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As pessoas não são, naturalmente, boas, são complexas.

São capazes de ações sublimes ou desprezíveis, de cooperação e conflito.

VALERIO ARCARY

A pandemia que nos ameaça está impondo a necessidade emergencial de uma experiência social única na história. Bilhões de pessoas estão confinadas dentro de casa como nunca antes na história.

As sociedades estão testando os limites de sua disciplina e coesão social. As gigantescas metrópoles são hoje um laboratório de nossa capacidade de adaptação a condições extremas.

O grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela sua atitude diante dos mais vulneráveis. Neste momento, o perigo de morte é maior para os idosos e para os mais pobres.

Mas a depressão que desmoronará sobre a economia mundial em escala sem precedentes castigará, indistintamente, centenas de milhões de trabalhadores. Em alguns meses, nada será como antes.

A catástrofe que nos cerca não é, contudo, um acidente natural. A hipótese mais provável, reconhecida pelos especialistas, é que o contágio do coronavírus poderia ter sido evitado.

Só foi possível porque uma expansão irrefreada de cobiça foi além de todos os limites. Será que a ganância não seria intrínseca à natureza humana?

Uma condição humana perversa e/ou imutável tem sido o argumento para denunciar o projeto socialista como uma utopia “fora da história”.

Mas a disjuntiva trágica, colaboração e conflito, que encontramos em toda a história permitem imaginar um futuro em aberto.

A premissa marxista é que em uma sociedade socialista, em que as necessidades mais intensamente sentidas estejam satisfeitas, erguida sob valores como a solidariedade e a compaixão, haveria menos razões para rivalidades, brigas, e disputas. Não seria paradisíaca, evidentemente. Seria superior.

Marx rejeitava vigorosamente uma interpretação da história baseada em padrões de comportamento social humano rígido. Argumentou que a humanidade reinventou permanentemente a si própria por meio do trabalho e da cultura. A natureza humana seria um processo ininterrupto de transformações adaptativas.

A ideia de uma natureza humana malvada e invariável – o homem como lobo do homem – fundamenta a justificação do capitalismo na desigualdade natural.

A rivalidade entre os homens e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso egoísta ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza incorrigível definiriam a nossa condição.

Eis o fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se.

Uma humanidade dominada pela mesquinhez, pela ferocidade, ou pelo medo não pode construir uma sociedade menos desigual e mais livre.

Aliás, corresponde a uma natureza humana, essencialmente, definida pela ganância, pelo levar vantagem, uma ordem política disciplinada, portanto, repressiva, que organize os limites de suas lutas internas como uma forma de “redução de danos”.

Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a causa da desigualdade, mas uma conseqüência da desigualdade natural.

É porque são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que, segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, existe a propriedade privada, e não o inverso.

A diversidade entre os indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. Em consequência, o capitalismo seria o horizonte histórico possível, e até o limite do desejável. Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer um poderia disputar o direito ao enriquecimento.

Esses argumentos não têm, no entanto, o mais mínimo fundamento científico. Em oposição à visão de uma natureza humana inflexível, o marxismo nunca defendeu a visão simétrica e ingênua de uma humanidade generosa e solidária.

As pessoas não são, naturalmente, boas, são complexas. São capazes de ações sublimes ou desprezíveis, de cooperação e conflito.

O marxismo não fundamentou, tampouco, a necessidade da igualdade social em uma suposta igualdade natural. As capacidades e aptidões são diferentes. A igualdade social se fundamenta na possibilidade de satisfazer necessidades materiais e culturais mais intensamente sentidas que são universais.

O que o marxismo afirmou é que a natureza humana tem dimensão histórica e, portanto, se transforma. O que o marxismo preservou foi a ideia de que a diversidade de capacidades não permite explicar a desigualdade social que nos divide. É a exploração de uns pelos outros a causa da desigualdade, e não o contrário.

A naturalização dos conflitos humanos nunca foi, politicamente falando, inocente. O que é natural não pode ser alterado, ou só se modifica em uma escala tão lenta que estaria além das dimensões possíveis da política. É a maldição do escorpião.

Etnocentrismo para justificar o racismo, seguidismo da liderança para justificar os Estados militarizados, xenofobia para justificar as guerras territoriais, ambição para justificar a desigualdade social.

A procura de um padrão inflexível de comportamento contraria a história, e diminui a conduta humana à pressão de forças que escapam à sua vontade. Foi a história que nos condicionou, favorecendo a plasticidade. Nos fizemos adaptativos, e não rígidos.

Natureza ou cultura é a forma que assume o dilema que, nesses termos, é falso. Somos os filhos de uma herança cultural que transformou nossa natureza. Fazemos a nossa história, mas não escolhemos as condições.

A tentativa de explicar uma constância da natureza humana por meio de centenas de milhares de anos de pré-história e história por um determinismo biológico voltou, disfarçada de ciência.

A ampliação da riqueza da natureza humana foi a substância do progresso. Fizemo-nos mais rápidos que o guepardo e mais fortes que o elefante. Voamos mais alto que o condor, e descemos a profundidades maiores que os peixes.

Marx admitiu, no entanto, que existiam limites. Reconheceu que os homens transformavam a natureza e todas as suas relações sociais – a língua, as ferramentas do trabalho, suas relações uns com os outros, etc. – em condições naturais e sociais que não pode escolher, que são alheias à sua vontade; mas não aceitava a premissa que condicionava a mudança da sociedade à mudança prévia do homem.

Lutando pela transformação e pelo domínio consciente de suas relações sociais, a humanidade estaria transformando-se a si mesma.

Ao reconhecer que a natureza humana só poderia ser compreendida a partir das relações sociais, ou seja, a partir das relações que a humanidade estabelece em cada época histórica com a natureza, e dos homens e mulheres uns com os outros, concordou que existem determinações que se alteram, e outras que permanecem mais ou menos constantes por um período histórico, que pode ser mais ou menos longo, até que estas também, evoluam.

Dizer que a essência humana está condicionada pela forma das relações sociais dominantes significa reconhecer que, se estas favorecem a inveja e a boçalidade, então uma maioria dos seres humanos terão comportamentos gananciosos e brutos.

Mas não quer dizer que essas ações respondam a impulsos inatos. Colaboração e conflito estiveram sempre presentes nas relações sociais, em graus variados, ao longo do processo de evolução histórica.

Não só somos seres sociais, somos uma das formas de vida mais sociais. Se não existisse a capacidade de colaboração não teríamos sobrevivido.

A igualdade social é para socialistas a condição da liberdade humana. A igualdade social não é a nivelação dos salários. O socialismo não é o aumento dos salários, mas a gradual extinção do dinheiro e da remuneração salarial. A igualdade social não é a uniformização das mercadorias.

O socialismo é a ampliação e diversificação do consumo, e o fim da forma mercantilizada dos produtos. A igualdade social não é a diminuição das diferenças entre ricos e pobres, ou a divisão da propriedade.

O socialismo é a satisfação das necessidades mais sentidas pelo controle social da produção da riqueza e o fim da propriedade privada.

Não podemos ser livres, enquanto não formos todos livres. Não há liberdade onde reina o medo. O medo do desemprego e da pobreza dilacera os trabalhadores, e o medo dos trabalhadores dilacera os capitalistas.

Não estaremos livres do medo enquanto sobreviver um sistema que divide a humanidade em proprietários e assalariados.

A liberdade é uma síntese de direitos que só têm sentido se forem universais. Se não forem acessíveis a todos, são vantagens. O que são vantagens de somente alguns, são privilégios. Liberdade é o direito de opinião, de manifestação, de organização. É a liberdade de imprensa. É a liberdade religiosa.

É a liberdade de ir e vir. É a liberdade sexual. Mas, direitos são sempre relativos, ou seja, são condicionados por outros direitos.

Valerio Arcary é professor titular aposentado do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo).

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