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Um corte no teatro brasileiro

Clássico de Plínio Marcos está em cartaz no Castelinho

Um fábula sobre poder? Sobre amor? Nossa versão de “L´Enfer sont les autres”? Retrato da degradação humana? “Navalha na carne”, de Plínio Marcos, de 1967, é antes de tudo uma mudança de rumo no teatro brasileiro. Os três personagens, uma prostituta – Neusa Suely(Marta Paret), um gigolô – Vadinho (Rogério Barros) e um homossexual faxineiro – Veludo(Danilo Watanabe), trazem à cena gente que jamais havia sido reunida para mostrar a vida como ela é. Crua, intensa, sem ?rulas, a dramaturgia de Navalha é uma construção acabada das regras do Teatro Clássico – um mesmo ambiente, em tempo real e verossimilhança – sem resvalar o fácil recurso realista.

A trama é um momento da vida dos três encerrados no quarto com o embate do cotidiano. Vado quer dinheiro para sair, Neusa Suely se queixa que a rua está dando pouco e Veludo é chamado como testemunha de um dinheiro que desapareceu. A partir disso, se de?nem os personagens: Veludo é o tertius desestabilizador da ménage a trois.. Vado quer se impor como macho, como rei, pavão, ganhando a força o seu papel. Coitado! Neusa Suely é desvalida, submissa, humilhada e como se estivesse nua ,sem pudor em busca de uma migalha de afeto. A direção de Rubens Camelo permite ao máximo o alto diapasão do texto. Praticamente sem palavrão, muito da gíria da Boca do Lixo, a virulência das palavras de um vocabulário limitado em frases curtas – a repetição de “O que eu te ?z hoje” , “Tenho malandragem para dar e vender” “Manda, Suely, manda” – só somam para a dimensão dramatúrgica. Não existe interrogação ou ponto. É uma sucessão de exclamações, de gritos em um encenação na qual as agressões físicas são o menos de uma relação totalmente perversa e pervertida.

A opção no Castelinho do Flamengo foi utilizar um quarto acima da garagem com as cadeiras de frente para o cenário. No mesmo ambiente, os espectadores voyeurs sentem a ação como um soco no estômago. E dos fortes. A coragem de Marta Paret, ao produzir Navalha, poderia parecer diametralmente oposta aos medos de Neuza Suely. Em uma interpretação que desenvolve as altos e baixos da vida miserável de uma prostituta, Marta/ Neuza não se intimida com a força de Vado em ofendê-la. E muito menos com as tentativas vãs de Veludo de atingi-la em sua feminilidade.

Rogério Barros faz um Vado sem malandragem, sem esperteza. Claro no que quer, sua voz é capaz de percorrer oitavas sem esforço, para impor um fraco que quer parecer forte. Veludo passeia pelos trejeitos, meneia, torce os cabelos que não possui, aparenta doçura, mas é mais um pequeno aproveitador. A vida miserável num quarto sujo, acanhado, gritos, tapas, agressão verbal, nenhum gesto de carinho, de aconchego faz de Navalha na Carne uma obra ímpar, pois como são personagens que pertencem ao fundo do porão da sociedade, parece não estar falando de nós. Mas o horror dos amores desencontrados, da falta de respeito pelo outro, da mentira, do egoísmo não pertencem apenas à prostituta , ao gigolô e ao gay. São igualmente o nosso desespero que Plínio Marcos retratou à perfeição.

JB

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