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O constrangimento escravagista e a contradição liberal

Constrangimento escravagista

 Estranhamente muitas pessoas se conformam com a escravidão, inclusive desculpam sociedades, principalmente as mais modernas, por entenderem que tal absurdo fazia parte dos costumes e da cultura da época, mas não é bem assim.

A história da humanidade é marcada por rebeliões escravas, basta lembrarmos que em 73 a.C Espártaco reunião entre 40 e 70 mil escravos para se rebelar contra seus escravagistas, desta forma, nunca foi algo normal ou natural, caso fosse, guerras assim não ocorreriam.

O objetivo deste texto é demonstrar que, mesmo num país tão liberal quanto a Inglaterra, homens cultos que se diziam ímpetos liberais e ferrenhos críticos à escravidão, na prática, lucravam sob a força trabalhadora escrava, caindo por terra a defesa da condição natural dos homens: a liberdade.

No que tange ao liberalismo, a condição natural dos homens não é a do “bom selvagem” como explica Rousseau, onde diz que o Estado de natureza do homem é aquele isolado nas florestas, sem propriedades e tratando todos igualmente, não confundam.

Trata da perspectiva do filósofo John Locke, de um homem social, livre para agir convenientemente “dentro dos limites do direito natural, sem pedir autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade” (LOCKE, 2019, p. 95).

Paradoxalmente, a época que houve mais escravização foi em meados do século 17, justamente nos países de políticas liberais (Estados Unidos, França e Inglaterra, por exemplo), nesta circunstância, usaremos a Inglaterra e o filósofo John Locke, especificamente seu livro “Segundo tratado da sociedade civil”, como referência crítica.

Embora a abolição tenha sido em 1833, a escravidão aumentou drasticamente e mais evidente nos negros africanos.

Para se ter ideia, estima-se que mais de 11 milhões de africanos escravizados percorreram os mares até locais onde iriam trabalhar, geralmente em grandes plantações das colônias britânicas, com o Caribe.

Segundo a jornalista Eddo-Lodge, em seu livro “Porque eu não converso mais sobre raça”, alguns britânicos possuíam plantações que funcionavam quase inteiramente com trabalho escravo.

Outros compravam apenas um punhado de escravos de plantação, com a intenção de obter um retorno sobre seus investimentos. Muitos escoceses foram trabalhar como feitores de escravos na Jamaica, e alguns trouxeram seus escravos com eles quando voltaram para a Grã-Bretanha.

Escravos, assim como qualquer outra propriedade particular, poderiam ser herdados, e muitos britânicos viveram confortavelmente do trabalho de pessoas negras escravizadas, sem se envolverem diretamente na transação (EDDO-LODGE, 2019, pag. 19)

Escravizar negros africanos não foi por acaso, eles eram mais resistente a doenças, com isso, a chance de morrer era menor que um escravo europeu, o lucro era garantido, sim, os escravos eram tratados como mercadoria, por isso chamados de “gado negro”.

Os teóricos liberais, quando diante da escravidão, mostravam-se constrangidos desta barbaridade, Locke por exemplo, dedicou o capítulo IV do livro “Segundo tratado sobre o governo civil” para demonstrar sua aversão à escravidão.

Ao falar em constrangimento pensamos em ética, moral, valores, bons costumes,  maldade ou bondade… mas não funciona se interferir nos lucros e propriedades.

A escravidão na Inglaterra liberal era necessária para o desenvolvimento da estrutura do sistema, sem ela, tudo cairia num efeito dominó, por isso, podiam até se constranger, mas viviam e superavam tal sentimento com facilidade ímpar, logo, o velho provérbio português: amizade, amizade, negros a parte.

Os liberais, indiretamente, costumam buscar normalidade na escravidão e se eximir, pelo menos parcialmente, da culpa.

Locke busca diferenciar o servo do escravo, ele sabia que não faltavam escravos na Inglaterra e suas colônias, fazendo isso, acaba fornecendo ideias aos escravagistas que, a partir dos seus escritos, souberam tratar um servo e um escravo diferentemente.

Por exemplo, no capítulo IV, Locke fala em “perfeita condição da escravidão” e  no capítulo VII conceitua como um estado onde “estão pelo direito de natureza sujeitos à dominação absoluta e ao poder absoluto de seus senhores”, portanto, um escravo se quer pode ser considerado como um ente da sociedade civil porque não tem direito à propriedade, pelo contrário, ele é a propriedade e neste ponto, o escravo tende a perder as suas características humanas para reduzir-se a coisa e mercadoria, como fica evidente em particular na referência aos fazendeiros das Índias ocidentais , os quais possuem “escravos e cavalos” (Slaves or Horses) em base a uma “compra” (purchase) regular ou “graças ao contrato e ao dinheiro” (LOSURDO, 2006, 61)

Claro que o constrangimento ultrapassou a teoria, houve lutas abolicionistas práticas e que surtiram efeitos importantes, devemos lembrar de um grupo de ingleses que incentivou milhares de pessoas a negar produtos agrícolas produzidos em áreas escravizadas, bem, o prejuízo foi tão grande que o Brasil, tardiamente, aboliu a escravidão.

Também não se deve esquecer da Sociedade para Efetuar a Abolição do Comércio Escravos (A Society for Effecting the Abolition of Slavery – SEAS) que fizeram campanha por quase 50 anos até conseguirem apoio político suficiente para declararem, em 1883, lei que abolia a escravidão, porém, por absurdo que seja, somente os donos de escravos foram indenizados como se fossem vítimas.

O conceito de liberalismo político é enganoso e só beneficia àqueles que estão, de alguma forma, íntimos à escravidão (ou daqueles que negam que houve escravidão), não há como defender liberdade e igualdade entre os homens quando se escraviza pessoas em prol de um sistema político colonialista, política nunca foi mais valiosa que a liberdade e muito menos à vida, liberalismo e escravidão é um parto gêmeo do ventre da contradição.

Saulo Barbosa Santiago dos Santos – Guarda Civil, Professor de filosofia e Autista

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