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Catolicismo e práxis política: da ditadura à atualidade

Hérder Câmera

Mais de 150 arcebispos, bispos e bispos eméritos, afirmando estar “em profunda comunhão com o Papa Francisco”, acusam o governo de não ser ético e de disseminar um “discurso anticientífico”

A Teologia da Libertação é uma corrente teológica, de várias fisionomias, que nasceu na América Latina após a Conferência de Medellin, em 1968. Para ela, a leitura da Bíblia mostra que a libertação do homem não é exclusivamente espiritual, mas exige a opção preferencial pelos pobres.

Essa teologia considera, também, que as Ciências Humanas e Sociais são indispensáveis para a concretização dessa opção, sendo que alguns de seus teóricos conferem destacada importância ao marxismo.

Inspirada na interpretação dos textos bíblicos, essa teologia confere centralidade ao tema da Libertação, que se realizará através da ação divina na História.

Com efeito, “A libertação dos oprimidos é, nos dias de hoje, especialmente no contexto sul-americano, a realidade da salvação de Deus presente no mundo.

A libertação de que fala a escritura tem uma consistência histórica e social. Graças a ação de Deus, o homem e a sociedade passam, de uma situação de dependência e de escravidão, para a independência e a redenção, da condição de dominação para a a alforria e a liberdade” (CATÃO: 1986, p.66).

Mas a igreja católica, sob o pontificado conservador de João Paulo II, condenou em 1984 e em 1986, os principais fundamentos da Teologia da Libertação, supostamente, pela sua ênfase exclusiva no pecado institucionalizado, coletivo ou sistêmico, na eliminação da transcendência religiosa, na desvalorização do magistério da igreja e no incentivo à luta de classes.

Essa condenação enfraqueceu a influência da Teologia da Libertação, tendo sido a principal responsável pelo seu declínio, nos anos noventa.

Não obstante, como a Fênix que ressurge das cinzas, foi tacitamente reabilitada pelo Papa Francisco.

Ele fez cessar o anátema que a atingia, com a retomada, conforme veremos adiante, do diálogo com alguns dos principais expoentes da Teologia da Libertação “clássica”, de inspiração marxista.

O papa Francisco (Jorge Mario Bergoglio) é adepto de uma das sumas modalidades, Teologia do Povo, que rejeita tanto a metodologia marxista quanto suas categorias de análise (ARMATO: 2013).

Assim, as diversas manifestações da Teologia da Libertação continuam a influenciar os setores mais progressistas da igreja, conforme demonstram as posições do Papa Francisco, mas também a de setores ponderáveis da hierarquia, críticas do capitalismo.

A Igreja Católica e a resistência à ditadura

A igreja católica apoiou entusiasticamente o golpe civil-militar empresarial de 1964. Na ocasião, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) enalteceu a iniciativa dos militares, agradecendo a Deus e aos militares por ter “freado, sem derramamento de sangue, a marcha acelerada do comunismo” (FOLHA: 2014).

O golpe militar foi elogiado, até mesmo, pelos expoentes de sua hierarquia que mais se notabilizaram assumindo autocrítica corajosa, traduzida na sua práxis de oposição ferrenha às atrocidades praticadas pelo regime de 1964, e ao cerceamento das liberdades democráticas.

Esse foi o caso, entre outros, de D. José Maria Pires, o “Dom Pelé”, Arcebispo da Paraíba, de D.Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife e de D. Paulo Evaristo , Cardeal-Arcebispo de São Paulo.

Cinqüenta anos depois da “Revolução de 1964”, a CNBB, faz seu mea culpa, reconhecendo ter cometido um “erro histórico” ao apoiar a instauração do regime militar, cujos “métodos de governo não respeitavam a dignidade da pessoa humana e seus direitos” (FOLHA: 2014).

Portanto, os críticos do comportamento da igreja católica não podem se limitar a acusá-la de apoio ao regime militar.Trata-se de uma meia verdade que, objetivamente, é pior que a mentira, já que desvela uma parte dela, mas deixa a outra oculta.

E, no caso em espécie, a mais substantiva: o papel de vanguarda de figuras exponenciais da igreja e de movimentos de leigos na mobilização contra a ditadura. Ademais, quem, na sociedade civil brasileira, poderia atirar a primeira pedra?

Até a OAB solidarizou-se com o golpe! Também o apoiaram, personalidades políticas, cantadas em verso e prosa, pela sua luta corajosa contra a ditadura, como Teotônio Vilela, o “Menestrel de Alagoas”.

Na igreja católica, mesmo anticomunistas ferrenhos, a exemplo de D. Eugênio Salles, se empenharam em proteger os opositores da ditadura de suas iniquidades.

Da mesma forma, poucos prelados de destaque continuaram a apoiar ativamente a autodenominada “Revolução de 31 de março de 1964”.

A resistência dos católicos teve também seus mártires. Dentre os mais conhecidos figuram o secretário de D. Helder Câmara, Pe. Henrique Melo, assassinado barbaramente pela ditadura, e Frei Tito, brutalmente torturado no DOI-CODI.

Esse assassinato constituiu-se em uma represália à dessasombrada pregação de D. Helder. Suas denúncias, em diversos fóruns internacionais, sobre as torturas e outras arbitrariedades praticadas pela ditadura, fez com ela proibisse quaisquer referências a sua pessoa nos meios de comunicação.

O Arcebispo de Olinda e Recife também foi um dos grandes incentivadores das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que detalharemos adiante.

Marco histórico da oposição da oposição ao regime militar foi a divulgação da Carta Pastoral Eu ouvi os gritos do meu povo, no auge da repressão, em maio de 1973.

Assinada por dezoito arcebispos e bispos, abades e provinciais do nordeste, teve como os principais articuladores D. Helder e D. José Maria Pires, e congregou o que havia de mais representativo na igreja dessa região.

Mesmo já tendo vários de seus dirigentes e assessores perseguidos, torturados e alguns, até mortos pela repressão, ela não se calou. Posicionou-se publicamente, através daquele documento, denunciando “o capitalismo internacional que utiliza todos os meios de comunicação e de educação para justificar a sua dominação e para dissimular o sistema de opressão sobre o qual se apóia.”

Considera, ademais, que “o processo histórico de dominação capitalista conduz fatalmente à luta de classes, não tendo a classe dominada outra saída para se libertar do que seguir o longo caminho que leva a propriedade social dos meios de produção”.

“Somente esta”, conclui o documento, da inegável inspiração marxista, “permitirá aos oprimidos de recuperar a humanidade de que foram destituídos” (CARTA PASTORAL: 1973).

Contudo, tão ou mais importante quanto a luta de integrantes do clero contra as atrocidades do regime militar, foi o papel dos militantes de movimentos e instituição leigas, entre os quais se destacaram as Comunidades Eclesiais de Base. (CEBs).

Tiveram atuação preponderante no Nordeste, comprometidas com a “opção preferencial pelos pobres”.

As CEBES se tornaram espaços concretos de lutas sociais nesse período, notadamente no campo, servindo como um laboratório de formação de muitas lideranças que vieram, com a redemocratização, assumir posições de destaque na esfera pública.

Mas as CEBs foram bem mais além, contribuindo decisivamente para viabilizar uma nova estratégia, que substituiu a lógica da luta armada pela da participação popular. Destarte, inspiradas na Teologia da Libertação, favoreceram uma mudança na práxis política, que se estendeu, além de segmentos da própria hierarquia, a amplos setores da sociedade civil e da política brasileiras.

As CEBS também forneceram uma alternativa à luta armada e à militância exclusivamente partidária, ao colocar o homem comum, especialmente os oprimidos, no centro do processo político (LYRA: 2016, p. 23).

Em suma: A democracia, para as CEBs, mais do que uma questão de princípio, é uma questão de prática (BETTO: 1981, p. 7).

Outros eventos da resistência democrática da igreja católica alcançaram repercussão nacional, como o corajoso enfrentamento, por figuras destacadas da hierarquia e por membros de ordens religiosas, às restrições às liberdades democráticas.

Exemplo dessa resistência foi o apoio dado pela igreja, desde antes da decretação do AI-5, a iniciativas contrárias ao regime militar.

Foi o caso da realização de congressos clandestinos em mosteiro de ordens religiosas: no caso, ao XXVIII Congresso da UNE, em 1966, na cidade de Belo Horizonte (MG) e ao XXIX dessa entidade, em 1967, em Valinhos (SP).

No primeiro, os estudantes lograram realizar o conclave, sem serem descobertos pelos agentes da repressão.

No segundo, a polícia, ao chegar no mosteiro, não encontrando mais os congressistas,prenderam os frades dominicanos que encontraram, depredando as suas instalações (MENDES JUNIOR: 1981, p. 79-81).

Três outros episódios têm como protagonista central o Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Arns, um prelados que mais se distinguiram pela assistência prestada aos presos políticos e pela coragem com que enfrentou, em várias ocasiões, a repressão do regime militar.

D. Paulo considerava que “a oposição [da igreja] era obrigatória. Do ponto de vista evangélico, era a nossa missão naquela época, talvez a mais importante”.

Profundamente chocado com a violência inaudita praticada com esses presos, D. Arns assim se manifestou: “o que ouvi deles não tinha ouvido na Europa, onde estive cinco anos com os prisioneiros da Rússia e da Alemanha. Tanto o Brasil se tinha rebaixado” (DINES ET ALII: 2001: p.154).

1. Paulo realizou, na catedral da Sé, em 1976, uma missa ecumênica de protesto contra a morte, pela tortura, do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências do DOI-CODI paulista. Essa cerimônia abalou o poderio da “linha dura”, e ensejou o seguinte comentário de D. Helder, que estava ao lado do Cardeal Arns nessa cerimônia: “D. Paulo, hoje a ditadura caiu” (DINES et ALLI: 2001, p.154).

Em 1977, novo acontecimento – a invasão da PUC-SP, pelo coronel Erasmo Dias, Secretário de Segurança de São Paulo – provocou a detenção de dois mil estudantes e a destruição de livros, equipamentos, milhares de documentos e até de parte da estrutura física da universidade.

Essa invasão colocou D. Paulo na linha de frente de defesa da autonomia universitária e das liberdades democráticas.

A esse respeito, assim se expressou: “Eu voltei de Roma por causa da invasão da PUC. Porque entrar na PUC só com exame vestibular ou para servir os alunos. De outra forma, não”.

Dom Paulo Arns provocou, mais uma vez, a ira dos militares, ao organizar procissão que chegou a contar com de cerca de 200.000 pessoas, em protesto contra a execução, em outubro de 1979,com uma bala nas costas, do operário Santo Dias, coordenador da Pastoral Operária em São Paulo. (DINES ET AL11: 2001, p, 151).

Concluímos com a menção à D. Pedro Casaldáliga, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, que alcançou notoriedade na defesa das comunidades pobres e dos indígenas, e pelo firme apoio dado ao funcionamento e à expansão das CEB’s.

Sua voz incansável contra o latifúndio, apoiando o MST e a Via Campesina, valeu-lhe várias ameaças de morte, além de processos de expulsão do Brasil durante a ditadura militar.

Sua indômita atuação granjeou respeito, homenagens e admiração nacional e internacional. Escolheu ser sepultado no cemitério Karajá, nas margens do rio Araguaia, onde peões e índios que resistiram à grilagem eram enterrados (VEJA: 2020).

A igreja católica na atualidade – O Papa Francisco: um novo aggiornamento?
No âmbito internacional, a evolução da igreja, com a eleição, em 19 de abril de 2003, do Cardeal alemão Ratzinger para o trono de Pedro, inaugurou uma fase marcadamente prejudicial para os setores progressistas dessa instituição.

Como Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, ele já havia mostrado a que viria, movendo processos disciplinares contra os membros do clero, seguidores da Teologia da Libertação. Como Papa, os bispos que nomeou ampliaram a influência da ala conservadora da igreja.

O clima de hostilidade à igreja progressista somente se dissipa com a ascensão, a no dia 19 março de 2013, ao trono de Pedro do cardeal argentino Bergoglio cujas posições, críticas ao capitalismo, com ela se identifica.

Desde então, o caminho percorrido pela igreja católica, no que se refere à sua práxis política, evidencia diferenças de monta, em relação à das igrejas protestantes, especialmente a das pentecostais.

Essas igrejas, “evoluíram” para a aceitação da chamada Teoria da Prosperidade, que legitima o acúmulo de riqueza e o usufruto irrestrito de bens materiais.

Já o catolicismo permanece infenso ao ideário neoliberal, conforme testemunham todas as declarações do atual Sumo Pontífice e de integrantes da hierarquia católica.

O Papa Jorge Bergoglio vincula os ensinamentos de Cristo a notórias preocupações com a igualdade social e a interpretação bem menos ortodoxa das Escrituras, com a conseqüente valorização do conhecimento científico.

O sucessor de Pedro fez duras críticas ao capitalismo, primeiro como fonte de desigualdade e, segundo, como uma economia que “mata” (STOURTON: 2020).

E foi além, dizendo que “comunistas pensam como os cristãos”, causando indignação nos meios conservadores. (PAPA: 2013).

Fica evidenciado que a escolha do papa argentino expressa uma nova correlação de forças no seio da igreja católica, contribuindo para a construção, no seu âmbito, de uma nova hegemonia.

A sua eleição permitiu que essa multissecular instituição absorvesse os anseios de renovação, proveniente de seus milhões de fieis, conditio sine qua non para sua própria sobrevivência.

São anseios frequentemente submersos, alimentados por uma espécie de fogo de monturo, que, por vezes, encontra forças para vir à tona.

Com Francisco, a ala progressista da igreja católica, inspirada na Teologia da Libertação, ganha maior espaço e reconhecimento, mesmo sendo ele adepto de um ramo dessa teologia, denominada Teologia do Povo, que dela se distingue por não utilizar nem a metodologia, nem as características específicas do marxismo (SCANNONE: 2013).

Comprova esse juízo a amizade que une o atual Papa ao conhecido teólogo brasileiro, Frei Leonardo Boff. Lembremos que Boff foi punido pelo seu antecessor, Bento XVI, com “silêncio obsequioso”, pelo período de um ano, durante o qual ficou impedido de expressar as suas ideias, e, inclusive, de publicar (LYRA: 2018, p. 301 e 302).

Francisco prestigiou outro expoente da Teologia da Libertação, o teólogo Gustavo Gutierrez, ao escrever-lhe carta de congratulações pelos seus noventa anos e ao convidá-lo para audiência no Vaticano (PAPA: 2013).

Ademais, o pontífice argentino vem adotando um comportamento tolerante, em relação às diferenças, em contraste com a maioria evangélica. Perguntado se condenava o homossexualismo, respondeu: “quem sou eu para julgar os gays?.

A igreja brasileira na ‘era” Bolsonaro

Vale, a esse respeito, conferir os posicionamentos da igreja católica nas eleições presidenciais de 2018 e os que se seguiram, relacionados à política brasileira.

No segundo turno dessas eleições, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emprestou apoio tácito ao candidato petista, Fernando Haddad.

Com efeito, desde o primeiro turno, a igreja já havia duramente criticado o “discurso do ódio” nessas eleições, sem nominar o seu autor.

No segundo turno, a hierarquia católica orientou os seus fieis no sentido de votar no candidato que defenda “mais democracia” (CNBB: 2018).

Foi preciso esperar 19 meses de governo Bolsonaro para que a Igreja Católica, através de parcela considerável do Episcopado, minoritária, porém dotada de inegável representatividade e respeitabilidade, voltasse a se manifestar, de forma candente e com radicalismo comparável àquele da Carta Pastoral Eu ouvi os gritos do meu povo, agora sobre uma questão especifica: a atuação do governo Bolsonaro.

Mais de 150 arcebispos, bispos e bispos eméritos, afirmando estar “em profunda comunhão com o Papa Francisco”, acusam o governo de não ser ético e de disseminar um “discurso anti-científico”, que “naturaliza o flagelo de milhares de mortos pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino”.

Os prelados denunciam, ainda, uma “economia que mata, centrada no mercado e no lucro a qualquer preço” e, do ponto de vista político, “de se aproximar do totalitarismo e utilizar-se de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia”.

Mostram que a alternativa “não deveria ser entendida como mera soma de gestos pessoais, a favor de alguns indivíduos necessitados, que se destinam apenas a tranquilizar a própria consciência”.

O documento finaliza conclamando a todos que “despertem do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e das violências que nos assolam. A noite vai avançando e o dia se aproxima. Rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (BERGAMO: 2020).

Evangélicos e católicos: o que os distancia e o que os aproxima?

Procuramos mostrar que as significativas diferenças de posições políticas entre católicos e evangélicos não devem levar à conclusão de que a igreja católica, no seu conjunto, seja um baluarte do “progressismo”.

Com efeito, importantes setores, a nível nacional e internacional, têm mostrado forte influência interna nos rumos do catolicismo brasileiro, como comprova a “onda antipetista” que se espraiou em todo o Brasil, envolvendo grupos católicos conservadores.

Eles fizeram coro com os evangélicos, “formando um caldo de potenciais apoiadores da campanha ao Poder Executivo de um candidato afeito à sua agenda de costumes” (CALDEIRA E TONIOL: 2020).

Para Marcelo Barros, escritor e monge beneditino, as posições avançadas do Papa Francisco e de parte expressiva da hierarquia, são, na prática, assumidas por uma pequena minoria de católicos.

Barros afirma que os bispos que subscreveram a Carta ao Povo de Deus pagam o preço de terem em suas dioceses substancial parcela de católicos que sonham com uma igreja com características semelhantes as da ultraconservadora ordem americana Cavaleiros de Colombo (BARROS: 2020).

Ela alberga quase dois milhões de associados, cujas preocupações sociais restringem-se à prática da filantropia.

De toda forma, para uma folgada maioria, a religião continua funcionando apenas como um refúgio onde se abrigam os que se contentam com paliativos, invocando uma improvável ajuda de Deus para minorar as adversidades.

Mesmo não concordando totalmente com Barros, não se pode negar a realidade de convergências e, em certos casos, a identidade de posições entre católicos e evangélicos, no âmbito da moral e dos costumes.

O antagonismo entre estes se restringe à vanguarda da militância católica, onde justiça social e democracia são parâmetros fundamentais norteadores de sua práxis religiosa, embora esses princípios também estejam, em algum grau, presentes na maioria dos católicos.

As diferenças entre católicos e protestantes a respeito se manifestam, sobretudo, nas concepções sobre economia, face à entusiástica adesão da parte expressiva dos evangélicos ao neoliberalismo, e nas relacionadas com a democracia e o autoritarismo.

Mas também se diferenciam na forma como tratam os que não rezam na sua cartilha ideológica. Expoentes evangélicos, cultores do fundamentalismo religioso, como o pastor Silas Malafaia, costumam ofender aqueles com quem divergem politicamente, especialmente os de esquerda, que são tachados de “esquerdopatas”.

Esse tipo de intolerância, que não prospera na hierarquia católica, acaba incentivando outras, como as praticadas pelos fanáticos religiosos que tentaram invadir o hospital onde estava internada criança de 10 anos, vítima de estupro, a fim de ser submetida à procedimento de aborto.

Aos gritos, os manifestantes acusavam os médicos responsáveis por esse procedimento de “assassinos!” (DORINI e MACHADO: 2020).

Não obstante, a apreciação da CNBB sobre a questão, formulada por seu Presidente, D. Walmor Azevedo, se não se faz acompanhar de atitude belicista com relação aos que dele discordam , tem o mesmo e preocupante conteúdo das invectivas evangélicas: “Aborto legal em menina estuprada no Espírito Santo é ‘crime hediondo”, afirma o seu Presidente, D. Walmor Azevedo.

Portanto, a diferença no tratamento da questão é, sobretudo, de forma. Com efeito, o fundamentalismo integrista, hegemônico nas igrejas pentecostais, não se limita a condenar o aborto: intimida, desqualifica ou ameaça quem não aceita suas idéias.

Também utiliza o púlpito como palanque político-partidário (TOSI: 218, p. 412). Essa “agressividade discursiva investe no apagamento do outro, na correção do comportamento de quem é percebido como um perigo” (ORTIZ: 2020).

Esse autor cunhou o termo “bolçanarismo”, para classificar o comportamento de Bolsonaro, mas sua crítica se aplica com perfeição aos fanáticos religiosos.

A despeito da existência da pluralidade de posições religiosas sobre as questões abordadas nesse trabalho, entendemos que permanece atual a observação feita, há sessenta e cinco anos, pelo brilhante psicanalista e psicólogo social Erich Fromm, sobre o papel alienante da religião na sociedade.

Assim: “ainda que seja verdade que se tenha feito essa crítica por parte das altas hierarquias da Igreja Católica e que também tenha sido feita por muitos sacerdotes, pastores e rabinos, todas as igrejas pertencem essencialmente às forças conservadoras modernas e empregam a religião para manter o homem tranqüilo e satisfeito com um regime profundamente irreligioso” (1955: p.163).

Reflexões finais

Concluímos essas análises com uma reflexão sobre os resultados de uma pesquisa que o Pew Research Center acaba de publicar, divulgada na revista Piauí.

Ela mostra a importância de se dar maior atenção ao conhecimento das relações entre moralidade e religião, indispensável à compreensão das relações desta com a política.

Os entrevistados de 34 países responderam à pergunta: “É preciso ser religioso para ter moralidade ” De acordo com a pesquisa, 84%  dos entrevistados, no Brasil. consideram que a moral depende da fé.

Essa concepção influencia, portanto, o comportamento de ampla maioria da população brasileira, com repercussões que vão bem além de questões de foro íntimo (CALLIGARIS, 2000).

Dos resultados apresentados se depreende que todo indivíduo que não tem religião é pervertido. Consequentemente, pela sua intrínseca maldade, falta-lhe condições de fazer escolhas idôneas, que possam concorrer para o “bem comum”.

Esse entendimento está muito mais enraizado entre os evangélicos, especialmente as pentecostais, onde o fundamentalismo é onipresente.

Existe, portanto, a necessidade imperativa de se elaborar estratégias eleitorais e de disputa ideológica adequadas à luta pela hegemonia, face ao pensamento abraçado por muitos milhões de pessoas, que acreditam ser a religião condition sine qua non de moralidade.

Nesse ranking, o Brasil ocupa preocupantes 34%, “logo atrás da Nigéria e do Quênia, portanto, há léguas da modernidade” (CALLIGARIS, 2020).

É, portanto, necessário contrapor essa concepção arcaica de moralidade ao pensamento moderno, herdeiro do Iluminismo, para quem as normas morais são construídas pelo próprio individuo, não sendo resultado de preceitos impositivos, externos à vontade individual.

A falta de autonomia desta, no campo da religião, compromete, também, o seu livre exercício em outras dimensões da vida social, especialmente no da política.

Por isso, é necessário sujeitar as religiões ao debate político, nele envolvendo os que são estranhos a elas, e submetendo-as ao cuidadoso escrutínio de suas antinomias e contradições.

Na dicção de José de Souza Martins “muita coisa que não deveria se refugiar em sua imunidade, acaba ficando fora do escrutínio social”.

Rubens Pinto Lyra, Doutor em Ciência Política, é Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros livros, de La Gauche en France et la Construction Européenne (LGDJ) e Teoria Política e Realidade Brasileira (EDUEPB).

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