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Ailton Krenak: ‘Acabou o céu azul, a gente conseguiu cobrir o país com fuligem’

Ailton Krenak

Para o pensador e intelectual Ailton Krenak, o cenário “apocalíptico” que o país enfrenta nas últimas semanas por conta da nuvem de fumaça que cobre a maior parte do país é resultado de uma cultura propagada durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL).

Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde maio, o escritor afirma que a desestruturação do regramento ambiental somado ao discurso propagado pelo ex-presidente gerou uma “mentalidade que você pode sentar fogo, que você pode roubar a mata, que você pode acabar com Pantanal, isso tudo vai virar numa cultura deletéria, uma cultura pobre e as pessoas vão entrando nessa, entendeu?”, afirma em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (11).

“Não tem céu azul mais, acabou o céu azul, né? A gente conseguiu cobrir o país inteiro com fuligem, uma fumaça que está jogando um tipo de chuva ácida em cima da Avenida Paulista”.

No próximo sábado (14), Krenak participa da Bienal do Livro de São Paulo, quando vai lançar seu mais recente livro, Kuján e os meninos sabidos, em parceria com a ilustradora Rita Carelli. A obra dedicada ao público infantil conta sobre o ” surpreendente reencontro entre o criador e seus filhos humanos”.

A história já é conhecida pelo público por ter sido gravada por Gilberto Gil quando participou da música Tudo é Pra Ontem, de Emicida.

“Eu contei essa história do Tamanduá pro Emicida, e ele guardou a história, gostou e depois convidou Gilberto Gil para fazer aquela fala… Aquela voz do Gil é inconfundível, né?”, lembra Krenak.

Perguntado se a gestão do governo Lula está sendo capaz de reverter a cultura herdada por Bolsonaro, Krenak acredita que o país segue dividido politicamente, o que impede uma alteração no cenário.

“A realidade brasileira está ainda dividida, tem muita gente que não tem o menor respeito pela transição que a gente fez entre uma ameaça de uma ditadura e o esforço de redemocratizar a vida brasileira. E a gente está longe de uma pacificação, não dá pra avaliar nada.”

Na entrevista, o pensador fala sobre o encontro com Lia de Itamaracá, no último 7 de setembro, e também comenta sobre a banalização do termo “futuro ancestral”.

Confira a entrevista na íntegra

No 7 de setembro o senhor esteve no evento Mátria Amada e participou ao lado de Lia de Itamaracá, como foi esse encontro?

Para mim estar com a Lia de Itamaracá já era o meu presente do dia e ainda mais com a possibilidade de termos o público que nós tivemos. Um público, uma audiência impressionante lá em Sorocaba (SP).

Foi uma experiência totalmente poética e fora do esquema, digamos, institucional.

Havia outros eventos lá em Sorocaba na mesma data, a gente concorria com o público, mas teve muita gente. Foi uma experiência muito boa fazer o Mátria Amada.

E repercutiu muito, ainda tem muita gente escutando a Lia, cantando a ciranda dela.

Foi o seu primeiro encontro com a Lia de Itamaracá?

Foi o meu primeiro encontro pessoal com a Lia, essa entidade, ela é uma entidade. Imagina, ela tá com mais de 80 anos e a ciranda é quase que a própria pessoa.

E ela cantou uma canção que tem uma versão em português e outra em castelhano, que é aquela que a Mercedes Sousa canta Duerme negrito.

Ela [Lia de Itamaracá] canta a versão brasileira,  que é “Dorme pretinha” e ela fala sobre uma mãe que é uma pescadora.

Mas, na hora a Lia mudou a última estrofe para dizer ‘dorme indinho”, então o pessoal riu demais da brincadeira que ela fez comigo no palco e eu tive o privilégio de dançar com ela.

O senhor também esteve recentemente em Minas no Festival Literário Internacional de Paracatu. Lá você falou um pouquinho sobre a importância da literatura, que pode nos ajudar a propor outras formas de viver na terra.

O senhor sente que desde que o senhor assumiu a Academia Brasileira de Letras as pessoas começaram a ter um olhar para o senhor, não apenas como um filósofo, intelectual indígena, mas também como um escritor?

Eu não imaginava que a entrada na Academia Brasileira de Letras fosse provocar essa espécie de revelação para um público que já me via falando por aí.

Mas eu acho que eles não relacionavam isso muito com literatura, não. Eu acho que a homenagem que a Festa Literária de Paracatu fez ao escritor, ao autor Ailton Krenak, ressaltou a importância dessa literatura que a gente tem feito nos últimos… dez anos, sei lá, por ai… mas como se a gente antes não escrevesse nem publicasse nada, né.

Isso tem a ver com esse entendimento de que no mundo indígena a oralidade é uma forma de transmitir conhecimento? Existe preconceito nisso?

A literatura indígena é muito recente no Brasil, né? Na América Latina e no Norte da América já tem gente que escreve desde a década de 1960, 1970.

Aqui no Brasil é um evento recente. [Ocorre há] talvez 20, 30 anos. Eliane Potiguara e Daniel Mundurku são os autores que publicaram com mais frequência na década de 1990.

Então vamos imaginar aí uns 25 anos de literatura. É muito pouco tempo, os autores indígenas estão todos vivos, quer dizer, no passado não teve autores, falando dessa literatura escrita no formato de livro.

Prosperou uma ideia de que eram contos, eram fábulas, mas que não eram não era uma literatura, que ninguém escrevia romance, ninguém escrevia crônicas, ensaios, novela.

E agora já tem essa compreensão de que todas essas formas de escrita são possíveis e elas são feitos em qualquer contexto por autores indígenas, na Amazônia, no Nordeste, no Sul…  isso vai se expandindo, né?

Ainda tem muito tempo pela frente. Aliás, o Millôr Fernandes falava que o Brasil tem um passado enorme pela frente.

Na Bienal do Livro de SP você vai lançar seu primeiro livro infantil, Kuján e os meninos sabidos. Essa é uma história que já foi apresentada em um trabalho de Emicida com Gilberto Gil, certo?

Eu contei essa história do Tamanduá pro Emicida, e ele guardou a história, gostou e depois convidou Gilberto Gil para fazer aquela fala… Aquela voz do Gil é inconfundível, né?

Na verdade eu já tinha preparado esse texto para um dossiê da Academia Mineira de Letras, um dossiê sobre poesia e literatura indígena em Minas Gerais, que se deu um ano antes de eu ir lá pra ABL.

Neste sábado o senhor vai estar na Bienal do Livro de São Paulo com o tema “O que é Futuro Ancestral? Ainda é possível chegar lá?” Esse termo “futuro ancestral” está cada vez mais popularizado, o senhor sente isso?

É, eu fico impressionado com o vulto da coisa toda. Quando o Alok que fez o álbum dele chamado Futuro Ancestral, foi lançar em Nova Iorque, gravou na Amazônia… e ganhou toda essa repercussão, eu falei: “caramba, eu achei que era o único cara que tava observando essa narrativa sobre a ideia de um futuro perspectivo”…

Mas o enunciado pegou, todo mundo agora quer de alguma maneira relacionar isso com a ideia de ancestralidade.

Inclusive outros grupos étnicos que não são indígenas. Você começa a observar o pessoal envocando essa ancestralidade como uma herança comum. Ela não tá vinculada a nenhuma identidade específica.

Como dizia a minha avó: ninguém nasceu do oco do pau.

Frente a tudo isso que a gente tá vivendo em relação ao desastre ambiental,  te parece que é possível pensar nesse futuro ancestral?

Não tem céu azul mais, acabou o céu azul, né? A gente conseguiu cobrir o país inteiro com fuligem, uma fumaça que está jogando um tipo de chuva ácida em cima da Avenida Paulista.

Eu te falei que eu passei por Sorocaba, os três dias que eu fiquei em Sorocaba eu não vi o céu, e quando o sol vai se pondo, você vê um fogo no céu, parece que nós estamos assistindo uma espécie de apocalipse.

Uma baixaria a gente ter chegado a esse termo. O clima global está quente, mas a gente não precisava tacar fogo na floresta do jeito que estão fazendo, né?

Então não é possível chegar no futuro ancestral?

O próprio anunciado de chegar lá é um contrassenso. O futuro ancestral não aponta em nenhuma direção como na ideia de futuro que historicamente foi compreendido, a ideia cartesiana de futuro.

O futuro ancestral não é uma prospecção no espaço, no tempo. Futura ancestral é espiralado, como diz Conceição Evaristo, ou como dizem outras narrativas de povos que não foram totalmente colonizados.

A ideia de futuro ancestral é sobretudo contracolonial, como dizia Nego Bispo.

É outra epistemologia, uma outra narrativa e às vezes me incomoda como que as pessoas se apropriam disso de uma maneira quase que sem entender o que estão falando.

Chegar lá, no futuro ancestral, tem a ver com aquela frase que eu te falei do Millôr Fernandes: A história do nosso país tem um passado imenso pela frente.

A gente tem que conhecer o nosso passado. A ancestralidade e não é uma coisa que a gente vai buscar no futuro, no futuro prospectivo. É alguma coisa que nós temos de ser capazes de resgatar de tudo que nós temos de conhecimento, saberes, tecnologia, compreensão da vida pra gente ser capaz de dar conta de habitar a terra que a gente já falou, ela está esquentando, ela não vai oferecer as mesmas condições climáticas para os nossos filhos.

Imaginar o futuro como um lugar para onde nós estamos indo prospectivamente é um equívoco, a gente vai continuar comendo a terra se a gente achar que nós estamos indo para algum lugar.

A gente tem que pensar em decrescer, em decrescimento. A gente tem que pensar em se envolver, envolver com a biosfera do planeta Terra, e não desenvolver. A ideia de futuro prospectivo, ela vem da ideia de desenvolvimento. É uma máquina em movimento. Nós não somos máquinas.

Esse fogo se alastrando pelo país com muitos indícios de ser criminoso e ordenado por grupos te parece um fenômeno novo no Brasil ou ele sempre existiu e a gente que não percebia como estava tomando essas proporções?

Não, ele nem sempre existiu. Nós sempre fomos recebidos com um país de muitas florestas, com a Mata Atlântica, com o Cerrado, com a floresta amazônica…

Agora nós estamos com vários biomas sendo depredados, sendo destruído. E a gente pode agradecer isso a um sujeito que tocou o Ministério do Meio Ambiente e que dizia que era pra abrir a porteira.

É impossível dissociar o que está acontecendo nesse momento, do que foi propagado, impulsionado nesses últimos quatro anos de governo Bolsonaro?

Claro, porque quando você propõe uma coisa, isso não acontece na hora. Isso fica pairando, se fica reverberando, as pessoas fazem boca a boca, isso vira uma espécie de cultural local. Essa mentalidade que você pode sentar fogo, que você pode roubar a mata, que você pode acabar com Pantanal, isso tudo vai virar numa cultura deletéria, uma cultura pobre e as pessoas vão entrando nessa, entendeu?

Além de desestruturar todo o serviço de vigilância e controle, né? O ICMBio foi praticamente desmontado, O Ibama, as agências de controle, todo mundo ficou desmantelado, criou um vácuo. Agora esse fogo está se espalhando no vácuo criado por essa cultura predatória

E o senhor acredita que essa gestão Lula com Marina Silva, Sônia Guajajara e outros expoentes da luta ambiental tem conseguido combater essa cultura a qual o senhor estava se refere ou ainda é pouco para avaliar?

Eu prefiro pensar em outros termos. Eu prefiro pensar que a realidade brasileira está ainda dividida, tem muita gente que não tem o menor respeito pela transição que a gente fez entre uma ameaça de uma ditadura e o esforço de redemocratizar a vida brasileira.

E a gente está longe de uma pacificação, não dá pra avaliar nada.

Lucas Weber

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