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O capitalismo é a transformação implacável das condições e meios de acumulação, a revolução perpétua da produção, do comércio, das finanças e do consumo – Parte I

Capitalismo

O surgimento da disciplina denominada “história contemporânea”, na educação média e superior, aconteceu com a reforma do ensino promovida por Victor Duruy na França, em 1867, definindo-a como “o estudo do período transcorrido de 1789 ao Segundo Império”.

Paralelamente, com datação semelhante, o líder socialista Georges Sorel, fora da institucionalidade oficial, ensinou “história contemporânea” na Escola Livre de Ciências Políticas desde 1870.

No século e meio transcorrido, sua compreensão e formulação sofreu inúmeras modificações e precisões. A definição da Revolução Francesa (“1789”) como o ato fundador das contemporaneidades teve longe de ser ponto pacífico: o regime fascista italiano, inimigo da tradição revolucionária, jacobino-comunista ou liberal, datou seu início, nos manuais de ensino secundário, na Restauração iniciada em 1815 com o Congresso de Viena.

A questão historiográfica se subordinou à clivagem política: a periodização e os estudos históricos deviam considerar o surgimento de uma nova era da história – cuja natureza já era objeto de conceituações filosóficas e políticas, e de reações literárias e estéticas – com características que se supunham inteiramente novas. O conceito de “novo”já era dominante na ciência e na filosofia desde os inícios da modernidade, associado, como veremos, à ideia de “progresso”.

A noção de “contemporaneidade” pressupõe a divisão da história em períodos, preservando sua unidade e continuidade. A periodização da história é tão velha quanto as primeiras sociedades humanas – sejam elas ou não chamadas de “civilizações”. Ela nunca se referiu apenas a uma cronologia, quando ela existia, mas também à tentativa de dotar à história de um sentido e de uma estrutura, mesmo aparecendo sob um invólucro mítico.

A ideia de uma “idade original de ouro” e de uma queda subsequente, na qual se baseou o relato mítico das idades do mundo, pode ser considerada como uma manifestação básica universal dos povos históricos; já se encontrava na Babilônia, no antigo Irã, na China ou em povos ameríndios.

Foi com os gregos (Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias) que surgiu a tentativa de uma “divisão filosófica dos períodos históricos” (idades de ouro, prata, bronze – ou heroica, nos povos orientais – e de ferro), que foi retomada e desenvolvida pelos romanos. A ideia cíclica, ou de “eterno retorno”, combinou-se com aquela de uma sucessão de períodos histórico-culturais diferenciados – de origem divina ou humana.

A concepção cristã, baseada originalmente, como a do judaísmo, no Antigo Testamento, teve como pivô a reconciliação da humanidade com Deus através do Cristo, que informa até o presente o calendário mundial. Santo Agostinho (A Cidade de Deus) distinguiu, com base nisso, seis eras da história Humana: infantia, pueritia, adolescentia, iuventus, senior aectas e senectude (da revelação do Cristo até o Juízo Final).

O pensamento humanista-renascentista descartou a ideia de uma “era final” da história e propôs um “sistema tripartite” (Antiguidade – Idade Média – Modernidade), que se impôs e preparou o caminho para a classificação e conceitualização histórica do “tempo presente”: Philippe Melanchton, no final do século XVI, já usou as expressões diferenciadas de “tempo moderno” e “tempo presente”.O esquema tripartite humanista ingressou nos manuais de história no século XVII com Christoph Cellarius, que publicou a tríade Historia Antiqua, Historia Medii Aevi e Historia Nova, no final desse século.

Na expressão mais desenvolvida do Iluminismo, Hegel dividiu os períodos da história com base na sucessão dos grandes Estados, expressão das civilizações, seguindo o modelo dos impérios do mundo: orientais, grego, romano, germânico Embora inspirado por Hegel, Karl Marx descartou a compreensão (e periodização) da história baseada em critérios “superestruturais” (Estados, religiões ou ideologias) pondo o trabalho e a produção (em primeiro lugar, material) na sua base.

um fragmento abundantemente citado: “Em grandes traços, os modos de produção asiático; antigo; feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação social econômica.

As relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo de produção social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos; porém, as formas produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para resolver esta contradição. Com esta formação social, termina a pré-história da sociedade humana”.

Continuidade e ruptura das formas sociais precedentes, a sociedade burguesa (ou “capitalismo”, seu nome hodierno) era a forma mais desenvolvida da produção social, base comum de todas as sociedades humanas.

A sucessão, progressiva ou não, dos modos de produção, com a passagem de um ao outro via revoluções sociais, passou a ser a base da teoria marxista da história, embora a quase totalidade dos historiadores marxistas rejeitasse a ideia de um “modelo universal” de etapas históricas, que não parece ter sido em absoluto a intenção de Marx e Engels.Poderia essa ideia básica se combinar com a periodização existente, que continuou hegemônica nas instituições de ensino?

A concepção de uma “contemporaneidade histórica” se expressou a partir do fechamento mais ou menos vitorioso do ciclo das grandes revoluções democráticas na Europa e na América, que criou tendencialmente um mundo baseado em seu ideário (nação, democracia representativa, reconhecimento parcial ou universal da igualdade, direitos humanos básicos), embora ele se restringisse inicialmente a um pequeno grupo de países.

A “era contemporânea” definiu-se inicialmente pela não-contemporaneidade, ou seja, pelas etapas do desenvolvimento humano consideradas historicamente superadas; chegou-se a um consenso em definir a “Idade Contemporânea” como o período cujo início remontaria à Revolução Francesa, marcado ideologicamente pelo Iluminismo, a defesa do primado da razão e o desenvolvimento da ciência como garantia de progresso civilizatório, características de uma nova era que superava as precedentes.

Buscando-se um fundamento para além do acontecer político, jurídico e ideológico (ou da história reduzida à evolução dos Estados e das religiões, como Karl Marx qualificou criticamente a historiografia de seu tempo), chegou-se a uma definição da contemporaneidade pelo desenvolvimento e consolidação do capitalismo e pelas disputas das grandes potências europeias por territórios, matérias-primas e mercados.

Tal conceituação abalou o modelo inicial, pois após duas grandes guerras mundiais, o ceticismo abalou a crença de progresso inevitável da civilização: nações “avançadas e instruídas” eram capazes de cometer atrocidades “dignas de bárbaros”.

Um segundo aspecto questionado desse critério foi seu natural posicionamento eurocêntrico, pois o capitalismo, embora tendencialmente mundial desde seus primórdios, nasceu indubitavelmente na Europa (ocidental), o que levou a questionar a “validade do modelo europeu de divisão histórica”, baseado exclusivamente em sociedades capitalistas (excluindo, portanto, as que não o eram), ou seja, a divisão de história em períodos baseada num critério euro-centrado, que seria a base para posicionamentos ideológicos legitimadores da escalada imperialista das potências europeias.

Finalmente, a datação iniciada em na Revolução Francesa ou na Revolução Americana (1776), em se pondo no seu centro metodológico a história do capitalismo, não pareceu adequada, pois a “era do capital” teve sua origem nos séculos precedentes, sendo situada no século XVI, por exemplo, por autores tão divergentes quanto à origem e natureza do capitalismo como Max Weber ou Karl Marx.

Dentro de uma contemporaneidade polêmica e controvertida, desenvolveu-se nas últimas décadas uma “história do tempo presente” dedicada à investigação de permanências e rupturas temporais não superadas, embora nem sempre de modo explícito ou reconhecido, buscando pôr em seu contexto histórico as sociedades hodiernas por meio da investigação da construção de seu passado e de seus usos públicos e políticos: o tempo presente estaria permeado por passados dos mais diversos tipos, inclusive bem remotos (pré-contemporâneos) ou propositalmente ocultos pelo “discurso histórico oficial”.

A dimensão política da “história do tempo presente” é bastante evidente, pois está vinculada ao surgimento de políticas de memória, à investigação de traumas históricos nacionais e mundiais, ao crescimento de reivindicações políticas de reparação (de descendentes de escravos ou de vítimas do Holocausto judeu, por exemplo) e à revalorização do acontecimento para entender o processo histórico, superando uma abordagem unilateralmente centrada na “longa duração” (as continuidades inconscientes ou semiconscientes de longo prazo, por trás da “fumaça” dos eventos) ou nos processos seculares.

Mesmo aceita, essa abordagem não elimina as categorias gerais de análise de um período histórico delimitado, se as considerarmos as únicas capazes de ir além da experiência e evidência imediatas, o que é o significado e fundamento da pretensão científica da história.

Se aceitarmos, como hipótese de partida, que o desenvolvimento do capitalismo, em suas diversas configurações espaciais e temporais, constitui o eixo interpretativo da história contemporânea, na medida em que o capitalismo foi o único sistema histórico de produção que se expandiu mundialmente, devemos admitir que, se a história do capital pode ser rastreada a partir de tempos remotos, a história do capitalismo é bem mais recente, mas não tão recente quanto o último quartel do século XVIII, sendo sua origem objeto de controvérsias.

Sua relação social fundante é a existente entre trabalho assalariado e capital: a história das sociedades contemporâneas estaria determinada pelas relações estabelecidas com base nesse fundamento, sua dinâmica e contradições. Mobilidade social, carreira baseada no mérito, vínculo entre educação e ascensão social, igualdade formal de oportunidades, flexibilidade profissional, mercantilização geral, egoísmo hedonista, entre outras, seriam suas manifestações derivadas. Seriam, inclusive, a reformulação em novos termos de características pré-existentes:

“Ainda que várias instituições (dinheiro, escrita, leitura, religião) presentes no feudalismo possam ter semelhanças de família com o capitalismo, apenas no interior das emergentes relações capitalistas, da gramática histórica do capital, é que passamos a encontrar novos valores sociais como ‘individualismo’, ‘concorrência’, ‘lucro’, ‘mobilidade social’ e o novo modo de produção, com sua nova divisão do trabalho”.

A origem do conceito de “capitalismo” não é difícil de rastrear. O termo “capital” tem sua origem no latim capitale, capitalis (“principal, primeiro, chefe”), que vem, por sua vez, do indo-europeu kaput, “cabeça”.

É a mesma etimologia da “cidade capital” (ou “primeira cidade”) das nações modernas, ou do italiano capo. Em sentido amplo, a noção de “capital” foi usada como sinônimo de riqueza, sob qualquer forma em que ela se apresentasse ou como quer que ela fosse usada.

Em seu sentido moderno, o conceito surgiu na Itália nos séculos XII e XIII, designando estoques de mercadorias, somas de dinheiro ou dinheiro com direito a juros. No século XIII já se falava, na Itália, em “capital de bens” de uma firma comercial.

O jurista francês Beumanoir usou o termo no século XIII para referir-se ao “capital” de uma dívida. Seu uso se generalizou depois como soma do dinheiro emprestado, diferenciada dos juros do empréstimo.

O termo “capitalista”, por sua vez, refere-se ao proprietário de capital, seu uso data de meados do século XVII. O Hollandische Mercurius usou-o, pioneiramente (Holanda foi uma das nações pioneiras do capitalismo), entre 1633 e 1654, para se referir aos proprietários de capital comercial. David Ricardo, nos Principles of Political Economy and Taxation (de 1817) também o usou.
Seu predecessor Adam Smith, porém, não o usou em A Riqueza das Nações (1776), onde se referiu ao novo sistema econômico como “liberalismo”. O termo foi usado em 1753 na Encyclopaedia Britannica, como “estado de quem é rico”; na França, ele já era usado desde o século XVIII para se referir aos proprietários industriais.

Rousseau o usou em 1759, em sua correspondência. Pierre-Joseph Proudhon usou-o em O que é a propriedade? (1840) para se referir aos proprietários em geral. Benjamin Disraeli, futuro premiê da Grã-Bretanha, o usou em seu romance Sybil (1845), também chamado The Two Nations, em que o pano de fundo eram as condições atrozes de existência da nova classe operária da Inglaterra.

Marx e Engels falaram do Kapitalist no Manifesto Comunista (1848) para se referir aos proprietários de capital. O termo foi também usado por Louis Blanc, socialista republicano, em 1850. Marx e Engels se referiram ao sistema capitalista (Kapitalistisches System) e ao modo de produção capitalista (Kapitalistische Produktionsform) em Das Kapital (1867).
Finalmente, “por volta de 1860, uma nova palavra entrou no vocabulário econômico e político do mundo: capitalismo”.

Como relação social entre empresários proprietários de capital e trabalhadores “livres” (livres para vender sua capacidade de trabalho, sem mais nada para vender) formas embrionárias de capital existiram desde as primeiras sociedades históricas.

Considerando as “formas antediluvianas do capital” (o capital comercial ou o usurário) como plenamente capitalistas, diversos autores postularam a atemporalidade e/ou naturalidade do capitalismo, como um sistema econômico-social que se poderia projetar indefinidamente em direção do passado, considerando capitalista qualquer sociedade em que existissem dinheiro e capital comercial ou portador de juros.

Essas sociedades, porém, não eram capitalistas, embora grande parte de sua produção fosse direcionada para o mercado, pois não estavam alicerçadas em relações capitalistas de produção: “Falar de ‘capitalismo’ antigo ou medieval, porque havia financistas em Roma ou mercadores em Veneza é um abuso de linguagem.

Esses personagens jamais dominaram a produção social de sua época, assegurada em Roma pelos escravos e na Idade Média pelos camponeses, sob os diversos estatutos da servidão.

A produção industrial da época feudal era obtida quase exclusivamente sob a forma artesanal ou corporativa. O mestre artesão comprometia seu capital e seu trabalho e alimentava em sua casa seus companheiros e seus aprendizes. Não há separação entre os meios de produção e o produtor, não há redução das relações sociais a simples laços de dinheiro: portanto, não há capitalismo”.

Qual foi o diferencial histórico do capitalismo? O capital é uma forma determinada de valor, é valor que se expande de modo indefinido (sine die e sem limites quantitativos).

No capitalismo, por força da circulação e da concorrência a simples preservação do valor não é possível: é necessário que o capital se reproduza e se expanda, não apenas através da reprodução simples (em que os valores dos capitais são repostos permanentemente na produção, sem incremento nem redução), mas como reprodução ampliada, como acumulação de valor e mais-valia, como “reinvestimento” da mais-valia obtida no ciclo precedente e acumulação de capital.

O senhor feudal, diversamente, se satisfazia quando ele recebia suficiente renda de seus camponeses para sustentar a si próprio, sua família e seus empregados, dentro do seu modo de vida.

O capitalista, ao contrário, tem um “apetite voraz”, uma “fome de lobisomem por mais-trabalho”, ou seja, por lucros, que brota da necessidade de combater seus concorrentes, com vistas a superá-los, ou ir à falência (desaparecer do mercado).

No capitalismo, a criação do valor depende da competição entre mercadorias e capitais, o que pressupõe a generalização da produção de mercadorias.

O capitalismo nasceu da apropriação da esfera da produção social pelo capital: “A subordinação da produção ao capital e o aparecimento da relação de classe entre os capitalistas e os produtores devem ser considerados o divisor de águas entre o velho e o novo modo de produção”.

 

Nesse novo sistema econômico, a origem do lucro se baseia na troca entre capital e trabalho assalariado, na qual se baseia a produção moderna, que a reproduz e amplia constantemente:

“O processo de produção capitalista reproduz, mediante seu próprio procedimento, a separação entre força de trabalho e condições de trabalho. Ele reproduz e perpetua, com isso, as condições de exploração do trabalhador”. Os aspectos comuns a todos os capitais surgem da expansão do valor, produto da exploração do trabalhador na produção.

Na era contemporânea, todas as categorias econômicas se apresentam de forma quantitativa, reduzidas, em última instância, a dinheiro; no entanto, somente no capitalismo a forma dinheiro, muito mais antiga do que ele, desenvolve todas suas potencialidades, e se transforma no “signo absoluto”, o mediador geral das relações sociais.                                 

O dinheiro, no entanto, é quase tão antigo quanto a troca comercial, na medida em que esta superou o limite do escambo realizado entre comunidades isoladas; sua origem remonta ao culto dos sacrifícios orientado para a fecundidade da terra, dos animais e das mulheres.

Na Roma antiga, o dinheiro era cunhado no templo de Juno, deusa do matrimônio identificada com a Hera grega, também chamada de Moneta, denominação que sobreviveu em todas as línguas de origem latina:

“Inicialmente, as moedas só eram cunhadas em quantidades grandes, as que precisavam os funcionários do templo para seu comércio exterior em dinheiro. Havia sempre um pequeno bazar onde os administradores do templo trocavam vacas por produtos da terra. Terminada a cerimônia, os servidores do templo reuniam as vacas, que podiam vender no dia seguinte.

Esses rituais sacrificiais permitiam às autoridades acumular grandes tesouros mediante a troca de animais votivos pelos produtos da terra, com o que se teve o motivo e a necessidade de um comércio muito ativo, sobretudo com terras longínquas; os administradores do templo forçosamente foram se animando em direção de negócios em dinheiro cada vez mais audazes”.
O dinheiro, portanto, surgiu não só para facilitar as trocas, mas com vistas ao lucro, sendo ele próprio “capital em potencial”.

Do uso de objetos diversos de uso comum como moeda passou-se para os metais preciosos, e daí para o papel moeda fiduciário prometendo pagar ouro ou prata, seguido pelo papel moeda de curso forçado, experimentado pela primeira vez em larga escala, no Ocidente, na França de inícios do século XVIII, embora haja evidências de seu uso na China um milênio antes.

Os metais preciosos conquistaram o papel de mercadoria-dinheiro através de um longo processo histórico: “Na origem, serve como moeda a mercadoria mais trocada como objeto necessário, aquela que mais circula, a que, em uma determinada organização social, representa a riqueza por excelência: o sal, os couros, o gado, os escravos (…)

A utilidade específica da mercadoria, seja como objeto particular de consumo (os couros), seja como instrumento de produção imediato (os escravos) a transforma em dinheiro. Mas, na medida em que o desenvolvimento avança, ocorre o fenômeno inverso: a mercadoria que menos é objeto de consumo ou instrumento de produção passa a desempenhar melhor aquele papel, pois responde às necessidades da troca como tal.

No primeiro caso, a mercadoria se converte em dinheiro por causa de seu valor de uso específico; no segundo, seu valor de uso específico decorre do fato de servir como dinheiro.

Durável, inalterável, passível de ser dividida e somada, transportável com relativa facilidade, pode conter um valor de troca máximo em um volume mínimo; tudo isso torna os metais preciosos particularmente adequados nesse último estágio”.

O capitalismo pressupõe a transformação do dinheiro em capital, baseado na obtenção do lucro através da exploração do trabalho alheio, não no logro comercial ou na extorsão usurária.

Essa concepção da transformação qualitativa da função do dinheiro na era do capital esteve longe de ser consensual. Georg Simmel, no início do século XX, publicou a “obra prima da filosofia dos valores”, a Filosofia do Dinheiro: o comércio seria o elemento decisivo da civilização; os homens civilizados seriam “animais que praticam o intercambio”.

A troca absorveria a violência social-animal preexistente nos seres humanos, e o dinheiro universalizaria a troca.

A modernidade se caracterizaria por traços intrinsecamente ligados a vida monetária, como a aceleração do tempo, a monetarização das relações sociais, a ampliação dos mercados, a racionalização e quantificação da vida e a inversão de meios e fins.

O dinheiro seria o deus da vida moderna, pois na modernidade tudo gira ao redor do dinheiro e, ao mesmo tempo, o dinheiro faz tudo girar. O dinheiro seria, para Simmel, a categoria transcendental da socialização humana.

Nessa filosofia dos valores, o capitalismo não seria uma ruptura em relação às fases históricas precedentes, mas um fenômeno definidor de um “processo civilizatório” sem solução de continuidade.

O ponto nodal da passagem para a sociedade civilizada seria a passagem da economia natural para a economia monetária.

Na sociedade do capital, porém, a mercadoria-dinheiro não é fim, mas meio da acumulação de capital. O capitalista não é o entesourador, mas o investidor (industrial ou agrário; comercial ou financeiro).

Na “sociedade do investimento”, com a separação do produtor dos meios de produção e a acumulação deles no pólo social oposto, o dos proprietários desses meios, o dinheiro reúne as condições para atuar como capital, tornando possível o surgimento da reprodução ampliada e da acumulação de capital, e desfraldando todas suas funções potenciais.

Foi só nessas condições que o valor dos metais preciosos se converteu, num longo processo, na referência da moeda fiduciária, e deu lugar às modernas teorias do dinheiro.

A teoria pioneira do padrão-ouro, a “teoria quantitativa da moeda”, foi elaborada por David Hume em 1752, sob o nome de “modelo de fluxo de moedas metálicas” e destacava as relações entre quantidades de moeda e níveis de preço.

Pressupunha-se que cada banco, instituição já desenvolvida nas feiras medievais, era obrigado a converter as notas bancárias por ele emitidas em ouro (ou prata), sempre que solicitado pelo cliente.

Final da primeira parte

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).

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