PT não tivesse apostado em Joaquim Levy como neutralização in extremis das pressões burguesas em 2015, para concluir que o governo Bolsonaro não era inevitável. Mas tampouco é correto concluir que foi um acidente histórico.
Não fosse Bolsonaro, seria outra liderança. A eleição de Bolsonaro é incompreensível sem a Lava Jato, a prisão de Lula, a facada em Juiz de Fora, e tem portanto, muito de aleatório, fortuito, contingente.
A ruptura da burguesia brasileira com o governo Dilma Rousseff, não.
Mas esta ruptura não se explica pelo Bolsa-Família, nem pelo Minha casa, minha Vida, nem pela expansão da rede federal de ensino, nem pelo Luz para todos. Ela obedeceu a um projeto estratégico de reposicionamento do capitalismo brasileiro no mercado mundial.
Uma análise marxista deve considerar diferentes níveis de abstração. O estudo da relação social de forças busca identificar na estrutura da sociedade as posições respectivas das classes em luta.
A investigação da relação política de forças procura compreender a esfera da superestrutura onde a luta social se expressa por meio de representações: as instituições do Estado, as distintas organizações, os partidos, a mídia, o mundo da cultura, etc.
Não há sempre coincidência perfeita entre a relação social e a relação política de forças, embora haja tendência à confluência. Neste momento, a relação social de forças está um pouco pior que a relação política de forças.
Ao longo do primeiro ano do governo Bolsonaro surgiram tensões com o Congresso, o STF, alguns dos principais grupos de midia comercial em torno de diferentes temas.
Foram variados os choques, as desavenças, até algum tumulto diante de inciativas esdrúxulas do núcleo neofascista. O secretário de cultura foi demitido.
Estas crises na superestrutura não iludem que estamos em uma situação reacionária. Prevalece uma unidade burguesa no apoio ao governo, ainda com sustentação majoritária na classe média.
Pesquisas de opinião são um indicador significativo da variação dos humores na sociedade, mas somente uma variável, entre outras, para aferir as relações de forças. A situação é reacionária, mas não sofremos uma derrota histórica. A resistência em 2020 pode se elevar a um patamar superior ao de 2019.
Valério Arcary é professor titular aposentado do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia)