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Guerra de civilizações, guerra de religião

ISLÃ

“Tanto o Irã como a Arábia Saudita e a Turquia, têm se unido a países ocidentais interessados nas riquezas da região e não hesitam em combater uns aos outros em teatros como a Síria, Líbano, Líbia ou Iêmen”, relata Milton Blay

Via de regra, com exceção de pessoas geniais, como Orson Welles, que virou capa da revista Visão, uma entrevista vale por uma ou duas declarações. O resto são banalidades.

Foi o caso da exclusiva que fiz com o aiatolá Khomeini, dias antes dele embarcar para Teerã como líder inconteste da maior revolução da segunda metade do século 20.

Após quinze minutos de frases feitas recheadas de citações do Alcorão, desqualificando o xá e seu regime corrupto, o velho de barbas brancas, olhos negros profundos, frieza siberiana, sentiu-se à vontade para falar. Sei lá eu por quê. Após um silêncio constrangedor, olhou nos meus olhos e em um tom pausado e solene declarou:

“Nós não estamos apenas transformando o Irã, não estamos só fundando uma República Islâmica, estamos mudando o mundo. Conosco o islã irá se tornar a religião global. A Revolução Islâmica está destinada a ter um “caráter universal”, a se alastrar para muito além das fronteiras iranianas, para os países muçulmanos obviamente, mas também para o resto do mundo.

A existência de um “califado planetário” está prevista no Alcorão. Caberá a nós construí-lo, em nome do profeta, “por todos os meios”.

Alahu Akbar ! Alá é grande.

Quatro expressões – revolução islâmica, caráter universal, califado planetário e por todos os meios – me deram calafrios, muito embora na época eu fosse incapaz de compreender a dimensão do que acabara de ser dito. Não podia alcançar, nem intuir, a importância daquelas palavras ameaçadoras.

Estava longe de imaginar que naquele instante, naquele vilarejo de Neauphle-le-Château, a 30 quilômetros de Paris, debaixo de uma tenda desconfortável plantada em direção da Meca, meu gravadorzinho de fita cassete estivesse registrando o que viria a ser uma estratégia geopolítica expansionista e sangrenta, que entraria no século 21 e  germinaria a jihad, a guerra santa islâmica.

Hoje, passados 41 anos, olho para trás e compreendo que aquele momento marcou uma transformação profunda e duradoura; mudou o mundo muçulmano e deu início a uma nova cruzada, em que o nome do Jesus da Idade Média foi substituído pelo de Maomé.

O islã, com todas as suas vertentes ideológicas, se lançou num projeto de poder. Dentro e fora do espaço muçulmano, como anunciara o aiatolá. No plano “interno”, a cisão entre as diferentes correntes – xiitas e sunitas – transformou-se em guerra aberta, liderada pelas potências regionais, Arábia Saudita e Irã, com a inclusão recente da Turquia.

O objetivo é claro: criar espaços de influência em torno do Mediterrâneo.

O terrorismo faz parte dessa estratégia geopolítica. Teerã e Riad ontem, Ancara hoje, foram – e são – os grandes financiadores dos atentados que ensanguentam o mundo.

Num determinado momento, os palestinos foram usados  como justificativa para a violência. Depois, foram abandonados, jogados no lixão do esquecimento. Hoje, os palestinos são ignorados e até desprezados pelos países árabes.

Tanto o Irã como a Arábia Saudita e a Turquia, têm se unido a países ocidentais interessados nas riquezas da região e não hesitam em combater uns aos outros em teatros como a Síria, Líbano, Líbia ou Iêmen.

Durante anos, os conflitos no Oriente Médio giraram em torno de um fator comum: a rivalidade entre Irã e Arábia Saudita. Esse antagonismo inflamou a violência em áreas já devastadas pela guerra e acabou por criar novos campos de batalha, onde anteriormente existia uma relativa paz.

São estratégias de poder hostis que se digladiam. Neste contexto, o combate a Israel, que outrora serviu de pretexto para alicerçar a unidade árabe,  tornou-se uma questão subalterna, como provam os recentes acordos de retomada das relações diplomáticas entre Tel Avive, Cartum, Abu Dhabi e Manama, e o desinteresse pelo conflito israelo-palestino.

A própria Arábia Saudita, através de seu príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, já reconheceu oficiosamente o direito à existência de Israel em paz e segurança.

Só não o fez abertamente porque, como sede dos principais locais sagrados do Islã, isso simbolizaria a normalização das relações de Israel com todo o mundo muçulmano. E tanto o xiismo como parte do sunismo ainda não estão prontos a dar o passo.

Por outro lado, na briga entre as duas vertentes do Islã, o Irã se coloca como o grande defensor dos xiitas na luta pela hegemonia muçulmana.

Não nega esforços nesta direção, seja atuando diretamente na guerra síria, seja  armando militar e ideologicamente movimentos terroristas como o Hamas e o Hezbollah.

A Turquia entrou na luta pela conquista regional mais recentemente, a partir do momento em que houve uma tentativa de golpe contra Recep Erdogan (real ou imaginária ?) e que o líder turco fez uma verdadeira purga nas forças armadas, nos tribunais, na polícia  e na sociedade civil em geral, prendendo meio milhão de pessoas e acabando com toda contestação.

Conquistou assim a fidelidade do exército e instaurou uma ditadura político-islâmica, lançando-se na busca de seu grande sonho, a refundação do império otomano. Além da influência no Oriente Médio, voltou-se para o Mediterrâneo, criando zonas de conflito com a União Europeia e o norte da África.

Para tanto, não hesitou em traçar um estranho diálogo com Vladimir Putin, ora amigo ora adversário,  e desafiar a Aliança Atlântica, da qual a Turquia faz parte. De quase membro, passou a espicaçar a União Europeia.

Erdogan pôs um ponto final no país secular de Kemal Atatürk, inventor da Turquia moderna, para tornar-se um verdadeiro sultão.

Nos três casos, a religião é colocada a serviço da política, da geopolítica e do devaneio de seus líderes.

No Irã, a principal autoridade é o chefe dos Guardiães da Revolução, no caso da Arábia Saudita é o príncipe herdeiro, no da Turquia, o presidente-sultão-ditador.  Não há espaço para a separação entre a Igreja e o Estado.

O ocidente e até a China de Xi Jinping são peças nesse xadrez geopolítico, bem como outros grandes países muçulmanos, como o Paquistão. Os Estados Unidos são ao mesmo tempo o Grande Irmão de Riad e o Satanás de Teerã, a Europa (e a França em particular) o infiel dentre os infiéis, a China um possível futuro amigo, ou ao menos aliado.

Se de um lado o mundo muçulmano nem sequer dialoga entre si, de outro os instrumentos para exportar seus projetos de poder são cada dia mais limitados. O fracasso da Primavera Árabe jogou a Irmandade Muçulmana no ostracismo e cada país caminhou numa direção.

Os grandes movimentos que alimentavam a violência expansionista – Al Qaeda, Daesh, Al Qaeda do Magreb Islâmico – foram derrotados militarmente e tentam dificilmente se reconstruir para existir através do terror.

Diante desse quadro, uma parcela dos muçulmanos da diáspora voltaram-se para os valores tradicionais. Enquanto os países exportadores da teoria de Khomeini, numa atitude dúbia, passaram a alimentar o ódio aos infiéis, através de uma enorme rede de mesquitas e de associações culturais, esportivas e outras, a exemplo dos evangélicos no Brasil.

Optaram por se implantar nos subúrbios dos centros urbanos europeus, onde prosperam conjuntos habitacionais desumanos que com frequência se transformam em guetos, abandonados pelo Estado, onde vivem populações magrebinas.

Semearam em terreno fértil, onde já reinava a xenofobia e a islamofobia plantadas pela extrema-direita. A mesma Europa, que abriu as portas a milhões de refugiados das guerras fraticidas, transformou-se no principal palco, porém não único, da violência islamita.

A respeito, é mister abrir um parêntese para assinalar um erro crasso e frequente dos “analistas” da imprensa brasileira, que se auto-intitulam “experts” em assuntos internacionais.

Ao criticar o discurso de Emmanuel Macron após a decapitação do professor Samuel Paty, confundem o termo Islamita, islamiste em francês, com muçulmano.

Islamiste não significa muçulmano e sim extremista islâmico, aquele que se radicalizou. Erram ao confundir os dois termos, talvez por ignorância; acabam escorregando num amálgama mal odorante.

Necessário sublinhar para que não haja dúvida: a violência vem dos islamitas e não da comunidade muçulmana, cujos representantes a denunciam sistematicamente.

O terrorismo faz parte do projeto de poder e pouco tem a ver, por exemplo, com as caricaturas de Maomé. Até o século 16, as imagens do profeta, hoje proibidas pelos extremistas sunitas, integravam a iconografia islâmica.

Centenas de quadros magníficos, representando Maomé, embelezam até hoje as paredes do Palácio Topkapi, de Istambul. A proibição veio de uma reescrita do Alcorão pela seita radical. E é polêmica até hoje entre os estudiosos do islã.

Assim, as caricaturas verdadeiras de Maomé (veja o texto sobre as falsas caricaturas, no final) publicadas inicialmente na Dinamarca e depois no France Soir e finalmente Charlie Hebdo entre outros jornais europeus, são apenas a parte visível do iceberg. Servem de bode expiatório, na medida em que os integristas precisam de uma razão para explicar às suas comunidades atos que não tem nenhuma.

Se as caricaturas são tão provocadoras a ponto de explicar a decapitação de um professor, como entender a degola de um sacristão, a morte a facadas de uma dançarina brasileira ou a morte a tiros de várias pessoas diante de uma sinagoga em Viena só para citar os ataques mais recentes?

Como compreender os atentados islamitas cometidos no Reino Unido, na Alemanha, na Holanda, na Itália, na Noruega, na Espanha e até na longínqua e pacífica Nova Zelândia?

Como aceitar que os islamitas tenham lançado, via redes sociais, ameaças de morte à comunidade asiática de Paris, sob o argumento de que os chineses, além de terem criado o corona vírus, cometem as piores atrocidades contra os uigures (muçulmanos sunitas de Xian Jiang), escravizando, assassinando, estuprando?

As caricaturas não podem ser usadas como justificativa. A violência como resposta é falta de argumento.

Aliás, o jovem que feriu dois jornalistas em frente à antiga sede do Charlie, no final de setembro, confessou a amigos nunca ter visto as tais caricaturas, nem sabia que o jornal satírico tinha mudado de endereço após o massacre de sua redação, cinco anos antes.

Vingar-se da França colonialista? tampouco. Os autores dos recentes atentados são chechenos, paquistaneses, afeganes. Apenas um era de origem tunisiana. O que não exime o país de uma mais que necessária autocrítica, que, diga-se de passagem, está sendo feita, embora tardiamente.

Por que então fazer da França ou de outros países europeus alvos privilegiados do terrorismo islâmico? Porque os atentados cometidos contra populações muçulmanas em países muçulmanos, embora muitíssimo mais numerosos,  não viram notícia na grande imprensa internacional.

repercussão da tentativa de morte da menina Malala, que cometeu o crime de querer estudar, é exceção, apesar da quantidade incontável de Malalas.

O que explica o terrorismo islâmico é o projeto de poder de Erdogan, bin Salman, aiatolá Ali Khamenei pela supremacia no mundo islâmico.

Os atentados só são possíveis graças a uma extraordinária e eficaz rede de associações religiosas ou não, instaladas na Europa e financiadas sobretudo por essas três potências islâmicas, mais o Qatar e o Paquistão.

Várias mesquitas instaladas em solo europeu, dirigidas por imanes originários e pagos por esses países, defendem abertamente a xaria, a lei islâmica, em detrimento da Constituição local.

Nelas, legitima-se desde o casamento forçado de crianças de 10 anos até a morte por apedrejamento de homossexuais ou de mulheres adúlteras. Os frequentadores são instigados a matar os infiéis. Acabam se radicalizando, alguns matando.

Mila, uma estudante adolescente de 16 anos, viu sua vida virar de cabeça para baixo no dia 18 de janeiro, quando publicou um vídeo criticando o islã para se defender do ataque homofóbico de um rapaz muçulmano, que a chamou de “lésbica asquerosa”.

Seguiu-se então uma das maiores ondas de mensagens insultantes jamais vista na história da internet na França. Foram cerca de duzentas por minuto nos dias que se seguiram.

Desde então Mila recebe ameaças de morte diárias, já foram mais de 35 mil, está sob proteção policial e foi obrigada a deixar de frequentar a escola.

Contra sua vontade, Mila tornou-se um ícone do partido  xenófobo Rassemblement pour la République, de Marine Le Pen, que defende a expulsão de todos os estrangeiros.

Para a divulgação das mensagens hediondas, nada melhor que as redes sociais divulgadoras do ódio, islamita como neofascista.

Face a esse quadro, alguns politólogos europeus não hesitam em falar em guerra de civilizações, enquanto outros veem aí uma guerra de religião.

Estamos diante de uma cruzada em que o futuro da democracia e dos direitos humanos está em risco. Se os governos não adotarem uma atitude firme de combate a todas as discriminações, a todos os fundamentalismos – islamita, judaico, cristão – dentro das regras de respeito ao Estado de Direito, a extrema-direita ocupará o espaço.

O tempo é agora, se já não for tarde demais.  A pandemia abre uma janela de oportunidade, que se não for aproveitada fará com que a saída do confinamento marque a vitória do populismo fascista e transforme o velho mundo iluminista na antessala do inferno dantesco.

abandonarmos nossos valores, expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, estaremos dando razão aos integristas de todas as religiões e ideologias.

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