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‘Game of Thrones’ triunfa no final ao abdicar do óbvio e escolher otimismo e realismo

Foto: Divulgação

 Aos roteiristas D.B. Weiss e David Benioff, ajoelhemo-nos. We bend the knee.

Quanta sutileza e beleza pode haver em encerrar “Game of Thrones” com cada Stark em seu próprio habitat, após ter feito da execução do patriarca, Ned (Sean Bean), a primeira grande surpresa e sinal de que não se tratava, já ali, de um folhetim clássico?

Descontentes, claro, sempre haverá, mas o último episódio da série que mais ansiedade provocou nesta década entregou, após oito temporadas, um final impecável, no qual drama, sangue, política e humor se equilibraram de uma forma raramente vista e impensável após o choque e pavor do penúltimo episódio e suas baixas colaterais.

Cada linha da história foi fechada a contento -até a da profecia de Azor Ahai, o príncipe libertador, que no final era mesmo Jon Snow (Kit Haringnton) e teve que sacrificar seu amor, Daenerys, não ficou de lado como se enunciava. Nem o lobo Fantasma sumiu. Nenhum personagem, afinal, se traiu.

A começar de Daenerys, a messiânica. A personagem de Emilia Clarke não enlouqueceu, como alguns entenderam, nem traiu sua natureza. Do início ao fim, ela se acreditava imbuída de uma missão divina/sobrenatural de fazer o bem, mesmo que alguns milhares morressem por isso.

Quem começa descartando vidas supostamente maculadas com facilidade não tem tantos pudores de olhar para inocentes como perdas lamentáveis, mas necessárias. Já no penúltimo episódio sua morte parecia inevitável; ainda assim a cena que a consuma foi executada com uma poesia triste de fazer jus à sua trajetória.

O diálogo de Tyrion com Jon Snow, já quando o primeiro era prisioneiro da rainha, serviu, também, como recado dos roteiristas para os fãs que haviam acolhido com bons olhos as ambições de Dany e depois se espantaram com sua trajetória.

E Jon Snow? Jon nunca foi forjado para ser rei. Sempre foi mais Stark que Targaryen, e sempre foi mais bastardo do que nobre. Nunca esteve confortável com o potencial que os demais viam nele; se sempre foi justo, faltou-lhe a ousadia nas escolhas, frequentemente guiadas por outros.

E, no fim, nem Jon era puro, fazendo jus ao antimaniquísmo da série. Na lei crua, ele talvez seja um dos maiores criminosos, duplamente regicida e assassino da amante. Para ele, contudo, o exílio não é penitência, mas o lugar ao qual se sente pertencente. Desertar junto aos Selvagens é poder se libertar de um fardo que sempre o confundiu.

Falharam também aqueles que apostavam em um duplo reinado de Sansa e Tyrion, porque George R.R. Martin, o autor dos livros que inspiraram a série, por sua vez se inspirou na Guerra das Rosas (1455-85), quando Yorks e Lancasters só sanaram sua batalha ao poderem reinar juntos.

Não que os personagens de Sofie Turner e Peter Dinklage -os melhores da trama, aliás- tenham se saído mal. Ela se tornou rainha do norte, independente, e ele, o chefe de gabinete do novo rei; um rei eleito, escolhido em colégio eleitoral de nobres, vejam só. Mas nenhum dos dois ocupou o trono dos Sete Reinos, que no fim se tornaram seis, porque o Norte se emancipou sob a gestão de Sansa.

Arya, a assassina adolescente, a caçula das duas irmãs Stark, resolveu tirar seu ano sabático após matar o Rei da Noite, que ameaçava o mundo dos vivos, e chegar tarde demais para matar a tirana Cersei (Lena Headey) e a totalitária Daenerys. Arya sempre foi uma “outsider”, uma estranha no ninho, e nada mais natural que seja feliz apenas se desbravar novos mundos.

E Bran (Isaac Hempstead Wright), o garoto que ficou paraplégico por ver o que não devia e acabou se tornando aquele que tudo vê e sabe?

Após um dragão aniquilar o trono da discórdia e se ensejar uma pequena campanha eleitoral, sua escolha para governar os seis reinos em Westeros -uma espécie de protorrepública, já que ele continua sendo rei, mas foi votado e não tem herdeiros- não é aquela que comove multidões, mas reflete com alguma precisão o que fazem democracias mais amadurecidas.

No fim, “Game of Thrones” nunca se tratou de uma história de herói ou heroína clássicos, da qual se espera um final feliz. Mas é incrível como uma série cheia de dragões e zumbis e gigantes e outras alegorias deu conta de retratar, com realismo, o quão difícil é forjar uma democracia, o quão cruenta e comezinha é a política, e quão falhos são aqueles que sobem ao poder. E, ainda assim, terminar em uma nota de otimismo, quase um acalento.

Em uma de suas muitas frases memoráveis, Tyrion, o gigantesco personagem de Dinklage, diz que o que une a humanidade são as histórias, é a memória, as vivências comuns e como elas são passadas adiante.

Em um mundo que caminha cada vez mais rápido para o obscurantismo e a emergência de “verdades alternativas”, não poderia haver mensagem mais pungente.

(LUCIANA COELHO)

Folhapress

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