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A estultice de Bolsonaro

Um espectro ronda a oposição a Bolsonaro: o mito da sua competência. Entre seus seguidores, acredita-se piamente que aquele ser tosco que ocupa a presidência da República, e que faz questão de se manifestar impulsiva e agressivamente, é um governante competente.

Mas também amplos setores oposicionistas creem nisso. É uma competência para o mal, destrutiva – dizem, esclarecendo e lamentando –, mas para isto ele estaria sendo muito competente.

Penso o oposto.

Com Florestan Fernandes aprendemos que as palavras não são nem neutras, nem ingênuas.

“Não existem simples palavras”. Ninguém as utiliza inocentemente, pois seu uso “traduz relações de poder e relações de dominação. Se um golpe de Estado é descrito como ‘revolução’, isso não acontece por acaso [referindo-se ao golpe de 1964, que, opondo-se à revolução democrática em curso, autointitulou-se ‘revolução’] (…) Fica mais difícil para o dominado entender o que está acontecendo e mais fácil defender os abusos e as violações cometidas pelos donos do poder”.

Na contracorrente do senso comum sobre a suposta competência de Bolsonaro e seu governo, tenho afirmado sua incompetência. É mito que seja competente.

Em 11/3/2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu que a covid-19 era uma pandemia. Cinco dias depois, em um artigo no site A Terra é Redonda afirmei que o pior modo de lidar com a pandemia “é ficar paralisado, achando coisas” e denunciei o ‘terraplanismo epidemiológico’ que orientava as decisões de Bolsonaro à frente da presidência da República.

Que se caracterizava por não planejar, organizar e coordenar as ações federais requeridas para enfrentar o problema, pois “até meados de março o país não conhecia qualquer plano para assegurar assistência aos milhares de doentes que, sabe-se, buscarão assistência em serviços públicos e privados”.

Um ano depois, os governadores se deram conta disso e anunciaram sua preocupação com a falta de coordenação das ações em âmbito nacional, pelo governo federal. Antes tarde do que nunca.

Um ano depois, o desempenho do governo Bolsonaro confirma a denúncia de que a sua política para enfrentar a pandemia era a negação do problema e a imobilização da gestão federal.

A política sempre foi, portanto, não ter propriamente um plano de enfrentamento.

Um conjunto de 3.049 normas federais produzidas em 2020, composto por leis, decretos, medidas provisórias, resoluções, portarias e instruções normativas, do qual pode-se depreender um plano, foi analisado em profundidade por pesquisadores do CEPEDISA, o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário, da Universidade de São Paulo (USP) e da Conectas Direitos Humanos, e divulgado pelo El País Brasil.

A conclusão é de que o governo brasileiro, sob a liderança da presidência da República, pôs em marcha uma estratégia institucional cujas ações, sistemáticas, expressam uma intencionalidade de propagação do vírus.

As decisões do governo federal, relativas à pandemia, comporiam a “linha de tempo mais macabra da história da saúde pública do Brasil”.

Para os pesquisadores, “os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.

Não há dúvida, em setores oposicionistas, de que Bolsonaro põe em marcha uma política deliberada de não enfrentar a pandemia. Isto é evidente desde que ele se recusou, em fevereiro de 2020, a repatriar 34 brasileiros que se encontravam em Wuhan e que pediram apoio para voltar ao Brasil.

Bolsonaro ignorou-os o quanto pode, mudando sua posição apenas quando não foi mais possível resistir às pressões da imprensa e de redes sociais, que divulgaram vídeos contendo apelos dramáticos de quem queria voltar para casa. Em 5 de fevereiro dois aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) foram à China buscá-los.

A missão de resgate foi, a contragosto de Bolsonaro, provavelmente a única operação bem-sucedida do governo federal até hoje, relacionada com a pandemia da covid-19(4). Mas ela sinalizou, inequivocamente, o rumo que tomariam Bolsonaro e seu governo dali para frente. Muita gente compreendeu logo a gravidade do que viria.

A hipótese de que haveria um “plano” para propagar o SARS-Cov-2, e que Bolsonaro e seu governo estariam sendo competentes em sua execução, encontra ressonância em muitos setores oposicionistas, que acreditam que o presidente está sendo “muito competente naquilo que quer: matar gente, criar o caos e transferir a culpa para governadores e prefeitos”.

Conforme milhares de postagens em redes sociais, admite-se que o presidente “só se preocupa com eleitores dele” e “só pensa na reeleição”.

Mas essa hipótese não é incompatível com o reconhecimento da incompetência de Bolsonaro e de sua notória negligência, descaso, negacionismo e incúria.

Não há qualquer dúvida, desde o episódio dos aviões que foram à China buscar brasileiros, de que a política bolsonarista para lidar com a epidemia é nada fazer.

Mas esse laissez-faire sanitário não equivale a ter um plano e executá-lo de modo competente. A situação epidemiológica em que nos encontramos decorre efetivamente da política desenvolvida pelo governo federal para lidar com a pandemia, assentada na negação do problema e na inação.

Mas é inerente a essa política não ter plano algum, donde não faz sentido admitir a existência de um plano, com definição de ações e fixação de objetivos a serem atingidos – o que caracteriza basicamente qualquer plano.

Escrevo no dia em que, ao se registrar o primeiro ano desde o anúncio da pandemia de covid-19 pela OMS, o Brasil assume seu epicentro e registra 2.349 óbitos nas últimas 24 horas.

O país é visto mundialmente como um lugar em que a doença vem se propagando sem ser contida de algum modo. Fala-se em “laboratório a céu aberto” para caracterizar o cenário epidemiológico, que decorre das características da covid-19, mas que, no Brasil, foi muito agravada pelo negacionismo e a opção de não agir do governo federal.

Aceitar a competência de Bolsonaro na execução do que seria o seu plano é contraditório com a ‘ideologia da competênci que, no neoliberalismo, marca as ações dos especialistas que são designados para mandar.

O discurso competente colide com o fato de que neste momento o Brasil é o epicentro da pandemia, com cerca de 11,3 milhões de casos e aproximadamente 273 mil óbitos.

Não é possível falar em competência, tendo em mãos esses números e em mente as tantas vidas perdidas em decorrência das ações e omissões que partiram do Palácio do Planalto, seja pelo descaso, seja pelos péssimos exemplos dados pelo chefe de Estado brasileiro.

A suposta competência bolsonarista vem sendo questionada por muita gente, dentre as quais o ex-ministro Nelson Barbosa, para quem o presidente da República cria “inimigos imaginários para camuflar incompetência”.

Os números indicam mesmo incompetência. Em grau máximo.

Mas afirmar isto não faz justiça a Bolsonaro, pois desloca para outro plano o referencial que deve ser adotado para analisar sua suposta competência. Se ele passou todo o tempo afirmando que nada faria, como avaliar sua competência tendo como referencial o que ele deveria ter feito?

Não faria sentido. Bolsonaro deve ter, portanto, sua competência analisada à luz do referencial da “ideologia da competência”, segundo a qual ele e seu governo deveriam produzir resultados administrativos capazes de obter o melhor posicionamento possível do Brasil no ranqueamento dos países, como vencedor nesse ambiente.

Este é o gold standard para uma avaliação à luz do referencial neoliberal.

Mas não é isso o que se constata. Bolsonaro conduziu o Brasil à pior posição nessa classificação global. Isto é incompetência; não competência. Não resolve argumentar com “é isso o que ele sempre quis”, pois, reitero, este argumento é contraditório com a “ideologia da competência”.

Ele “não quis” isso, pois admitir isto seria aceitar que a situação em que o país se encontra teria se constituído, em algum momento, em um objetivo de seu governo, explícito ou implícito.

Que haveria, afinal, de fato, um plano. Mas objetivo explícito, nunca foi. E não há sequer indícios de que tenha sido um objetivo implícito.

Negacionismo, descaso, omissão e incúria resultaram da estultice e do despreparo administrativo do chefe de Estado e da falta de qualificação de vários de seus assessores para o exercício das funções gerenciais a que foram designados.

Não há indícios de que haveria um “plano” – ainda que “mal-intencionado” – e que ele teria sido “muito bem executado”, com o objetivo de levar o Brasil à posição em que se encontra.

Negacionismo, descaso, omissão e incúria podem ser uma política implícita9, mas não configuram propriamente um “plano”.

A política bolsonarista para lidar com a pandemia foi equivocada em vários aspectos, daí não ser possível falar em competência.

Destaco, apenas para exemplificar, algumas dessas falhas que, a meu juízo, confirmam sua incompetência administrativa e revelam o erro que é sua política de enfrentamento.

O erro mais grave, de consequências macabras e dramáticas para milhares de famílias, foi a opção pela “estratégia Osmar Terra”, segundo a qual a covid-19 não duraria no Brasil mais do que seis meses.

Bolsonaro apostou – e perdeu – ao supor, com seu consultor médico preferido, que não haveria uma segunda onda e que a primeira duraria pouco, sendo debelada em alguns meses.

A proteção de todos viria com a imunidade coletiva (de rebanho, para quem preferir).

Outro erro muito importante foi a subestimação da capacidade da ciência e da tecnologia em produzir, em tempo recorde, várias vacinas eficazes contra o SARS-Cov-2.

Bolsonaro apostou – e perdeu – ao supor que, quando as vacinas chegassem, a pandemia teria arrefecido e elas não fariam falta.

O elenco de erros de Bolsonaro foi coroado com sua notável incompetência ao negociar contratos favoráveis com produtores internacionais de vacinas, alguns dos quais parceiros do governo brasileiro havia muitos anos.

Na condição de presidente da República ele hostilizou-os como “vendedores” para um “grande comprador” que é o Brasil. Zombeteiro, pretendeu “negociar preços”, supondo erroneamente estar em situação vantajosa na mesa de negociação.

Com isso, apenas expôs aos negociadores das empresas seu absoluto desconhecimento sobre o assunto, ao pretender colocar-se na posição de negociador que “dá as cartas”.

Incompetência, aliás, que decerto não se restringe à pessoa do presidente da República, mas se estende aos seus assessores nessa área, como o general-ministro e as três dezenas de militares que ocuparam o Ministério da Saúde.

Foi um lamentável espetáculo de incompetência generalizada, culminando uma série de erros primários.

O “plano nacional de vacinação” anti-covid-19 do governo Bolsonaro já integra, tristemente, o anedotário sanitário nacional. Nunca houve tanto “bater cabeça” na cúpula do ministério da Saúde e do governo federal.

Para perplexidade até de escolares, o chanceler brasileiro Ernesto Araújo cometeu o desatino de afirmar, em reunião do Conselho das Américas, que “o sistema de saúde está suportando bem”, em momento dramático em que milhares de mulheres e homens morriam à espera de leitos de UTI na maioria dos Estados11.

Decerto que não se pode falar em competência num cenário como esse.

Nesse contexto, resulta inútil argumentar que não se está a falar de competência administrativa, mas de “competência política” para “matar mesmo, pois o governo é genocida”.

Sim, o governo é genocida. Mas por sua notável incompetência e não o contrário.

Competência e incompetência são, ademais, palavras impregnadas de um sentido ético, vêm carregadas de valor. Haveria competência em matar, ou deixar morrer, podendo evitar as mortes?

Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.

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