Tempo - Tutiempo.net

Marido obriga mulher a comer dinheiro na frente dos filhos e proíbe de estudar e usar tipos de roupas

Violência, não

O medo deu lugar ao alívio quando Maria finalmente conseguiu colocar um ponto final em seu casamento de um cotidiano de abusos físicos e psicológicos.

“Era como uma prisão sem grades”, conta ela à BBC, sobre o relacionamento que durou 15 anos com o homem que a fez comer dinheiro na frente dos filhos, a proibiu de usar roupas que gostava e tentou impedi-la de estudar.

Maria, que prefere usar um nome fictício para proteger os filhos, tinha 30 anos quando conseguiu reunir forças para interromper os abusos que sofria e enfrentar sozinha as consequências do divórcio.

Ela teve de encarar a forte oposição de familiares, incluindo a mãe, e até de integrantes da comunidade da Igreja Católica que frequentava. Todos eram contra a separação.

“Em 2007, esperei minha mãe viajar para me separar. Depois que ela voltou, não aceitava o término e ficou brava comigo por muito tempo”, conta a advogada, atualmente com 46 anos.

Segundo Maria, a mãe a apavorava dizendo que ela passaria fome e não teria para onde ir caso se separasse.

“As pessoas falavam que a Igreja não apoiava o divórcio e que Deus não abençoava”, acrescenta ela, que relata que a mãe também usava um suposto argumento religioso.

Procurada pela reportagem, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não comentou o caso. A BBC ainda questionou qual a orientação caso um fiel esteja sofrendo abusos em um relacionamento, mas também não recebeu respostas.

Silas Guerriero, antropólogo e professor do programa de pós-graduação em Ciência da Religião da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que o matrimônio é um dos sete sacramentos da Igreja Católica e representa a presença de Deus na vida do casal.

Ele explica que sua dissolução é vista como “impossível por parte dos padres”. Dessa maneira, mesmo que ambos optem pelo divórcio e se casem com outra pessoa futuramente, eles estarão sempre casados, perante Deus, com o primeiro companheiro.

Guerriero explica que a forte influência da Igreja levou o Brasil a ser um dos últimos países do mundo a reconhecer o divórcio legal, no ano de 1977.

Ele também afirma que esse é um princípio católico de que o homem é o provedor do lar, mas afirma que isso está mudando e que apenas algumas vertentes mais conservadoras do catolicismo mantêm o comportamento patriarcal.

“As pessoas justificam esse comportamento em nome de Deus. Esse nome tem muito poder e muitas pessoas se aproveitam dele para cometer e justificar verdadeiros absurdos.”

“Para os novos movimentos religiosos (como a igreja católica), a distinção do fiel em relação à sociedade é forte e tem que se dar de maneira rígida e drástica. O poder daquele que lidera esse grupo se torna muito grande e algumas pessoas se utilizam desse poder para cometer abusos”.

A pressão vivida por Maria para seguir com a relação, mesmo relatando violência, é comum, segundo Suzanne Marie Mailloux, fundadora da ONG Fala Mulher, sediada no Jardim Ângela, bairro da zona sul de São Paulo, que há 12 anos ajuda mulheres em situação de risco e abuso no relacionamento.

“Muitas se acostumam com a situação porque não têm outras alternativas. Sem saída, elas vão ficando no relacionamento, por pressão social”, diz a canadense Mailloux — ela resolveu criar a ONG inspirada na própria mãe, que foi vítima de violência do ex-marido.

“A mulher que passa por esse estresse psicológico vive num constante estado de alerta. Ela sabe que virá uma crítica a tudo o que ela faz ou uma agressão repentina. A violência psicológica é diária e constante”, diz a especialista à BBC.

‘O problema era minha independência’
No caso de Maria demorou um tempo até que a dinâmica de abusos se instalasse. Ela afirma que no início do casamento o convívio com o então marido foi “uma maravilha”.

O relacionamento foi se transformando aos poucos, sendo marcado cada vez mais por violência psicológica.

“Sempre fui uma pessoa alto astral, com vontade de conquistar o mundo, vaidosa. Mas, quando eu me tornei mãe, acabei deixando essas coisas em segundo plano, o que acabou ajudando a camuflar todos os problemas que aconteceram nos anos seguintes”, conta ela, que teve o primeiro filho aos 18 anos e o segundo, oito anos depois.

Ela trabalhava em dois turnos como instrutora num curso de formação de condutores e ainda era a principal cuidadora dos filhos e da casa.

“Naquela época, eu era instrutora e dava aulas 7h ao meio-dia, quando voltava para casa para dar almoço para as crianças. Depois, dava aula das 18h às 23.

Mas sempre que queria fazer algo que achasse interessante, o marido a impedia.

Ela conta que o ex-marido controlava também o que ela vestia, dizendo que ela deveria escolher roupas mais largas e formais.

“Ele falava como se ele fosse meu amigo. Parecia que eu tinha que ouvir aquilo para não passar vergonha na frente da minha família e dos meus filhos. Ele falava: ‘Essa roupa não combina com você. Você está muito velha…’”, diz.

“Depois, percebi que o problema não eram as roupas, mas meu trabalho. O que irritava ele não era eu fazer as unhas, arrumar o cabelo e passar maquiagem”, afirma.

“O problema era minha independência, meu crescimento. Isso incomoda essas pessoas que querem ter o controle sobre a vida das outras”, afirma.

Então vieram as traições.

“Uma vez, uma menina de 16 anos foi até a nossa casa dizer que era namorada dele. Na época, o nosso segundo filho tinha 8 meses”, relembra Maria.

Ela se recorda que o marido se justificou dizendo que trair era algo natural da “genética masculina” e que ela tinha de entender a situação.

“Em nenhum momento, ele pediu desculpas ou prometeu não fazer de novo. Falou que casais teriam de passar por aquilo, como a minha mãe e avó passaram”, afirma.

Segundo Maria, o marido a desencorajou a fazer uma faculdade e a aprender a dirigir, mas ela resistiu.

“Tirei a carta (permissão para dirigir) e comprei um carro mais barato que o dele. Aí ele passou a comprar carros novos para sair com outras mulheres e a usar o meu para trabalhar”.

‘Me fez comer dinheiro’
Maria conta que, apesar de o ex-marido ter estudado apenas até a quarta série do Ensino Fundamental (atual 5º ano), era bem-sucedido e ganhava bem mais que ela.

No fim do ano, lembra ela, era generoso e comprava presentes para os colaboradores, para os filhos, mas a deixava de lado.

Ela lembra que, certa vez, perguntou a ele por que não tinha recebido presentes. “Ele retrucou: ‘Para quê? Nada vai te ajudar, nada vai te melhorar’”, diz Maria.

“Foi como se ele tivesse dado uma facada no meu peito. Aquilo rasgou a minha alma. Falei para ele: ‘Poxa vida, você ganha tanto dinheiro e não pode me agradar?’”.

Naquele momento, diz ela, o ex-marido buscou uma caixinha onde guardava cédulas de dinheiro.

“Quando voltou, ele enfiou dinheiro na minha boca enquanto perguntava se era aquilo que eu queria para ficar quieta. Foi a única agressão física enquanto éramos casados”, lembra.

A cena foi vista pelos filhos, então com 3 e 11 anos.

Sem apoio, Maria diz que recorreu a livros para buscar inspiração para se libertar dos abusos.

“Um livro que me marcou foi um do Joseph Campbell (escritor americano de mitologia comparada) no qual ele diz que você precisa ser protagonista, não coadjuvante, da própria vida e só quem aceitar isso pode participar dela”, relembra.

“Ninguém pode ter mais controle sobre sua vida do que você. Comecei a tentar exercitar isso.”

Maria conta que, quando procurava apoio de alguém da igreja, ouvia que precisava ter paciência, porque Deus não gostaria de vê-la se divorciar.

“Então, tinha mais essa prisão na minha cabeça. Se me separasse, Deus me castigaria. E isso pesou muito”.

Em dado momento, ela descobriu que o então marido estava “noivo” de outra mulher.

Foi quando Maria decidiu colocar um ponto final na relação.

No dia seguinte da decisão de se separar, ela conta que o ex-marido a procurou para tentar agredi-la.

Segundo Maria, ele lhe disse que a culpa por ter outra mulher era dela, que não despertava mais seu interesse.

“Ele quis dar uma volta no balcão da cozinha para me agredir. Quando eu percebi, peguei uma faca de ponta e a arremessei nele”, conta ela.

A faca atingiu o rejunte entre os azulejos e quebrou a ponta.

“Tenho essa faca até hoje. Ele então percebeu que eu já não estava mais brincando e que tinha acabado”.

Maria conta que precisou trocar as fechaduras e o controle remoto do portão de sua casa várias vezes para evitar que o ex-marido entrasse em casa.

Sempre que ele conseguia fazer uma cópia das chaves, a partir de um molde dos filhos, ela trocava as fechaduras para impedir que ele entrasse.

Em uma dessas ocasiões, conta ela, o ex-marido deu um soco em seu peito, o que a derrubou e a fez bater a cabeça, deixando-a desacordada por alguns instantes.

“Meu filho começou a gritar, chamando o irmão dele: ‘O papai bateu na mamãe e ela voou’”, conta Maria.

“Fiquei em choque, porque não esperava aquilo. Fiquei com medo de ele machucar meus filhos.”

Maria fez boletim de ocorrência e exame de corpo de delito. Jorge foi condenado pelo crime, mas não ficou preso. Foi sentenciado a prestar serviços comunitários.

Dois anos depois, Maria diz que tudo piorou ainda mais quando ela começou um novo relacionamento. O ex-marido passou a segui-la na rua e ligava para xingá-la e fazer ameaças.

“É muito comum o homem ameaçar a mulher dizendo que se ela não ficar com ele, não fica com ninguém”, conta Suzanne, da ONG Fala Mulher, que trata casos de grave ameaça e iminente violência como prioridade e criou dois abrigos para receber mulheres vítimas.

Casos como o de Maria são comuns, segundo as estatísticas: uma em cada três brasileiras com mais de 16 anos já sofreu algum tipo de violência física ou sexual pelo parceiro, aponta um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022, foram mais de 18 milhões de vítimas.

No ano passado, foram registrados 1.410 feminicídios no Brasil — ou um assassinato motivado pelo fato de a vítima ser mulher a cada seis horas.

Os dados são do Monitor da Violência do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da USP e, em comparação com 2021, houve um aumento de 5,5% deste tipo de crime em 2022.

‘Nunca perdi a fé’
Maria relata que nunca abandonou a religião, mesmo com a pressão de alguns integrantes de sua comunidade religiosa para que não terminasse o relacionamento violento.

“Nunca perdi a fé. O problema é a doutrina que as pessoas querem colocar. Deus quer que sejamos felizes. Ele não gosta de divórcio, mas não quer a infelicidade de ninguém”, afirma a advogada.

“Frequentava igreja e não deixei de frequentar, mas faço isso pela palavra e não por quem a pronuncia”, diz.

Ela conta que nos períodos de crise com o ex-marido, o conselho das pessoas que frequentavam a igreja era para ela fosse “paciente”.

“As pessoas que frequentam igreja sempre prezam pela boa imagem da família, mas só cada um sabe do seu lar e se é um lar de verdade”, conta ela, que relembra da oposição da mãe e da sogra que diziam “que Deus não queria” a separação.

“No mesmo dia em que eu me separei, todo o medo foi embora. Me senti feliz e alegre, escutei um louvor e depois uma música. Me lembro de que foi a primeira vez depois de muitos anos que escutei uma música e senti alegria.”

Maria diz que, depois de muitos anos, teve uma primeira noite de sono sem sentir medo ou ansiedade por alguma humilhação sofrida.

“Se Jesus estivesse hoje aqui na Terra, ele iria obrigar uma mulher a viver sendo traída e apanhando? Ele aceitaria violência contra as crianças ou qualquer ser? Ele rejeitaria um casal que tem amor e respeito um pelo outro só por ser do mesmo sexo?”, questiona ela.

Agressão contra a sobrinha e recomeço
Maria ainda ouviu, anos depois, da própria sobrinha, que o ex-marido a teria estuprado quando ela tinha 8 anos, uma agressão que teria durado por três anos.

“Não tive medo. Imprimi 200 cópias do boletim de ocorrência que eu mesma fiz do caso da minha sobrinha. Tirei o nome dela e distribuí para todos os vizinhos onde ele mora. Também contei para a família dele e alertei para que não deixassem ele sozinho com outras crianças”, diz Maria.

Segundo Maria, Jorge foi investigado, mas acabou não sendo condenado por nenhum dos supostos abusos contra crianças. No entendimento da Justiça, não havia provas suficientes.

“Hoje, a minha sobrinha está fora do Brasil porque não dá para você ficar circulando numa cidade onde você tem o pesadelo da sua vida nas ruas. Ela diz para mim que a culpa foi dela porque em algum momento pode ter seduzido ele. Eu me pergunto como alguém com 8 anos seduz um homem…”, diz.

Segundo Maria, o caso da sua sobrinha ainda a perturba.

“Sinto vergonha de olhar para ela e saber que eu não fiz nada no momento que ela precisou. E que, quando soube e pude fazer algo, eu não consegui”, relata.

O aprendizado dessa experiência, diz ela, é a necessidade de falar e orientar mulheres sobre esses atos violentos para evitar novos crimes.

“As mulheres precisam estar atentas para que o agressor não as deixe num cativeiro e faça isso com todos ao redor dela sem que percebam.”

Depois da separação, Maria conta que “passei aperto, mas nunca passei necessidade”.

Ela relata que o ex-marido continuou pagando a escola e plano de saúde dos filhos. Mas diz que nunca pagou pensão aos filhos.

“Se eu quisesse, ele já poderia ter sido preso por dinheiro, mas nunca quis fazer isso”.

Hoje, 16 anos após a separação, Maria conta que estende a mão para uma pessoa da família no momento de uma separação.

“Minha irmã está se divorciando e meu atual marido é advogado. Ela tem um filho e eu dei todo meu apoio nesse momento”, conta.

“Ela abriu um sorriso e sentiu que não está sozinha”.

Felipe Souza

OUTRAS NOTÍCIAS