Há tempos que venho esperando pelo dia 28 de maio de 2024 para realizar o acerto de contas que aqui segue. Acerto de contas pois foi eu mesmo quem me convidei a fazer a atualização histórica, o balanço de uma época, da bomba relógio armada para metralhar um país que Nuno Ramos soltou, assim, como quem não quer nada além de uma verborragia, na página três da Folha de S. Paulo em 28 de maio de 2014.
Faltava menos de um mês para a estreia do Brasil contra a Croácia em Itaquera, abrindo a porteira da Copa do Mundo. De lá para cá, o Brasil tomou 7 a 1 da Alemanha, que ganhou nosso Mundial de 2014, e a zebra da Croácia foi parar na final da Copa de 2018, na Rússia.
Mas eu não vim pela Copa, que agora muda de data conforme a dança climática endinheirada. Isto porque tem dez anos que Nuno Ramos suspeitou.
Oficialmente ele não se sentia preparado para dizer sobre nada, e então disse sobre tudo, valendo-se deste sacana recurso de suspeitar. Coisa que pode parecer mezzo irônica, mezzo cortesã, mas que funcionou, pois seu “Suspeito que estamos” foi um marco de época.
Este texto é menos pretencioso no desejo da repercussão. Antes, quero dizer do que sei. Afinal, há dez anos não havia apenas futebol para ganhar, mas uma eleição para capitanear a vitória guinando as emoções sociais de um país em erupção estridente. Talvez isto explique por que Nuno Ramos suspeitava sabendo, com mesura estranha aos paulistas.
Hoje suspeitar tornou-se algo alienado, para não dizer vendido. Está tudo escancarado. Vamos a veracidade?
Então vou falar sobre o que sei – e que o Nuno já sabia há dez anos. Sei que soube da existência de Nuno Ramos em maio de 2020, quando vi um dos insuportáveis vídeos de Paula Lavigne expondo o confinamento de Caetano Veloso. Sei que a cafonice sem meninice dos vídeos fazia parte de uma estratégia de marketing intelectual do agrado de Caetano. Ele dizia no vídeo que lia Nuno Ramos.
Era “O baile da Ilha Fiscal”. Caetano já me chamava atenção à época, para além do frenesi de sua divinolândia. Deparei-me ali no texto de Nuno com uma espécie de pós-réquiem. Fui descobrir depois que ele já havia vertido em defunto o Brasil (Moebius) em seu livro de 2019, Verifique se o mesmo. “É provável, em suma, que tenha escrito sobre algo de que me despeço”. Então a gente cantava para tudo ficar Odara, joia rara, dançando enquanto o navio afundava. Sim, cena do “Titanic”, o titânico.
Eu prefiro o “Valhacouto” de Douglas Germano e Aldir Blanc. “Quero danças sobre as ruínas / Dos reinos da escuridão / Riam, riam, o circo começou a lamber / Eu quero beber pelas esquinas, reza, rimas / Mas vou precisar de vocês”. O engraçado é que também o Nuno cantava para tudo ficar Odara, na sua própria festa de aniversário de 60 anos. Quem é que não cantava? A pancada não é pouca. De algum modo, há a saída à Jim Jones e a saída à Caetano Veloso.
E eu estou crente que Jim Jones, Paulo Martins e, por que não, Glauber Rocha, comungam da mesma entidade kamikaze. A singularidade do Brasil de Moebius é que, se Hitler se suicida por covardia, Getúlio Vargas o fez por heroísmo. Ele foi herói. De que, é outra estória. Hoje somos todos kamikazes ao céu, destilando um som que mela o estômago e causa diarreias infinitas.
Sei que Francisco Alambert não estava jogando ideias ao léu quando reivindicou, em seu “Brasil diarreia 2020” o “Brasil diarreia” de Helio Oiticica. Não mais aspiramos. Estamos em um grande labirinto, girando em falso, decidindo se vamos morrer de heroísmo no país em que se morre de Brasil; ou se em nome de uma falta de cuidados terminais, escolheremos pela agônica razão tropicalista (o termo é de Alambert), dançando para tudo ficar Odara quando Odaraebius nem mais existe. Nem nunca existiu.
As recentes agendas intelectuais revisionistas do Brasil Modernoebius, que fazem questão de escancarar suas políticas eugenistas e disciplinadoras comprovam isto. Elas se inserem em um contexto maior, “uma mesma e última privatização – a do infinito”. Os sonhos que não envelhecem são findos no mundo do mesmo.
Eu também tenho medo do mesmo. Sua autoridade violenta e viril diz mais sobre qualquer sensibilidade desvirilizante de Caetano. Chego a sentir saudades do torturador sentimental cantado em prosa e verso por Chico Buarque e Ruy Guerra.
Em dez anos a Patrícia Poeta copiou a Fátima Bernardes e fez poesia sobre racismo reverso no Jardim Botânico, em rede nacional, social, digital, o que for. O Luciano Huck, com este sobrenome que engana, parecendo de super-herói, super-homem, super super, virou pré-candidato a presidente da República.
O príncipe de Higienópolis adorou, falando desde seu principado em ruínas de quem nunca foi rei de fato. Acontece que o homem verde da televisão é meio Datena, meio Silvio Santos; brinca, mas não vai. Covarde. Frouxo. Coisa séria demais. E olha lá; sim, a Portuguesa faliu, e o Galvão Bueno foi aposentado em 2022. Obsoleto demais no “tempo saturado de agoras”, meio folclórico, andava falando mais que o que devia.
E então neste rolo compressor de jogar no lixo tudo que fica velho – e fica velho em um segundo – eu sei muito bem em que o Cacaso pensava quando escreveu em “Jogos florais” (de Grupo Escolar, 1974), o seguinte: “Ficou moderno o Brasil / ficou moderno o milagre: / a água já não vira vinho, / vira direto vinagre”.
É um azedume insuportável e onipresente este em que vivemos. Também Jesus (esse foi herói), ao pedir água na cruz, recebeu vinagre. O autor do milagre raiz recebe o milagre Nutella®. A mesma iguaria pós-moderna que os puristas de hoje em dia se negam a comer pela exploração do óleo de palma no sudeste asiático. Os mesmos que fazem listas de palavras proibidas. Há momentos em que acho que todos se merecem neste 2024. O mesmo merece o mesmo.
Mas então lembro que sei dalgo. É o seguinte: há algo na alga que impregna n’algo. A racionalidade, a abstração do capital, que muda dia e noite no vai e vem dos pinguins do mundo, na sua guinada neoliberal, colocou todo mundo como inimigo de todo mundo. Isto me faz crer que não era mero infortúnio o “Se vira nos 30” do Domingão do Faustão. Agora, também nosso lado cumpre este papel na era dos intelectuais influencers.
Os sujeitos periféricos, da esquerda dita identitária, vão lá e atacam aliados de classe, de bairro, que encontram zelo de comunidade (de pobreza e fé) nas igrejas evangélicas, que por sua vez instrumentalizam a fé e levam ao limite a subjetivação de que o inimigo mora mesmo ao lado. E politizam, e não querem apenas cargos e vagas em processos seletivos com cotas. Querem mais, muito mais.
É um curto-circuito, e é para ser assim mesmo. Não há nada de surpreendente e novo nisso, senão de assustador. Cada um no seu quadrado, seguindo o papel a que lhe foi designado por um Deus que faz feitiço na tribo da mercadoria (a expressão é de Paulo Arantes).
E há nós, marionetes de nós mesmos, que sabemos que existiu passado e então ficamos saudosos. Ah, como foi bom. Esta ressaca de revolução frustrada, utopia tropical, civilização brasileira que vai decolar e salvar o mundo de si próprio. Pobre Brasil, foi comido por aquilo de si mesmo que deveria salvá-lo. Chega de saudade. Vem, vamos embora, gente.
*Vitor Morais, graduando em História na USP.