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O silêncio dos mortos

Silêncio dos mortos - foto Christiana Carvalho

A Anvisa foi desmoralizada por vários meses pelos agentes da morte do Planalto e do Ministério da Saúde, que erraram em tudo, atrasaram tudo, negaram tudo e ficaram com a cloroquina, agora expulsa para o inferno de Dante pela Anvisa

Quaisquer objeções de caráter científico cabíveis na apresentação da Anvisa no dia 17 de janeiro poderiam ser respondidas pelas diretorias que terminaram por aprovar o uso emergencial da Coronavac e da ChadOx1.

Envoltas na conhecida pompa brasiliana, as leituras dos relatórios primaram pelo discurso do rigor, da regulação, da precisão e das aberturas para o risco a serem monitoradas.

Tudo foi preparado, inclusive textos escritos, pois a escritura confere toda a autoridade e o fenômeno tem caráter nacional. Mas na realidade o caráter grave do fenômeno é o da morte, do luto, do horror e do asco pelo comportamento de governantes e suas tropas.

A única resposta impossível para a Anvisa viria da quebra de silêncio dos mortos. Ou dos parentes dos mortos, os quais, ao lado de milhões de brasileiros, talvez estejam dando Graças neste dia pela notícia salvadora de, finalmente, termos uma vacina, sem qualquer importância ao fato de o fazermos depois de 60 países.

E a despeito de sermos uma das dez maiores economias do mundo. Ocorre aqui o que ocorre em educação, saúde, saneamento: o número dez da pompa deve ser projetado sobre o septuagésimo ou octogésimo da realidade cotidiana em educação, saúde, cultura, saneamento etc.

Nada importa, senão o anelo salvador. Pelo menos por hoje e amanhã.

Pode ter passado despercebido, também, que os diretores da Anvisa transformaram Bolsonaro e Pazuello, nas palavras de Estanislau Ponte Preta, em “subnitrato de pó de espirro”, isto é, arrasaram os agentes da morte e anunciadores da maldita cloroquina, também chamada de “tratamento precoce”.

E o fizeram ao dizer, em som bem audível, que para a SarsCov 2 não há tratamento terapêutico alternativo. Há vacina. Trata-se do fim da cloroquina e do seu marqueteiro, o anjo decaído da morte, a partir do seu próprio governo. Só falta, pois, o impedimento, pois ele tende a atrapalhar em tudo o que puder.

A lógica dos discursos na reunião da Anvisa, amplamente televisiva, foi a do poder, que Max Weber trabalharia sob o ângulo da burocracia, o que não significa coisa ruim.

Trata-se do arcabouço regulatório que precisa ser seguido e que se organizou na história da burocracia médico-farmacêutica brasileira a partir de parâmetros internacionais.

Ocorre que, muitas vezes, como mostrou Weber (Ensaios de Sociologia, 1983), essa racionalização apresenta equívocos, descontinuidades e tensões, especialmente porque, em nosso caso, as formas de burocracia certamente são acrescidas da leitura subdesenvolvida do poder do conhecimento muito acima da “ignorância popular”.

E pior, que ele é exercido a despeito do choro ao lado. Este “povo ignorante”, no entanto, é aquele que garante tudo, mantém todo o poder brasiliano e faz avançar a vida.

Essa gente supostamente ignorante, se estivesse presente sob a forma de conselhos na base do ministério da saúde, em lugar dos militares comandados e silenciosos, teria exigido que se comprassem seringas e agulhas em julho de 2020 e teria exigido que as vacinas fossem apressadas em todas as dimensões do processo de estudo, produção e análise para uso social.

O povo conhece a morte bem de perto. Que o diga a mais original obra natalina do Brasil, Morte e Vida Severina, de João Cabral.

Sem o povo no poder de Brasília, não fomos sequer capazes de acompanhar uma nação sempre inquieta e mesmo conflitiva, mas aguerrida, como a Argentina, cuja agência similar, a Anmat, começou a análise da vacina de Oxford em 5 de outubro e já aprovou, ou conclui estudos sobre a Sputnik V e a vacina da Pfizer.

Ora, quem pode provar que a Anmat foi cientificamente inferior à Anvisa? Ou teve o senso da urgência diante da morte galopante? Por acaso, foi negligente a Anmat em aprovar o uso emergencial das vacinas poucas horas depois do Reino Unido?

De modo algum. Demonstrou, sim, superioridade e coragem, sem perder a capacidade científica.

Enfim, não sofreu a sanha assassina e governamental que cobre o nosso país e exige reação imediata de toda a sociedade.

Há sempre um pouco do “humanitismo” de Machado de Assis em cada instituição garantida pelo poder, ou na transversalidade dos estratos do poder centralizador e autoritário.

Essas instituições, independentemente das virtudes de seu pessoal técnico, são sempre algo darwinianas, ou, elas vivem e sobrevivem bem acima do povo que as garante e promove sentido de sua existência.

Diga-se que a Anvisa tem razão ao dizer que precisa de submissão empresarial de fármaco para agir.

Nesse caso, ela foi desmoralizada por vários meses pelos agentes da morte do Planalto e do Ministério da Saúde, que erraram em tudo, atrasaram tudo, negaram tudo e ficaram com a cloroquina, agora expulsa para o inferno de Dante pela Anvisa.

Se este país autoritário e bisonho tivesse constituído conselhos populares de acompanhamento da pandemia, incluídos neles parentes dos mortos, seria muito outro o nosso quadro de saúde.

Pois bem. Teremos vacina para um mínimo do nosso povo. Um idoso como eu, 74 anos e em tratamento de câncer, ficarei necessariamente com algum remorso ao tomar a vacina em fevereiro e março, pois sei que gente mais vulnerável vai demorar muito a tomar a vacina nesse país continente e sem governo, que não conseguiu comprar, por absoluta incompetência, uma só dose de vacina, senão a Coronavac, enquanto a Argentina já tem muitos milhões em estoque.

A que temos já nos chega corrompida pela briga dos candidatos a qualquer coisa nos próximos anos, o anjo decaído e o governador paulista que falou muito e pouco disse nos últimos meses.

Veja-se que Doria, antes de qualquer publicação em órgão oficial da decisão da Anvisa, já montou o palco paulista e começou a vacinar. Espere-se a reação do candidato à reeleição (livre-nos Deus!) nas próximas horas… Dória se veste de bandeira brasileira.

Toda a mídia brasileira parece ser porta voz das divindades e nós, que fazemos alguma crítica, passamos a ser pessimistas. E la nave va.

Os discursos da Anvisa tiveram qualidade científica, mas fugiram de fatos que exigem muito trabalho científico desde ontem.

Por exemplo, a questão das novas cepas. Como se observa, depois que um comitê científico inglês, segundo a Reuters, início deste mês, levantou a questão de a vacina de Oxford provavelmente não ser efetiva à população da África do Sul, o assunto foi para os laboratórios e está a exigir muito trabalho.

Por outro lado, o governo sul-africano está sob ataque, pois, a despeito de ter apoiado a pesquisa da Oxford, agora busca a maior quantidade possível do sistema Covax, da OMS.

Ocorre que temos cepa, chamada amazônica, com mutações semelhantes – e muito perigosas – e, em razão de nos termos atrasado muito, não podemos negar a vacina da Oxford, cujo caminho de estudo e produção já sofreu vários percalços, conhecidos por todo mundo.

Pode ser que o laboratório indiano SERUM esteja com atitude responsável neste momento sobre o envio, ou não, da vacina para a realidade brasileira.

Muitas questões ficaram no ar, a despeito das cinco horas de apresentação, mas são compreensíveis, não somente por razões científicas, mas fortemente culturais.

Entre elas, a ignorância sobre a farmacopeia chinesa, chamada de “recente” a despeito dos 5 mil anos de civilização e de cultura médica na China.

Em seguida, exige-se grande apoio aos cientistas brasileiros – e não somente à Anvisa – para a realização de estudos completos sobre todo o processo de desenvolvimento do vírus e suas mutações, bem como ao aperfeiçoamento das vacinas a serem distribuídas durante todo o ano e também em 2022.

Atenção especial será dedicada ao Hazard Ratio, os fenômenos de risco que precisam ser diminuídos pelo conhecimento e pela ampliação dos estudos. Interessa também a ampliação dos trabalhos de randomização, capazes de garantir esse aperfeiçoamento e suprimir defeitos de inclusão de grupos sociais nos estudos.

Muita atenção aos estudos sobre os idosos, pouco presentes nos estudos.

Pelo sim, pelo não (pois não temos governo), estamos ao lado de Reino Unido, Indonésia, Argentina, Índia, China e Turquia.

Não cabe, de modo algum, essa louvação midiática que se viu no domingo, inclusive de parte de colegas da universidade e dos institutos de pesquisa, pois a Anvisa fez a sua obrigação em tempo tardio e devemos continuar a criticar a quantidade exorbitante de erros cometidos durante o segundo semestre de 2020 e que nos levam a muito mais de 200 mil famílias enlutadas e outras milhares a sofrer humilhação no vasto território, notadamente, como sempre, os mais pobres.

Nenhum orgulho diante do papel da Anvisa. Sim a justiça de vê-la expulsar da nossa história Bolsonaro e Pazuello.  Sim o reconhecimento da importância da Ciência.

O que nos interessa é tanto cortar o processo de morte (e afastar os que vão contra tal desiderato) quanto analisar todos os erros brutais e mudar completamente os rumos do tratamento, da pesquisa, do estudo e das ações cotidianas de caráter médico-farmacêutico.

Nada de oba-oba ao lado da morte. Há muito a fazer e muita compaixão a compartilhar com o coração desinteressado. E viva o SUS!!

Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

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