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Em defesa da política pública de saúde mental

Neste início de dezembro de 2020, veículos da mídia corporativa publicaram reportagens dando conta da intenção do Ministério da Saúde de revogar, em uma canetada quase uma centena de portarias e regulamentos que estruturam, desde os anos 1990 a Política Nacional de Saúde Mental.

Um desmonte feito de uma vez só. Retrocesso de décadas, como se voltássemos, em um piscar de olhos à primeira metade do século XX. É verdade que nunca foi tranquilo instituir a uma política de “des-internação dos loucos”.

Ou tratar os “viciados” como gente, criando uma rede de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) humanizada. E programas como o De volta para casa (des-institucionalização), as Residências Terapêuticas e os Consultórios de rua.

Os conservadores, autoritários, moralistas, fundamentalistas religiosos e mercantilistas da saúde sempre atuaram contra a construção de um sistema público de saúde mental baseado no princípio da redução de danos. Lastreado no reconhecimento dos direitos, da autonomia, da liberdade e da diversidade.

Parte da comunidade médica (psiquiatras) e acadêmicos reacionários também sempre militaram contra os princípios da reforma psiquiátrica.

Mas, aos trancos e barrancos, vínhamos avançando construindo a RAPS (rede de atenção psicossocial). Os pressupostos dessa política de saúde mental são a emancipação social e o não encarceramento.

O foco está no respeito à autonomia do indivíduo, no cuidado, no trabalho em rede, na inserção social. Daí a diversidade de recursos terapêuticos (tirando a centralidade da figura do médico e do hospital).  Por exemplo, ao invés de internação compulsória, atendimento integral, interdisciplinar.

O governo Temer, expressão da ruptura democrática ocorrida em 2016 iniciou uma primeira grande ofensiva contra a política democrática de saúde mental. O golpista nomeou como coordenador da área o psiquiatra conservador que dirigiu o manicômio do Juqueri, um dos mais antigos do país, em processo de fechamento, Quirino Cordeiro.

Cordeiro trabalhou intensamente para a expansão dos leitos e hospitais psiquiátricos, desqualificando o princípio de priorização do atendimento ambulatorial e questionando a eficácia dos CAPS. Editou, entre 2016 e 2019, quinze documentos normativos apontando para uma “nova política de saúde mental”.

Expandir o número de unidades e encher de recursos as comunidades terapêuticas, incentivando internações se transformou no centro da política pública para álcool e drogas.

Entretanto,é preciso registrar. A falta de debate, as concessões programáticas-pragmáticas, os recuos ideológicos e alianças com religiosos fundamentalistas já vinham desde os governos liderados pelo PT, sobretudo no período da presidenta Dilma Rousseff.

Havia uma batalha dos técnicos, gestores e militantes históricos para preservar conquistas e blindar a política de saúde mental, álcool e drogas da influência religiosa conservadora.

Um exemplo de retrocesso foi o incentivo financeiro e o afrouxamento da fiscalização sobre as comunidades terapêuticas e o programa “Crack é possível vencer” (errado do começo ao fim, incentivador do aparato policial, refém de pânico moral e do senso comum, anti-científico).

Além da abordagem equivocada (baseada na abstinência, no moralismo, nas internações forçadas) essas políticas  promovem e financiam grupos/ lideranças cristãs de direita, com fortes vínculos eleitorais com partidos e candidatos conservadores.

Atentam contra a ciência, contra o Estado laico, contra os direitos humanos e a democracia. Em sua maioria, apoiaram o golpe de 2016, viabilizaram a eleição do neofascista Bolsonaro e constituem, hoje, uma de suas principais bases de apoio.

Garantir os avanços civilizatórios
O Sistema Único de Saúde (universal, gratuito, participativo, promotor da equidade) é a maior conquista social do povo brasileiro. Fruto de uma luta de décadas – impulsionada por ativistas, sanitaristas e pensadores (de esquerda). As elites brasileiras nunca concordaram com os pressupostos do SUS – desde sempre atuam para sucatear e privatizar o Sistema.

Dentre as inúmeras áreas e políticas de excelência inseridas no SUS (vacinação, transplantes, saúde da família, enfrentamento ao HIV/Aids) a reforma psiquiátrica e a construção da política nacional de saúde mental se configuram como um dos mais lindos e importantes ganhos. O ódio dos bolsonaristas não é gratuito.

Foi no bojo do movimento pela redemocratização, no fim dos anos 1970, que ganhou força a luta pela reforma psiquiátrica, que  denuncia a violência dos manicômios, a mercantilização-instrumentalização da “loucura” e o modelo “hospitalocêntrico” de assistência às pessoas com transtornos mentais.

Batalhando pelo Sistema Único de Saúde, o movimento antimanicomial foi fundamental no combate aos verdadeiros campos de concentração que eram os grandes manicômios brasileiros, depósito de gente pobre, preta, “desajustada” por décadas a fio.

Exemplo paradigmático: o Hospital Colônia de Barbacena, fundado em 1903, aprisionou, torturou e matou milhares de pessoas. Com pacientes oriundos de diversas regiões tornou-se um verdadeiro campo de extermínio de oprimidos – de quem não se adequava aos padrões.

Alcoólatras, prostitutas, pessoas LGBTI, inimigos políticos das elites, todo tipo de gente “indesejada”. Estima-se 60 mil mortos nas oito décadas de existência desse hospício/prisão/campo de concentração.

1987: com o crescimento luta antimanicomial foi possível realizar, na cidade de Bauru, o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, momento chave que sintetiza o objetivo do movimento: “por uma sociedade sem manicômios”. E a luta avançou mais.

As gestões do PT em Santos, com Telma de Souza e David Capistrano (1989-1996), estabeleceram os fundamentos das novas políticas públicas de saúde mental, concretizando, na prática, a reforma psiquiátrica.

No mesmo período, o mineiro Paulo Delgado, deputado federal petista, coloca na agenda do Congresso Nacional o projeto de lei que “dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória”.

Contudo, foi só em 2001 que se aprovou o novo marco institucional: a lei 10.216 instaura a reforma psiquiátrica e os direitos das pessoas com transtorno/sofrimento psíquico. Foi o início de um longo processo de incidência política, diálogo e pressão social para estabelecer os novos paradigmas para uma política nacional de saúde mental.

A reforma psiquiátrica e a política pública de saúde mental, duramente conquistas nas últimas décadas são, portanto, grande aperfeiçoamento democrático e civilizatório, conectadas com o que de melhor e mais moderno se elaborou e executou em todo mundo.

O ódio dos conservadores
O SUS tem uma arquitetura muito democrática e avançada. Algumas de suas políticas incomodam particularmente aos reacionários, como a de prevenção e enfrentamento às IST/HIV/AIDS, que sempre se fundamentou nos princípios de reconhecimento dos direitos humanos, redução de danos, autonomia dos indivíduos, da educação entre pares.

Tipo: empoderar as populações vulneráveis (prostitutas, travestis, usuários de drogas, michês, jovens gays) e suas organizações, promovendo o controle social.

Apesar da histórica resiliência do Programa de AIDS – cada vez mais atacado – é preciso registrar, novamente, que desde o governo Dilma houve concessões à agenda fundamentalista cristã, recuando, por exemplo, em políticas de prevenção para jovens gays.

Que nunca se repita esse erro. A cada passo atrás que os progressistas dão, mais se perde espaço na luta política-ideológica-cultural. Até que chegamos a um governo neofascista.

Franco Basaglia, nos anos 1960 e 1970, foi o italiano precursor-mentor da reforma psiquiátrica, defendendo o fechamento dos hospitais/prisões.

Michel Foucault, em 1972, instaura as bases filosófico-históricas para a crítica das instituições totais; denuncia-descreve a essência repressiva e discriminatória dos mecanismos de punição e controle dos corpos insanos, desconstrói a patologização da “loucura”, opera a desestabilização dos saberes médicos (a ala majoritária da psiquiatria nunca o perdoou por isso).

Mas antes disso tudo houve Nise da Silveira, uma alagoana comunista, médica-psiquiatra, amiga de Jung.

Nos anos 1940, Nise já se recusava a aplicar eletrochoques (tem muito psiquiatra novinho formado em boas faculdades defendendo a volta desse mecanismo de tortura).

Também repudiava práticas como a lobotomia. Precursora da terapia ocupacional e da arte-terapia, pesquisadora do inconsciente Nise da Silveira foi ativista de vanguarda na luta contra o modelo autoritário e desumanizador.

Aliás, antes ainda, o gênio Machado de Assis, já havia publicado O Alienista, em 1882, dando forma literária a toda uma discussão filosófico-médica-sociológica de vanguarda. Quem é “louco”, quem não é?

Que é ser médico-cientista afinal?

Quem pode prender quem, por quais motivos?

Ciência ou chute aleatório?

Sabemos tudo. Ou não?

Vale, essa novela de Machado, por muitos e muitos tratados, a propósito. (“Mais louco é quem me diz que não é feliz”, em linguagem contemporânea).

Reacionários, machistas, racistas, direitistas, preconceituosos de toda espécie, conservadores, religiosos fundamentalistas e, sobretudo fascistas, têm um verdadeiro nojo dos princípios que norteiam a reforma psiquiátrica.

Para não falar do princípio da redução de danos – do respeito ao livre arbítrio de cada pessoa no trato com as chamadas “drogas” (legais ou não).

Uma das bases desse pensamento conservador passa pela interdição da autonomia dos sujeitos, aprisionando corpos e mentes a padrões pré-estabelecidos por uma moralidade burguesa inerente ao capitalismo racista, patriarcal e cis-heteronormativo.

Trabalham para manter os aparatos repressivos do Estado funcionando a pleno vapor.  Desde as polícias militares que promovem cotidianamente o genocídio de jovens pretos/periféricos, passando pelas prisões superlotadas até a expansão das clínicas de “reabilitação” para viciados (!).

A política de saúde mental no Brasil vai na contramão desse ideário ao reconhecer a complexidade – e os imensos desafios colocados quando se lida com a própria condição humana.

Também descarta preconceitos, desconstrói práticas de normatização e subjugação. Entende – e quer superar – o processo histórico que estigmatiza arbitrariamente a chamada “loucura” (mera manifestação subjetiva da diversidade inerente a cada pessoa).

Neofascistas e fundamentalistas religiosos (ou hipócritas-cínicos em geral) não suportam uma ideia-chave. Rejeitam a pluralidade.  Não aceitam um mundo sem tantas normas, remédios, regras, deuses, santos bíblias, religiões, posses, hierarquias.

Temem despatologizar a vida – em cada uma e em todas suas dimensões – a começar pela sexualidade (tão excitante e controlada pela moralidade conservadora).

Se a vida não for normatizável – e quando for trivial e aceitável ser “louco”, ou puta, trans, viado, drogado, bêbado,  preguiçoso, radical, triste, eufórico, instável,  revolucionária, sonhadora, sem gênero, falante, depressivo,  o sistema deles cairá.

A sociedade de classes tenderia a perder o controle dos corpos, das mentes e das possibilidades de viver, transar, amar e pensar.

Ficaria mais difícil impedir que cada pessoinha corresse a se engajar no fazimento de outro mundo (sem Estado, classes, gêneros, religiões, propriedades, fronteiras ou opressões de qualquer tipo).

Por uma sociedade sem manicômios.

*Julian Rodrigues, professor e jornalista, é conselheiro do Movimento Nacional de Direitos Humanos.

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