1.
A universidade deve sempre lembrar à sociedade um valor essencial da vida democrática, qual seja, a precedência da palavra sobre qualquer outro instrumento de poder. É nosso dever prezar a argumentação, não a agressão, não o ataque, a polêmica simplesmente. E isso, dados e argumentos, nosso ato “Educação contra a barbárie” trouxe, sendo também um exemplo de nossa unidade e natureza.
A universidade tem lá suas ambiguidades. Pode ser apenas um espaço das elites, de reprodução, de competição, até de preconceitos. Mas nós sabemos que essa não é sua verdade. Ela é sobretudo, e hoje mais que nunca, o espaço da ampliação de direitos, o lugar de enfrentamento dos preconceitos, o lugar da colaboração e da criatividade. É lugar de ciência, cultura e arte. E incomoda muito por isso.
Sendo o lugar da palavra, ela pensa a palavra, vê os limites da palavra, e não aceita o cerceamento de suas posições, nem o desrespeito aos direitos que nos são garantidos pela Constituição. Não é aceitável, por exemplo, o desrespeito à sua autonomia na escolha de dirigentes; tampouco qualquer ajuste de conduta. Afinal de contas, não há o que ajustar em nossa conduta política, científica, artística ou cultural.
Devemos assim reagir a quaisquer ameaças, fazendo prevalecer o que nos é próprio, por exemplo, quando lidamos com os limites das próprias palavras, que são o instrumento de nosso trabalho; e, por isso, apenas nós mesmos podemos dizer o que é inaceitável, à luz dos melhores argumentos.
Enquanto servidores públicos, somos servidores do Estado, e não servos de governantes. E, ao que nos consta, todo código de conduta do servidor público afirma que nós devemos pautar nossas decisões pela ciência e não pela ignorância.
É próprio, então, da dignidade da função e do cargo de um servidor público pensar no interesse do comum, procurar o bem comum, e não apenas proteger suas opiniões, interesses particulares ou preconceitos. E nossa arma fundamental, garantida na constituição, é o exercício da autonomia, visando à produção do conhecimento.
2.
Tivemos diversos ataques ao uso de expressões na universidade. Nós que somos da área de filosofia não podemos deixar de refletir sobre os usos da linguagem. Sopesamos palavras e argumentos. A atenção à linguagem, o cuidado com a linguagem, nos é fundamental na vida universitária.
E isso ultrapassa o interesse do filósofo. O uso da linguagem não pode, afinal, servir à mera agressão, sendo nosso dever imediato e estratégico restabelecer uma base comum para a sociabilidade, uma capaz de garantir os interesses coletivos e de longa duração do Estado, sendo a educação exatamente isso, uma aposta de longa duração do Estado – não pode assim ser reduzida, amesquinhada.
Pensemos casos extremos de uso das palavras. No uso da linguagem, sabemos que, por vezes, nós nos valemos de algumas contradições como um forte recurso expressivo; a contradição serve-nos assim como modo de sugerir o inefável, o que não se deixa expressar.
Não é outro o recurso de Santa Tereza de Jesus, ao tentar dizer isso que ultrapassa todo limite, o êxtase místico, o contato do temporal com o divino: “Vivo sem viver em mim, / E tão alta vida espero, / Que morro porque não morro”.
A contradição é um recurso literário forte, que pode ser tortuoso e, todavia, proveitoso. Como em Euclides da Cunha, que, desafiado a definir o sertanejo, constrói um dos mais célebres oximoros de nossa literatura, uma combinação de palavras de sentido oposto, que parecem excluir-se mutuamente, mas ajudam a sugerir matizes imprevisíveis.
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, diz Euclides; e, para traduzir isso, usa um raro oximoro, “Hércules-Quasímodo” – recurso questionável talvez como leitura antropológica, mas sensacional em sua expressividade, com o qual Euclides resgata a força do sertanejo, a quem faltaria, contudo, “a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas”.
A contradição parece conseguir sugerir alguma coisa, mas outras não parecem sugerir coisa alguma, salvo o absurdo. Qual o sentido, então, de ser proibido dizer “O presidente é genocida”, e de vermos, país afora, professores, técnicos ou estudantes serem perseguidos?
Por que essa combinação tem gerado processos, intimidações?
Afinal de contas, a combinação não parece ferir a gramática, e toda sociedade brasileira neste momento se debruça sobre esta questão: há responsabilidade no caso da pandemia?
Ora, os termos “presidente” e “genocida” podem vir juntos em uma frase. Não há uma incompatibilidade lógica ou gramatical. Tampouco haveria sentido jurídico em limitar o que pode ocorrer no âmbito de alguma consideração sociológica, política ou epidemiológica. Entretanto, creio que há uma razão profunda para a proibição.
E devo admitir que têm razão aqueles que desejam banir essa combinação. Ela, simplesmente, repugna à cultura, fere o bom gosto, ultraja o bom senso. Não se pode esperar nada que preste dessa combinação. Em suma, ultrapassa todos os limites admitir que um presidente possa ser genocida, assim como jamais podemos aceitar que um genocida seja presidente.
Da mesma forma, se temos uma mínima formação, se não estamos embrutecidos, esperamos que um estadista seja acolhedor, solidário, que tenha compostura.
Certamente, um estadista (como qualquer um de nós) tem sua opinião particular, seu interesse de grupo, mas ele só se torna um verdadeiro estadista por ser capaz de colocar o interesse comum acima do seu próprio; por ser capaz de submeter sua opinião, que é particular, ao crivo da ciência, cujas proposições são, estas sim, passíveis de demonstração, de prova, de reconhecimento pela comunidade científica.
Um estadista não precisa ser um acadêmico. Aliás, já tivemos acadêmico que não julgou tão importante estender o benefício do acesso às universidades a camadas mais amplas da população. Nesse sentido, até o acadêmico pode ser ignorante.
Em suma, acadêmico ou não, o verdadeiro estadista deve ser capaz de dialogar e de dar ouvidos à academia, aos saberes mais refinados, assim como valoriza o saber de seu povo. Deve ser culto, em um sentido mais profundo, pelo qual honra o cargo e lhe confere dignidade.
Um estadista preza a vida acima de todo e qualquer interesse. É assim inadmissível a combinação “estadista ignorante”.
Não se pode acreditar que tenha estatura de estadista quem se mostra rude, sem compostura, quem desdenha a vida, ameaça, agride, desrespeita a liberdade de imprensa, a autonomia universitária, a liberdade de cátedra e de expressão.
Nunca será um estadista quem, enfim, é incapaz de solidariedade, quem favorece o embrutecimento e a violência, quem prefere as armas aos livros.
3.
Nosso ato surge, pois, em um momento limite para nossa sociedade. Em um momento em que instituições fundamentais da cultura estão sob ataque e somos nós os julgados agora por nossas decisões.
Não podemos mais, por todas as razões aqui apresentadas, por todos os argumentos, por todas as palavras, deixar de expressar nossa repugnância à barbárie.
E devemos expressar nossa repugnância também à barbárie que se disfarça em meios aparentemente racionais. É a barbárie que temos chamado de “polidez destrutiva”.
Repito aqui a citação (que antes fiz na abertura do segundo congresso virtual da UFBA) de um texto de Theodor Adorno, que, em palestra de 1967, mais de duas décadas após a segunda guerra mundial, refletiu sobre o retorno de movimentos fascistas na Alemanha, em uma constelação perigosa de meios racionais e fins irracionais, quando a irracionalidade dos fins contamina e falseia a suposta racionalidade dos meios:
“Não se deve subestimar esses movimentos – insistia Adorno – devido a seu baixo nível intelectual e devido a sua ausência de teoria. Creio que seria uma falta total de senso político se acreditássemos, por causa disso, que eles são malsucedidos.
O que é característico desses movimentos é muito mais uma extraordinária perfeição de meios, a saber, uma perfeição em primeiro lugar dos meios propagandísticos no sentido mais amplo, combinada com uma cegueira, com uma abstrusidade dos fins que aí são perseguidos” (Theodor W. Adorno. Aspectos do novo radicalismo de direita. Editora Unesp, p. 54.).
E um desses fins que está sendo perseguido é o de desmonte, o de destruição, o de desconstrução da universidade pública, gratuita, inclusiva e de qualidade.
Assim, agora utilizando meios mais silenciosos, vemos dirigentes substituírem a agressão antes feita no Twitter pelo recurso de uma redução orçamentária atroz, com a qual fazem, a pretexto da crise, uma escolha demolidora, desmontando e destruindo a aposta que a sociedade fez e deve continuar a fazer na educação – aposta que, como nos ensinaram países civilizados, é ainda mais certa e necessária em momentos de grave crise.
4.
Nosso ato denuncia. Com imensa voracidade e rapidez, com consequências ainda mais terríveis, em razão da pandemia, o deserto cresce. Avolumam-se as ameaças, aprofunda-se o caos. Mas, se o deserto cresce, diz também nosso ato, não há de crescer dentro de nós.
Confiamos assim que nosso ato não há de encerrar-se em si mesmo. Um ato sozinho não tece a manhã, como nos ensina João Cabral de Melo Neto, em um de seus mais conhecidos poemas, “Tecendo a manhã” [Publicado em A educação pela pedra, de 1965] – no qual, aliás, com grande arte, usa a incompletude dos versos, a materialidade de versos levemente interrompidos, para suscitar a bela imagem da construção coletiva de uma manhã.
No poema, frases incompletas (como “De um que apanhe esse grito que ele”) se sustentam, porém, em frases seguintes (como “e o lance a outro; de outro galo”), de sorte que o verso/grito, em vez de cair, se mantém suspenso e se eleva por outro verso/grito que o continua e, na trama entretecida, o completa.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Um ato se quebra, se não for acolhido por outro. Um grito se torna silêncio, caso não reverbere em outro. Que se construa, então, uma trama; e, em cada novo ato, em cada fala, em cada gesto, ao nos mobilizarmos e ao realizarmos nosso dever cotidiano de ensino, pesquisa e extensão, todos possamos dizer. Não seremos reféns do absurdo. Nunca seremos cúmplices da destruição. Jamais seremos servos da barbárie.
Exatamente porque somos servidores públicos, servidores do Estado, e não servos do governo, somos os que não podem aceitar certas combinações de palavras; somos os que nunca podem ser cúmplices, reféns ou servos do absurdo. E encerramos este ato, dizendo mais uma vez não à barbárie e dizendo sim à educação.
E viva a universidade pública!
João Carlos Salles é reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e ex-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).