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ser médico, preto e gay no Brasil

FRED NICÁCIO

Muitos me perguntam como é o meu dia a dia de atendimentos no SUS. Há uma curiosidade muito grande das pessoas em saberem se eu já passei por algum ato racista durante a minha caminhada na medicina. E a resposta é: ainda passo.

 Meu dia a dia não é, na teoria, muito diferente de qualquer outro médico brasileiro atuante na saúde pública. Exceto pelo fato de eu ser (na esmagadora maioria das vezes) o único preto do rolê. Sou confundido com qualquer outro funcionário do hospital, mas de cara – e pela cor da cara – nunca confundido com um médico.

Não que ser confundido com outro profissional seja um problema pra mim, mas isso fala mais sobre o outro do que sobre mim. Isso é reflexo de como é difícil enxergar um homem preto como chefe de equipe.

Comportamentos racistas estão entranhados dentro da medicina, e acontecem o tempo todo. Está também entranhado na população mais simples e desprivilegiada. Esses que recebem o legado do racismo estrutural e o repetem sem ter consciência do que estão fazendo.

Quando por exemplo fazem cara de espanto quando entram no consultório e dão de cara comigo. Alguns até voltam e olham na porta do consultório pra ver se não entraram no lugar errado.

Certa vez, em um atendimento no SUS, uma paciente branca entrou no meu consultório e fez uma cara de espanto ao me ver.

Dei bom dia e permiti que se sentasse. Perguntei sobre o motivo da consulta, e ela relutante disse que queria falar com o médico. Isso ocorreu mesmo eu estando de jaleco escrito Dr. Fred Nicácio – Médico e com estetoscópio no pescoço – instrumento “simbólico” da medicina.

Afirmei que eu era o médico que a atenderia, ela então começou a me fazer diversas perguntas técnicas com palavras rebuscadas, na intenção de testar meus conhecimentos e ver se eu realmente era médico ou me fazia passar por um. Ao final da consulta, ela pegou a sua ficha com meu carimbo e assinatura e se dirigiu ao posto de enfermagem.

Nesta hora, a paciente perguntou as enfermeiras: “ Aquele homem negro lá dentro do consultório, é mesmo o médico?” As enfermeiras confirmaram que sim. Mas mesmo assim, ela se negou a medicação intra-hospitalar e foi embora apenas com a receita para comprar os remédios na farmácia.

Pois é… Essa é a realidade de ser médico preto no Brasil.

E você, quantas vezes já foi atendido por alguém como eu? Por um médico negro. E que outra explicação, senão o racismo, para sua resposta ser “poucas” ou “nenhuma”?

Esse assunto parece estar batido e de certa forma cansativo, não é mesmo?

Mas cansativo mesmo é ter que passar uma vida inteira sobrevivendo a olhares e piadas. E isso só se agrava quando se é gay, como é o meu caso. Ser gay no meu trabalho – hoje – não é uma questão problemática, mas para muitos ainda é.

Quando por exemplo, encontram dificuldade de ingressar em áreas de especializações repletas de atitudes homofóbicas, misóginas e machistas. Foi um problema pra mim durante um período na faculdade, onde me sentia sempre deslocado dos grupos de meninos. Isso na verdade foi uma repetição do meu ensino fundamental e médio.

Eu sempre era mais acolhido pelas meninas.

Até que me entendi como um homem gay, – e esse processo foi muito mais doloroso do que poderia ter sido – e passei a mudar as minhas relações comigo mesmo e consequentemente com as pessoas a minha volta.

Assim como eu me questionei a gerar mudanças que fossem sólidas sobre meu comportamento diante da minha sexualidade, eu te convido a chegarmos a uma conclusão sobre o racismo estrutural no Brasil.

E essa certamente não será a solução para os seus dilemas, mas sem duvidas poderá ser o início de uma desconstrução diária. Isso se dará a partir do momento em que você se perguntar: “ Como eu sou racista?” .

Quais atitudes automáticas eu tenho no meu comportamento diário que são geradas pelo racismo estrutural?

Cotas e políticas públicas já existem, já são direitos conquistados, já é lei. Precisamos que a sociedade entenda que não basta não ser racista, é necessário ser anti-racista.

O racismo é um problema criado pelas pessoas brancas. Não é obrigação da comunidade negra prestar contas de soluções para esse problema. Nós trazemos à tona assuntos que são de interesse da sociedade, então a sociedade precisa trazer uma resposta.

Dessa forma, estabelecendo novos canais de diálogo e abrindo espaços para que outras vozes sejam ouvidas, teremos uma construção para além dos nossos achismos, e enriqueceremos juntos nossa sociedade. Só assim um médico preto não será mais um espanto dentro do nosso sistema de saúde.

FRED NICÁCIO

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