“Se ela fosse loira e de olho azul, você não estava enchendo o saco dela”, disse uma funcionária da CNN para outra colaboradora responsável pela edição das entradas ao vivo.
Segundo relatos, a jornalista Basília Rodrigues foi alvo de uma perseguição com motivação racista, o que gerou incômodo entre profissionais da emissora.
Basília é comentarista política da CNN desde março de 2020 e faz entradas ao vivo com informações dos bastidores de Brasília. Acostumada a fazer aparições em locais símbolos da capital federal, a jornalista passou a participar dos programas remotamente de sua casa, por conta do agravamento da pandemia da Covid-19.
Desde então, funcionários relataram uma espécie de perseguição à jornalista. A edição do jornal Novo Dia chegou a reclamar da comentarista estar “descabelada”.
De acordo com as fontes ouvidas, Basília mudou o cabelo de um lado para o outro, o que deixou uma parte mais volumosa. Os funcionários dizem ser comum orientar as pessoas, quando estão ao vivo, a arrumar o cabelo.
“Eu já cansei de ver esse tipo de orientação quando a pessoa está na bancada. Era a mesma coisa que deveriam ter feito: ‘Basília, quando você mexeu o seu cabelo de um lado para o outro, ele ficou fora do lugar. Só mexer ele de novo’. É um briefing e um cuidado para se ter com qualquer tipo de apresentador, e não tiveram com ela”, conta.
Nesse momento, um dos trabalhadores questionou: “Se ela fosse loira e de olho azul, você não estava enchendo o saco dela”.
A pessoa responsável pelas reclamações, conhecida pela função de “fechadora”, é apontada como Tatiana Mocelin.
Ela disse que apenas estava repassando as insatisfações da chefia de edição da TV. O jornal Novo Dia tem como editor-chefe Igor Peixoto, que está no cargo há 1 ano e 6 meses.
Em recentes participações ao vivo de Basília Rodrigues, os editores de imagem também optaram por ocultar a comentarista, deixar apenas a voz dela e se utilizar de imagens de apoio para ilustrar as entradas ao vivo.
“Quando a pessoa começa a falar, você a deixa em tela cheia e tira os demais participantes. O normal é colocar um pouco de imagens ilustrativas do fato na tela, reduzir um pouco o quadro e fazer uma alternância, com ora mais destaque para as imagens de ilustração, ora do jornalista. Quando ia encher a tela com a Basília, pedia para não encher a tela e deixar só as imagens de ilustração. Esse foi outro fato que chamou atenção”, detalha a fonte ouvida pela reportagem.
Incomodados, alguns funcionários comentaram “só não enxerga quem não quer”, em referência ao tratamento negativo e diferenciado dado à comentarista.
Segundo a apuração, houve também reclamações acerca das participações de Basília por conta do fundo do vídeo da sua casa, uma parede toda branca. No dia seguinte, a comentarista estava à frente de uma prateleira, o que também gerou reclamações.
“Um dia reclamaram da parede branca, depois reclamaram que ela estava à frente de uma prateleira. A gente vê pessoas em um caos, com a parede repleta de coisas, e entra sem qualquer tipo de problema”, salienta um funcionário.
Em outra entrada ao vivo da comentarista, a reclamação foi de que ela “estava olhando para cima no vídeo”.
Segundo os profissionais ouvidos, diversas reclamações direcionadas ao trabalho da jornalista seriam resolvidas com um pedido de ajuste ou chamada. “Nesta situação faltou um briefing”, diz um dos entrevistados.
Racismo estrutural
A jornalista, professora e doutoranda Tatiana Oliveira recorda que Basília Rodrigues é uma jornalista renomada, que adentra espaços políticos e confronta representantes do poder executivo, legislativo e judiciário.
Apesar disso, a pesquisadora acredita que a comentarista está passando por violência racial, principalmente por conta da curvatura de seu cabelo.
“O cabelo padrão é sempre liso, haja visto inclusive que as mulheres, brancas ou não, geralmente recorrem a esse recurso estético. E inúmeros relatos de mulheres negras denunciam o quanto elas são agredidas desde a infância por conta do cabelo”, pondera.
Para a professora, os comentários feitos sobre Basília – relatados por colegas de profissão – são exemplos de como o racismo estrutural se mostra em meio à imprensa.
A especialista usa o raciocínio de Muniz Sodré, na obra “Claros e Escuros: identidade, povo e mídia no Brasil” para demonstrar algumas etapas comuns do racismo na imprensa.
A primeira delas é a negação, ou seja, o racismo não é apresentado como uma questão estrutural e se noticiam apenas as situações de violência racial, geralmente como casos de “suspeitas de racismo”.
Outra etapa que Tatiana avalia é a estigmatização, que marca a diferença racial, ou seja: se o padrão estético da mídia brasileira é branco – apesar da maioria da população ser negra – os traços fenótipos de pessoas não brancas são inferiorizados, e o cabelo geralmente é o primeiro alvo.
A professora também explica outro fator, que é a indiferença profissional nos meios de comunicação.
Ela apresenta o número reduzido de jornalistas negros nas redações e geralmente com cargos de pouca visibilidade como uma prova desse processo.
Tatiana acredita, contudo, que a inclusão não é toda a resolução do problema.
“Quando os jornalistas negros estão na linha de frente acabam por cumprir um papel de representatividade e cria-se uma noção de ‘simulacro de democracia racial’, mas cabe lembrar: a ‘democracia racial’ é um mito criado para apaziguar os conflitos raciais”, avalia.
Nas redes sociais, Basília divulgou uma nota dizendo que o caso está sendo apurado.
Confira a íntegra:
Agradeço às mensagens de solidariedade e apoio que recebi aqui de tantos amigos pessoais, colegas de trabalho e também de pessoas que não me conhecem. Agradeço também pela posição adotada pela CNN Brasil.
O relato é grave e está sendo apurado. Deixa reflexões para todos sobre o que não queremos ser, parecer, nem deixar dúvidas, sobre o que não queremos para nós, nem para os outros.
Em 2020, optei por sair do meio rádio e ir para TV, o que trouxe um elemento novo para minha carreira: a imagem. Isso após 12 anos de Jornalismo até então feito apenas pela voz.
A CNN me escolheu e eu escolhi estar nela. Nos tempos de hoje, poder escolher mudar é um luxo, já que temos sido afogados pelos acontecimentos. Porém, não é fácil mudar.
Decidi pegar uma via diferente que me pareceu (e é) mais desafiadora e evolutiva, como pessoa e jornalista.
Por fim, dizer a vocês que o racismo e o negro convivem dia a dia.
É uma relação insuportável, uma companhia inconveniente que está à bordo, em uma mesma viagem.
Às vezes, me pergunto, haverá ponto final? Logo, penso que esse não é o mal do negro, esse é o mal do racismo.
Com informações via Alma Preta.