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Brasil pode estar sufocando,sua galinha dos ovos de ouro.

© Folhapress / Bruno Santos

Brasil viveu um verdadeiro boom de startups a partir de 2010. Apesar da crise política e econômica atual, o setor continua crescendo e bate recordes de investimento. Sputnik Brasil conversou com empreendedores e investidores para entender o fenômeno.

Em 2015, Fernando Martins, filho do proprietário de um dos maiores periódicos sobre concursos públicos do Brasil, Folha Dirigida, constatou que a versão impressa da mídia estava vivendo seus momentos finais. Então ele propôs dividir as operações entre o jornal e o site, e assumiu a direção da versão digital.

Hoje, além de contar com quase 3,5 milhões de internautas fidelizados, o site oferece cursos online e conteúdos pedagógicos exclusivos, produz conteúdo em vídeo e funciona como uma startup.

“Eu toco um spin-off no modelo startup. É uma cultura, é um ecossistema que eu gosto. O que isso significa? Primeiro a gente investe em tecnologia para ganhar escala sem precisar de 500 a 800 seres humanos. O foco está em software. Em segundo lugar, é a missão de tentar resolver um problema real para que a gente tenha valor”, explicou Fernando Martins à Sputnik Brasil.

Além disso, o empreendedor diz ter se encantado com a cultura do setor. Para ele, o modelo propõe algo diferente, uma outra forma de gestão.

“Todo mundo que faz parte dessa empresa, diferente de como era no passado, tem uma participação na empresa, conquista equity e ganha bônus baseado em lucro”, ponderou ele.

Segundo o Sebrae – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, uma startup é definida como uma empresa em fase inicial que tem: proposta inovadora, modelo de negócio escalável, base tecnológica, baixo custo para iniciar as atividades e ideia com potencial de se transformar em negócio.

Fernando Martins faz parte de uma nova geração de empreendedores que precisaram se reinventar para enfrentar a realidade flutuante do mercado.

Startups desembarcam no Brasil para ficar

Em 2012, o país aproveitava os resultados de muitos anos seguidos de crescimento e foi classificado pela Forbes como um dos “países mais empreendedores do mundo”.

O montante de investimentos de capital de risco ainda era relativamente pequeno e somava U$ 143 milhões em toda a América Latina. De todo modo, foi a época do nascimento da grande parte das startups brasileiras mais famosas.

Já em 2016, o Brasil foi considerado o 12º melhor país para empreender, e somente em 2018 a América Latina recebeu U$ 1,97 bilhão de fundos de capital de risco (venture investment), sendo que o Brasil foi responsável por 55,9% desse capital (via Latin America Private Equity and Venture Capital Association – LAVCA).

Segundo especialistas consultados por Sputnik Brasil, em 2019 esse número promete ser ainda maior, pois o ecossistema do setor já está bem desenvolvido. O último grande investimento em 2019 foi na colombiana Rappi, de 2 bilhões de dólares para operações no Brasil, feito pelo SoftBank, que criou um fundo de US$ 5 bilhões só para a América Latina.

​Foi nesse período que surgiram os primeiros unicórnios brasileiros (startups que possuem avaliação de preço de mercado no valor de mais de 1 bilhão de dólares), e o investimento de capital de risco vem aumentando progressivamente ano a ano. É o caso de gigantes como Nubank, PagSeguro, 99, Stone Pagamentos, iFood, Loggi, Gympass, Arco Educação e Creditas.

Esse crescimento pujante acontece apesar da recessão, que se abate desde 2014 sobre a economia brasileira. Sputnik Brasil decidiu investigar mais a fundo esse fenômeno.

A Quarta Revolução Industrial

Segundo StartupBase, base de dados da Associação Brasileira de Startups, o número de empresas do tipo, em 2012, era de 2.519. Em 2017, o número saltou para 5.147. Em 2019, até setembro, 12.722 startups estão atuando no país.

Segundo Fábio Iunis de Paula, general partner da Indicador Capital, investidora focada em modelos B2B (Business to Business – compra e venda de produtos ou serviços entre empresas), o Brasil está vivenciando aspectos relativos ao que chamam de “Quarta Revolução Industrial”.

Há mais de 20 anos no setor de tecnologia, Fábio é engenheiro eletrônico e trabalhou na IBM, na Intel Capital, foi investidor anjo e hoje representa sua empresa no Vale do Silício. Ou seja, acompanhou em primeira mão o desenvolvimento de investimentos de risco nos EUA e no Brasil. Para ele, a tecnologia é fundamental para todos os setores da economia, e a digitalização dos processos “saiu das áreas de IT e passou a ser discutida na estratégia e no conselho das empresas”.

“Esse é um processo que aconteceu nos últimos 10 anos e acelerou muito nos últimos 5, com aparecimento de plataformas e de modelos de negócios altamente escaláveis, totalmente digitalizados. E esse impacto foi em todos os setores da economia. Não só no mundo interprise, como também no mundo consumidor”, acrescentou ele durante uma videoconferência com a Sputnik Brasil.

Ou seja, é um processo de médio e longo prazo, e o processo de investimento funciona de uma forma específica. “Os fundos trabalham em ciclos de 5 a 10 anos. É o que leva para você construir uma empresa. Então isso acaba se desconectando um pouco dos ciclos curtos da economia”, explicou.

​Um outro aspecto importante para entender o crescimento é a constante necessidade de redução de custos das empresas.

“Ou seja, tem um lado da digitalização que te ajuda justamente a atender questões que foram geradas pela crise. Como eu trabalho mais eficiente? Como eu reduzo os custos? Como eu faço as coisas de uma forma mais rápida?”.

Startup é cool, mas falta mão de obra

Entre os fatores citados pelo Iunis de Paula, um se destaca. Trabalhar em uma startup tem demonstrado ser de grande apelo para a geração que está se formando.

“O recém-formado de hoje não ambiciona tanto assim trabalhar em uma grande empresa. Hoje é muito mais cool você trabalhar numa startup, ou ser um empreendedor”, alegou ele. Além de estar na moda, o trabalho em ambiente dinâmico de empresas de tecnologia que estão começando faz uma excelente escola.

“Eu diria que hoje você aprende mais rápido num ambiente empreendedor, num ambiente dinâmico, do que potencialmente numa grande empresa”, afirmou o executivo, acrescentando que, além disso, o país tem 13 milhões de pessoas no desemprego e que esses “são fatores que acabam gerando uma demanda de trabalho e alimentam o ecossistema de startups”.

Apesar dessa nova leva de startups, nem tudo são flores para os empreendedores. Bianca Amaral, diretora da startup TempoTem, voltada para prestação de serviços diretos ao consumidor, conversou com Sputnik Brasil e relatou as dificuldades enfrentadas pelas empresas na busca por especialistas.

“A falta de mão de obra qualificada no país é um problema muito sério para esse setor. Para serem viáveis e rentáveis as startups precisam ter um ritmo de crescimento muito acelerado. E muitas vezes a dificuldade em contratação se torna uma grande barreira. Apesar da quantidade de postos de trabalho que estão sendo abertos nesta área, a educação não está sendo suficiente para gerar pessoas preparadas. Isso tem sido um desafio muito grande e vem provocando as empresas do setor a pensar em outros tipos de remuneração, outros tipos de incentivo e alternativas para atrair talentos”.

Isso tudo acontece no meio de um cenário, no qual muitos talentos estão tentados a sair do país, inclusive em função da crise.

Soluções privadas e falta de políticas públicas

Segundo a Sebrae, 140 mil vagas por ano não estão sendo preenchidas na área de telecomunicação e de tecnologia.

Le Wagon Brasil foi aberta em 2012 e é uma escola de programação de onde os alunos já saem com projetos de negócios, aplicativos e programas prontos para se lançar no mercado. O projeto monitora o que está acontecendo no setor e orienta seus alunos a escolher entre as muitas opções. Já ajudou a lançar cerca de 1.400 aplicativos e formou 5.300 alunos em todo o mundo, que levantaram aproximadamente 60 milhões de euros para seus projetos.

O CEO da Le Wagon, Pedro Meyer, concedeu entrevista à Sputnik Brasil na Vila Aymoré, um grupo de casas de época reformado e modernizado no bairro da Glória, Centro do Rio de Janeiro. O conjunto abriga startups, um prédio de coworking, uma cafeteria e muitos rostos jovens passam de bicicleta.

Segundo o CEO da Le Wagon, o seu papel é mostrar o “caminho das pedras”, porque não é difícil conseguir investimento em qualquer área com um produto que funcione.

O seu público é jovem, entre 20 e 40 anos e de formação variada – pessoas que passaram para concurso público mas não foram chamadas, advogados com mais de 10 anos de carreira, médicos, ou recém-graduados em computação.

“Uma das alunas tinha feito Ciências da Computação [em universidade] e viu que ali ela ia ter tudo que se faz com computador, menos desenvolvimento de produto digital […] O jeito que a gente ensina programação é totalmente voltado para o desenvolvimento de produto digital”, explica Meyer.

Pedro sente que a demanda por mão de obra qualificada está em alta.

“Ligam toda hora. Empresas ligando. Tem demanda dos empregadores, mas não tem gente suficiente. Então cada um acaba dando seu jeito. Treina sozinho. Tem uns que estão fazendo formação igual à nossa, outros contratam estagiários”.

Infelizmente, ainda não há política do governo para esse setor, e mesmo as políticas dos governos anteriores eram incipientes. O BNDES Garage ainda não sabe se vai funcionar no ano que vem, e os cortes nas universidades públicas deixam o futuro de diversas incubadoras de negócios em estado de incerteza.

Enquanto isso, países como a França criam programas como o FrenchTec Visa, que facilita visto de permanência para fundadores de startups, investidores ou empregados qualificados e geram ambientes para as empresas funcionarem, como o campus de startups Station F, no centro de Paris.

“Acho que falta muita política pública. O governo ainda não se tocou no potencial que isso tem. Em todas as áreas. Hoje em dia, por exemplo, investir venture capital gringo no país é muito difícil. O mínimo que tinha que fazer é isso. Facilitar que esse investimento venha. Depois as condições da galera de desenvolver as startups aqui têm que ser boas”, pondera o interlocutor da Sputnik.

“Falta o governo se tocar que isso é uma galinha dos ovos de ouro. Enquanto não se tocar, vai continuar perdendo startup com potencial grande”, conclui Meyer.

Sucesso x fracasso

O presidente da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), Amure Pinho, concorda com essa avaliação. “Temos muitas iniciativas privadas, mas públicas, não. Ainda não tem uma grade curricular nas universidades proposta pelo MEC, não tem um programa de incentivo e formação de talentos. Ainda é muito dependente de uma educação brasileira que forma do mesmo jeito que fazia há 20 anos”, disse ele à Sputnik Brasil.

Para Pinho, o trabalho das aceleradoras e de bootcamps como Le Wagon ou como Gama Academy é fundamental.

Foi em busca desse aprimoramento e conhecimento específico que Fernando Martins, dono da Folha Dirigida Online, procurou o curso de desenvolvimento na Le Wagon. Apesar de já possuir experiência em administração, Martins disse ter se transformado após se aprofundar no ecossistema de startups.

“A minha intenção aqui não é necessariamente ser um desenvolvedor… Eu entrei para entender o processo e foi transformador […] para você tocar uma startup, para você investir numa startup, para você negociar importação de uma startup, quanto mais você souber do meio é melhor”.

Perigo da exuberância irracional

Outro fato importante ao se falar das startups é que o setor realmente é de alto risco. Segundo pesquisa do Sebrae, de 2015, 49% de empreendedores não conseguem tirar suas ideias do papel.

Segundo Fábio Iunis de Paula, general partner da Indicator Capital, “para todo caso de sucesso, provavelmente você tem 10 casos de insucesso. A estatística é bem cruel. Por conta disso, é mais fácil falar de casos de sucesso, que são mais específicos”.

O investidor alerta para o perigo da “exuberância irracional”. O sucesso dos unicórnios é tão vertiginoso que as pessoas esquecem o fato de que para cada um desses casos de sucesso acontecer muitos outros falharam. Na verdade, o caminho de uma startup é repleto de percalços.

“Tudo pode dar errado. Eu tenho histórias superinteressantes na carreira de investidor, de briga de sócios, de separação de casamento de pessoas que eram sócias, esposa que roubou o marido, marido que roubou a esposa, de empresa que acaba sendo chantageada por agiotas (long sharks) que emprestaram dinheiro para a empresa em algum momento quando esta precisou”.

Sacrificando o futuro

A crise econômica está aí. Mas o setor de startups continua atraindo investimento nacional e internacional e gerando novos unicórnios brasileiros. Se as estatísticas seguirem a tendência, o crescimento da área em 2019 será exponencial. No entanto, o governo precisa adotar políticas voltadas para o setor, pois mesmo descolado da crise, a mão de obra especializada já é um problema grave. Além disso, é necessário criar um ambiente para as inovações se desenvolverem.

“A crise em si, de fato, estimula pessoas, indivíduos e grupos, a assumir riscos e empreender. Esse é um fato comprovado em vários países e em vários momentos”, disse à Sputnik Brasil o professor Maurício Guedes, da Diretoria de Tecnologia da Faperj e ex-diretor do Parque Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“Mas também existe uma contradição no país, que é um desmonte da área de ciência e tecnologia. Uma redução drástica no orçamento no Ministério da Ciência e da Tecnologia que poderá levar a perdas muito graves no futuro […] Vários países reagiram a crises econômicas aumentando investimento em ciência e tecnologia. E nós estamos reduzindo. Então estamos sacrificando o nosso futuro”.

Sputnik

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