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Martinho da Vila faz 82 anos e levanta bandeira em prol da cultura

Matinho da Vila completa 82 anos — Foto: Marcos Serra Lima/G1

Martinho da Vila completa nesta quarta-feira (12) 82 anos e assim como em toda a carreira não deixa de lado as bandeiras que considera importantes. Uma delas, a favor da cultura e contra aqueles que desprezam seu poder transformador.

“Nós temos governantes que não são ligados à cultura. É gente que não gosta de música, não vai a teatro, não lê livro, não gosta de poesia”, comentou o compositor.

Cheio de vitalidade, o cantor, compositor e ritmista fluminense  garantiu que ainda têm muitos projetos pela frente, entre eles, um “disco” novo que está quase pronto, só faltando escolher o nome.

“Já está pronto e eu acho que vai se chamar: ‘O Rio chora e o Rio Canta’. Ou então: ‘Rio, só vendo a vista'”, comentou o sambista, junto com uma gargalhada genuína e inconfundível.

Na data do aniversário, Martinho também comemora o lançamento do vídeo ‘Martinho 8.0 – Bandeira da Fé: Um Concerto Pop-Clássico’. O registro ao vivo é fruto do concerto que Martinho fez no Theatro Municipal, no Centro do Rio de Janeiro, em novembro de 2018. Na ocasião, o sambista comemorava seus 80 anos.

Nesse espetáculo, idealizado com a união de linguagens da música popular e erudita, o cantor apresentou as músicas do álbum ‘Bandeira de Fé’. O concerto teve a participação da Orquestra Filarmônica do Rio, vista em cena sob a regência do maestro Leonardo Bruno.

“No Theatro Municipal eu sou meio de casa, tenho algumas coisas lá. Então eu me sinto bem à vontade”

Segundo o compositor, a ideia surgiu em um bate-papo com o amigo Ciro Pereira da Silva, diretor do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Martinho acredita que o sucesso da iniciativa foi a mistura de estilos musicais. O rapper paulistano Rappin Hood foi um dos convidados, nas músicas ‘O sonho continua’ e ‘Zumbi dos Palmares, Zumbi’.

“Eu também queria misturar os sons. Era um espetáculo pop clássico e eu queria colocar o rap aí. Eu tinha gravado com o Rappin Hood e a gente cantou junto também. Fiz uma abertura meio clássica com a minha filha Maira. Foi muito legal”, comentou Martinho.

Voz da resistência

Sem fugir das perguntas sobre o cenário político nacional e carioca, Martinho da Vila lamentou que atualmente os movimentos culturais não tenham a importância que ele entende ser necessário.

Para o mestre do samba, os últimos episódios envolvendo a Secretario Nacional da Cultura são alertas que mostram como os governantes lidam com a cultura no país. Mas para Martinho, tudo isso “vai passar. Como tudo passa”.

“Nós estamos em um momento que temos governantes que não são ligados à cultura. É gente que não gosta de música, não vai a teatro, não lê livro, não gosta de poesia. E não sabem que sem a cultura nada existe. Nada anda”, comentou o compositor.

Ao olhar para a cidade onde viveu a maior parte da vida, Martinho mostrou surpresa ao lembrar que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, não gosta de carnaval.

“Nós temos um prefeito que não gosta de carnaval. Tem uns que dizem que o carnaval é coisa do diabo, do capeta. Eu tenho outra ideia. Se uma pessoa morrer em um baile de carnaval ele vai direito para o céu, porque ali ele está purinho. Se estiver desfilando numa escola de samba então, São Pedro até faz reverência”, comentou com bom humor.

“Mas isso também vai passar com certeza. Mas a gente tem que batalhar. Não pode dar mole”, lembrou.

Sem deixar de lado o sorriso que é marca registrada, o autor do samba enredo ‘Kizomba, Festa da Raça’, campeão do carnaval de 1988 com a Vila Isabel, fez questão de citar uma outra música que carrega ao mesmo tempo palavras de protesto e de amor.

“Na música ‘Bandeira da Fé’, eu digo que nós temos que nos reunir, lutar contra os preconceitos, mas ao mesmo tempo cantar, sambar e amar. É isso”, conclui Martinho.

Confira outros trechos da entrevista:

Carnaval antigo x carnaval atual

“Eu sempre gostei muito de carnaval de rua, carnaval de bloco, carnaval de salão”.

“Carnaval é uma necessidade. Todo mundo necessita de descontração. Ele é feito para isso. Sem falar que pular, dançar e cantar é muito bom. ‘Quem canta seus males espanta’, já dizia o dito popular”

“No passado, você via o carnaval mais presente. Você via os comerciantes que enfeitavam as ruas, os coretos nas praças com grupos tocando. O carnaval era feito espontaneamente. Toda família, por exemplo, tinha que se preocupar em comprar uma saia de cetim para a mulher, um saco de confete, rolos de serpentina, um lança perfume. Lança perfume, que antigamente não era para cheirar. Era um outro clima”.

“As escolas de samba desfilavam no dia do desfile oficial e desfilavam no seu bairro também. Hoje, você não tem uma escola de samba que desfile no seu bairro. Ela termina o carnaval e já está pensando no desfile das campeãs. Tem que se preparar para o outro desfile. Mudou muito”

“Você via as grandes escolas, Portela, Império, Salgueiro e Mangueira. Com a Vila Isabel e a Mocidade logo depois. As escolas se dividiam em vários grupos. A parte da bateria ia tocar em um lugar, outra parte em outro canto, metade das baianas ia para um lado, os passistas para outro. A escola desfilava em três lugares ao mesmo tempo durante o carnaval. Todo mundo brincava muito. Hoje não. Virou uma coisa meio burocrática”

Comunidade integrada à escola

“Isso ganhou outra forma. Por exemplo, a Vila Isabel. O pessoal mora lá no Macaco (Morro dos Macacos). Se ele for atuante, frequentar a escola, se ele participar, pronto está bom para ele. Porque ele não vai precisar juntar dinheiro para fazer a fantasia. A escola, todas elas, as principais, elas saem com 3 mil, 3.500 componentes. Pelo menos 2 mil ela veste de graça. São 2 mil componentes que não gastam com fantasia”.

Vila Isabel

“A Vila voltou a disputar títulos. Ano passado ficou em terceiro, coladinho ali no segundo. A Vila é uma grande escola e tem uma grande estrutura. Eu sou presidente de honra da Vila Isabel e volta e meia eu assumo meu posto. Aí eu vou lá e me meto em tudo. Volta e meia, eu deixo correr um pouco. Agora, eu estou nessa fase de deixar correr um pouco. Deixei para eles fazerem o carnaval. E quando está rolando um problema maior, me solicitam. Quando ninguém está me ligando é porque as coisas estão andando normalmente e isso é um bom sinal”.

A Vila forte em 2020

“A Vila vem forte porque é a Vila Isabel. Ela tem uma estrutura muito boa. Tem uma bateria muito boa. O diretor de bateria, o Macaco Branco, é lá da comunidade e eles pararam com aquela coisa de chamar diretores de outras escolas, que descaracteriza a bateria. A Vila vai sair como ela é”.

Comissão de compositores

“Eu sou contra isso. É uma tendência agora. Já está assim em algumas escolas e no futuro vai ser isso, de encomendar o samba. A escola pega um ou dois grandes compositores e pede para fazer o samba. Mas as tradições vão caindo. Não existe mais ala de compositores. Qualquer pessoa que quiser fazer um samba em qualquer escola, ele pode ser japonês, que vai concorrer. Isso é um absurdo”.

“Antes, até para ser da ala de compositores tinham normas. Ele tinha que ser apresentado por alguém, mostrar o trabalho, fazer sambas alusivos à escola, tinha que frequentar a escola durante um tempo e só depois você poderia entrar para a ala. Entrando para a ala, no ano seguinte é que você poderia concorrer ao samba enredo. Agora está tudo bagunçado. Tem compositor com três sambas disputando no mesmo carnaval”

“Se eu quisesse eu faria vários sambas. Já me convidaram muito, de várias escolas. ‘Martinho, faz o samba nosso’ e eu digo que que não quero. Falo sempre: ‘Sou da Vila, cara. Não dá’. Aí insistem assim: ‘você faz o samba e coloca um outro nome. Depois você diz que é você’. Mas eu não pego. Se eu quisesse tinha uns dois ou três sambas desfilando”.

“A Vila Isabel mesmo me encomenda samba. Às vezes eu faço. Esse ano me chamaram, mas esse ano eu não estava afim. Estava ocupado, muita coisa para fazer. Tem que ter uma frequência. Quando eu estou em alguma coisa eu me entrego. Só fazer o samba e largar para lá não dá. Ou eu estou por inteiro ou não estou. Tenho que me envolver”

Segredo para ganhar o carnaval

“No duro, o carnaval hoje é visual, mais do que qualquer outra coisa. Ele também é cultural, tem que ter a mensagem, tem que ter a história, tem que ter tudo, mas se ele não tiver o visual, já era. Uma escola pobre não ganha o carnaval”.

“Para você ter uma escola competitiva, ela tem que ter no mínimo R$ 10 milhões para fazer um carnaval. Isso daria para comprar três apartamentos desse aqui (Martinho recebeu a reportagem em seu apartamento na Barra da Tijuca). Isso só para fazer um carnaval. É um absurdo. Está fora da realidade brasileira totalmente”.

Carnaval com pouco recurso

“Para fazer um carnaval com pouco recurso, você tem que ter um carnavalesco criativo, um enredo bem feito e um samba bem feito. Em fantasia, você confronta a fantasia de luxo e a fantasia de criatividade. A de criatividade vai ganhar sempre. A de luxo não tem muito o que fugir. É normal já. Pode colocar dez alas de escola de samba e a fantasia é quase a mesma. Agora, originalidade é que são elas. Se fizer bem feito pode ganhar o carnaval”

“Em 2013, a Vila ganhou o carnaval. Eu fiz o samba e conversando com a Rosa (carnavalesca Rosa Magalhães) falei para ela ‘você é criativa, o samba é bom’ e fizemos o desfile na base dos panos africanos. Antes, fizemos o carnaval de 2012. E em 2013 a gente ganhou o carnaval. Mas se você olhar aquele carnaval, não é um carnaval rico. Ele é um carnaval original”

Sequência da carreira

“Eu já fiz umas coisinhas, viu. E ainda tenho muita coisa para fazer. Comigo é assim. Eu começo o ano e penso que esse ano vai ficar devagar. De repente, tenho uma ideia e acho que dá para fazer um disco legal, ou dá para fazer um show espetacular e assim eu trabalho. Ideias certamente vão surgir”.

“O que eu tenho planejado é um disco novo, já está pronto e eu acho que vai se chamar, ‘O Rio chora e o Rio Canta’. Ou então: ‘Rio, só vendo a vista'”.

“Fui convidado recentemente para um carnaval no Recife. E lá tem um carnaval bom. Primeiro, porque eu que vou alegrar aquele pessoal, eu também vou me divertir demais e ainda vou ganhar um qualquer. Não dá para resistir”.

Raoni Alves

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