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Regime de exceção sustenta plutocracia fascistóide

Poder sem Pudor

No Brasil, o Estado Democrático de Direito, regido pela Constituição Federal, tem uma vigência precária, pois convive com situações concretas típicas de regimes de exceção.

As evidências mais recentes e gritantes da mal dissimulada prevalência de situações de exceção, incompatíveis com a efetiva vigência da democracia constitucional, resultam da esdrúxula e perniciosa implementação do dispositivo conhecido como Emendas de Relator, bem como do insólito e inaceitável arbítrio apelidado de PEC dos Precatórios.

E é indispensável perceber que existe uma ligação de causa e efeito entre as iniciativas geopolíticas orquestradas pelo imperialismo hegemônico e a manutenção de flagrantes violações contra o Estado Democrático brasileiro, conforme restará demonstrado.

EMENDAS DE RELATOR

Muito tem sido dito, com razão, acerca do fato de que as Emendas de Relator, também conhecidas pela rubrica RP-9, violam o princípio da transparência, requisito elementar para a administração pública numa sociedade que se pretenda democrática.

Todavia, é necessário observar que o desrespeito ao princípio da transparência não é a única irregularidade inconstitucional contida nas Emendas de Relator, tendo em vista que tal modalidade de emenda parlamentar ao orçamento da União acarreta também a violação dos princípios da impessoalidade e da isonomia.

Nesse sentido, cabe recordar que as Emendas de Relator foram criadas em 2019, com justificativa de constituir um mecanismo legislativo para permitir a destinação de verbas disponíveis nas receitas previstas não alocadas no orçamento.

Desde então o montante das verbas alocadas através das RP-9 tem experimentado um crescimento notável, visto que foi da ordem de R$ 4 bilhões em 2020, e passou a ser de R$ 16 bilhões em 2021.

Para compreender a gravidade e a mecânica das Emendas de Relator é preciso lembrar que, até 2019, as emendas ao orçamento da União abrangiam as chamadas Emendas Impositivas, correspondentes a uma fração do orçamento total que é destinada de acordo com indicações de cada parlamentar, além das Emendas de Bancada, através das quais é feita a alocação de uma fração do orçamento total de acordo com indicações feitas pelos colegiados das bancadas de partidos com representação no Congresso Nacional.

Portanto, resulta que as tais Emendas Impositivas, bem como as Emendas de Bancada, preservam a prevalência dos princípios da impessoalidade e da isonomia, dado que os montantes designados para as emendas individuais de cada parlamentar são idênticos, e as emendas de bancada são iniciativas coletivas dos parlamentares de cada estado.

Já as RP-9 se caracterizam pelo fato de serem definidas de maneira discricionária pelo relator do orçamento, que pode escolher os parlamentares que serão agraciados, bem como os valores liberados para cada um deles destinar do modo que preferir.

Assim, na medida em que o relator do orçamento pode determinar quais parlamentares receberão verbas das RP-9, e quanto será destinado para cada um dos escolhidos, resulta violado o princípio da impessoalidade, tendo em vista que a inexistência de norma para especificar os critérios a serem adotados na alocação das Emendas de Relator permite a deliberação individual subjetiva, sem garantia de observação do interesse público, e com a possibilidade de abrigar favorecimentos e retaliações.

Por tais razões, inúmeras denúncias apontam o uso das Emendas de Relator como um instrumento espúrio de barganha política, mediante destinação desigual de verbas das RP-9, com vistas a favorecer parlamentares alinhados com o governo federal.

Por esta via, resulta evidenciado que as Emendas de Relator violam também o princípio da isonomia, pois parlamentares que adotem posicionamentos contrários aos interesses dominantes não concorrem em condições de igualdade com os parlamentares alinhados ao governo para a obtenção de verbas do orçamento através das RP-9.

E, neste ponto, vale ressaltar que o princípio da isonomia resulta do direito fundamental à igualdade de todas as pessoas diante da lei. A rigor, a isonomia constitui a aplicação concreta do direito à igualdade, com base na premissa de que em iguais condições são iguais os direitos a serem garantidos pelo Estado Democrático.

Além disso, as Emendas de Relator permitem a execução das respectivas verbas pelos próprios parlamentares agraciados com a liberação das RP-9, sem qualquer controle oficial da alocação dos recursos e sem nenhuma transparência acerca das informações sobre o montante designado para cada um, nem sobre a destinação dada a tais valores.

A esta altura, é fácil perceber a gravidade dos danos potenciais resultantes da possível utilização das Emendas de Relator com o objetivo de favorecer de maneira indevida os partidários do governo federal e seus associados, mediante designação desigual das RP-9, que implica na possibilidade de fortes desequilíbrios nas disputas eleitorais.

Nesta medida, salta à vista que as tais Emendas de Relator são incompatíveis com a Democracia, e precisam, portanto, ser repelidas pelo Supremo Tribunal Federal, pois tal modalidade de gestão orçamentária acarreta uma flagrante e gravíssima violação dos princípios fundamentais da transparência, da impessoalidade e da isonomia.

E não cabe argüir o conceito de interna corporis, para alegar que a ação do STF no caso das RP-9 invadiria competência exclusiva do legislativo, tendo em vista que se trata de matéria relativa à ilegitimidade constitucional das Emendas de Relator.

PEC DOS PRECATÓRIOS

A Proposta de Emenda Parlamentar n. 23/2021, mais conhecida como PEC do Calote ou PEC dos Precatórios, constitui gravíssima agressão aos princípios constitucionais da Coisa Julgada, do Ato Jurídico Perfeito e do Direito Adquirido, consagrados de forma expressa no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

E a falta de pagamento regular de precatórios configura crime de responsabilidade do presidente da república e de ministros de estado, nos termos do artigo 85, VII, CF, bem como do artigo 6º, § 2, artigo 9º, § 3, e artigo 12º, §§ 1 e 4, da Lei 1.079/1950.

Vale lembrar que os títulos precatórios são constituídos por dívidas do governo federal resultantes de decisões judiciais definitivas, sobre as quais não cabe mais a interposição de qualquer recurso ou medida protelatória, e que foram homologadas pelo poder judiciário e inscritas no orçamento da União, para serem pagos até o final de 2022.

Cabe destacar também que, ao contrário do que insinuam partidários da PEC do Calote, a maioria dos precatórios inscritos no orçamento de 2022 não é composta por títulos de valores milionários pertencentes a grandes empresas, mas sim por títulos de valores de menor monta, decorrentes do reconhecimento de direitos de aposentados e pensionistas, bem como de professores, prefeituras e governos estaduais.

Acresce que tais precatórios, na maioria das vezes, são homologados e inscritos no orçamento federal depois de tramitação processual em todas as instâncias da justiça, em geral com etapas de impugnação e perícias contábeis na fase de liquidação de sentença, até serem, ao final, definidos e homologados os valores a serem pagos pela União, muitas vezes depois de décadas desde o início das respectivas ações judiciais.

Dessa maneira, a pretensão do governo federal de não honrar o pagamento tempestivo dos precatórios inscritos para 2022 impede o efetivo cumprimento da coisa julgada da qual resulta a inscrição de tais títulos e, desse modo, acarreta a flagrante violação do direito adquirido dos autores das ações judiciais ao recebimento integral de tais créditos, o que constitui insustentável desrespeito às disposições do artigo 5º, XXXVI, da CF.

E é importante frisar que as disposições contidas no artigo 5º da Constituição Federal constituem cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser modificadas por meio de PECs.

Além disso, é indispensável ressaltar aqui, com máxima ênfase, que é falsa a pretensa justificativa do governo e de seus apoiadores, segundo a qual a PEC dos Precatórios seria a única alternativa para viabilizar o pagamento do auxílio financeiro à população, prometido na proposta de criação do denominado Auxílio Brasil.

Fato é que existem várias outras alternativas de financiamento do auxílio financeiro aos segmentos mais carentes da população brasileira, deixados em situação de incerteza e de penúria extrema em razão do fim abrupto do Auxílio Emergencial, pago até outubro, bem como em decorrência da danosa extinção do Bolsa Família.

Diga-se de passagem, que a extinção do programa Bolsa Família evidencia a absoluta falta de compromisso do governo bolsonarista para com o atendimento das necessidades prementes da população carente, posto que nada justifica o abandono do aclamado programa social extinto após quase duas décadas de bom funcionamento.

Vale mencionar que o programa Bolsa Família tem sido elogiado e replicado em outros países, sendo considerado desde seu início como um modelo exemplar de programa social, eficiente e bem estruturado, com mecanismo de controles e contrapartidas.

Ademais, o alardeado Auxílio Brasil tem sido anunciado como um programa de duração limitada, previsto para acabar em dezembro/2022, e que não tem previsão efetiva de contrapartidas exigidas no Bolsa Família, tais como freqüência escolar, vacinação, etc.

Todavia, o mais urgente é demonstrar que o financiamento da continuidade do auxílio financeiro para a população carente pode ser provido através de alternativas legais, que não requerem o desvio das verbas previstas no orçamento de 2022 para o pagamento dos precatórios judiciais inscritos até junho de 2021.

A simples revisão do cálculo do limite do Teto de Gastos, de modo a incluir a correção monetária do período até dezembro/2021, pode gerar um aumento da disponibilidade financeira no orçamento de 2022 da ordem de R$ 40 bi (quarenta bilhões de reais).

Indo adiante, uma redução de 10% (dez por cento) nas isenções fiscais previstas para 2022 pode gerar um aumento de outros R$ 40 bi nas receitas do orçamento federal.

Acresce ainda que a imprescindível extinção das inconstitucionais e antidemocráticas Emendas de Relator pode liberar, de forma automática, mais de R$ 16 bi (dezesseis bilhões de reais) do orçamento deste exercício de 2021.

O resultado conjunto das 3 (três) medidas de política fiscal acima apontadas pode então gerar um montante global acima de R$ 96 (noventa e seis bilhões de reais), suficiente para garantir a criação imediata de um programa permanente de renda mínima, com o patamar mensal de R$ 600,00 (seiscentos reais), bem como para reverter os cortes de verbas destinadas ao urgente atendimento das demandas sociais básicas, tais como saúde, educação, segurança alimentar e pesquisa científica, dentre outras.

Em face de tudo quanto acima expendido, resta evidenciado que a pretensão do governo federal e seus asseclas no sentido de desviar para outros fins os recursos orçamentários previstos para pagamento dos precatórios em 2022, além de extremamente danosa, é também desnecessária, tendo em vista que há alternativas eficazes para evitar a violação de direitos fundamentais e a insegurança jurídica decorrente de tal violação.

Na verdade, é impossível não perceber que a real intenção do governo bolsonarista é liberar mais recursos orçamentários para pagamento de Emendas de Relator, com vistas à obtenção de vantagens políticas nas eleições de 2022, mesmo que o preço disso seja criar um desequilíbrio fiscal de conseqüências imprevisíveis a partir de 2023.

Por outro lado, é indispensável observar que os danos potenciais que podem advir da aprovação da PEC dos Precatórios é muitíssimo maior do que o sinalizado acima, visto que a postergação indefinida dos prazos para quitação dos precatórios induz o aumento das operações financeiras de compra e venda de precatórios judiciais, com deságios significativos, da ordem de pelo menos 40% (quarenta por cento) dos valores de face.

E a referida financeirização dos precatórios judiciais tende a ocasionar efeitos nefastos em escala ampliada, em razão dos dispositivos que autorizam o uso de tais títulos para a compra de ações de empresas públicas, bem como para aquisição de imóveis da União, inclusive mediante atuação de fundos de investimento.

A conseqüência de tais dispositivos de favorecimento à financeirização dos precatórios é que a aprovação da PEC do Calote tende a constituir um escandaloso mecanismo de corrupção e enriquecimento ilícito, pois visa criar um mercado altamente lucrativo para a especulação financeira, com o agravante de que tais brechas na emenda constitucional, defendida pelo governo federal e pelos investidores privados, permitirá a alienação de patrimônio público sem autorização parlamentar e sem licitação.

Para ter uma idéia da extensão dos danos potenciais relacionados com a financeirização dos precatórios promovida pela PEC 23/2021 basta observar que a compra dos títulos judiciais com deságio em patamares a partir de 40% (quarenta por cento) faz com que, para cada bilhão de reais aplicado neste mercado, seja garantido um lucro imediato acima de R$ 400 milhões, visto que os valores de face dos precatórios negociados podem ser utilizados para a aquisição de imóveis da União, e/ou para a compra de ações de empresas estatais, ou ainda para quitação de dívidas junto a órgãos federais.

Do exposto, resta evidenciado que os reais objetivos da pretensão de aprovar a toque de caixa a PEC dos Precatórios nada tem a ver com a alegada intenção de financiar o pagamento de auxílio financeiro para a população carente, visto que existem alternativas melhores para viabilizar o justo e impostergável atendimento das demandas sociais sem acarretar os danos decorrentes da violação dos princípios da coisa julgada e do direito adquirido, bem como sem criar lacunas na legislação capazes de produzir desvios de finalidade, mecanismos de enriquecimento ilícito e crimes de responsabilidade.

E talvez a gravidade maior do assombroso conjunto de ilegalidades antidemocráticas acima delineado seja decorrente do fato de que as referidas distorções inconstitucionais, contidas na PEC do Calote e nas Emendas de Relator, visam produzir um perigosíssimo desequilíbrio na disputa das futuras eleições, com conseqüências negativas duradouras sobre a precária vigência da Democracia Constitucional e do Estado de Direito no país, bem como com sérias ameaças para o futuro da nação brasileira.

DEMOCRACIA ESTÁ REFÉM DA MANIPULAÇÃO IMPERIALISTA

Conforme apontado acima, as Emendas de Relator e a PEC do Calote constituem evidências recentes e gritantes da mal dissimulada prevalência de situações de exceção, incompatíveis com a efetiva vigência da democracia constitucional.

De igual maneira, a incapacidade das instituições no que tange à investigação e coibição dos denunciados indícios de crimes de responsabilidade do governo bolsonarista, tanto no âmbito da trágica desídia e má-fé na gestão do combate à pandemia de COVID-19, quanto no que se refere à indução do aumento dramático dos crimes contra a natureza e contra as comunidades indígenas, mostra que a prevalência de situações de exceção desta dimensão e gravidade caracteriza a negação da vigência do Estado Democrático.

Da mesma forma, a própria existência e continuidade do governo bolsonarista resulta da incapacidade política das instituições democráticas e da própria sociedade brasileira, em face das conhecidas e reconhecidas evidências de uso de propaganda ilegal e de abuso de poder econômico em favor do bolsonarismo nas eleições de 2018.

Nestas circunstâncias, fica patente a existência de um regime de exceção que vigora em situações específicas, em contraste com o Estado de Direito oficial, em função do poder político de grupos econômicos nacionais, associados ao imperialismo hegemônico.

E a existência de um regime de exceção que vigora na prática em situações com amplas implicações políticas, econômicas e sociais mostra uma democracia debilitada.

A esta altura, é preciso perceber que o advento e a continuação de um governo sem legitimidade política, que ocupa a presidência da república em decorrência da utilização impune de propaganda ilegal e de abuso de poder econômico, estão relacionados com um complexo histórico de manipulação e dominação imperialista, observado não apenas no Brasil, mas também em quase todos os países do mundo.

No caso brasileiro, vale referir, em rápida retrospectiva de eventos recentes, a sucessão de iniciativas, oficiais e camufladas, empreendidas pelo imperialismo capitaneado pelos Estados Unidos, relacionadas com a ingerência em investigações da Lava-Jato e com a destruição de importantes cadeias produtivas da indústria nacional, bem como com o apoio da extrema direita internacional ao bolsonarismo, ao uso político de discursos de ódio, e à disseminação de desinformação e de fake news.

É possível haver uma relação direta entre o anúncio da descoberta das imensas reservas de petróleo do Pré-Sal e a derrubada do governo de Dilma Roussef, através de um impeachment sem fundamento jurídico, promovido em 2016, do qual resultou o advento dos governos ultra-liberais de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, que têm promovido devastação de recursos naturais, alienação lesiva de ativos estratégicos do patrimônio público, destruição de direitos sociais e de cadeias produtivas nacionais, bem como favorecimento dos interesses da cruel exploração predatória, do rentismo, do capital internacional, da extrema direita, e do imperialismo hegemônico.

E todo este mosaico de interesses econômicos e geopolíticos indica a existência de uma relação de causa e efeito entre o apoio internacional à ascensão do bolsonarismo e o vil alinhamento do governo brasileiro com a agenda de redução de direitos sociais e de exploração predatória dos recursos nacionais.

De maneira que a expectativa existente é de uma escalada da manipulação dos fatores econômicos e políticos com o objetivo de que seja perpetuado o apoio do governo federal à satisfação dos interesses imperialistas.

Assim, todas as evidências elencadas neste breve artigo sustentam a certeza de que a democracia brasileira precisa promover a urgente ampliação do debate político, a fim de mobilizar a sociedade em busca da conscientização coletiva, para clamar contra a PEC do Calote e contra as Emendas de Relator, com vistas à adoção de soluções adequadas para permitir o financiamento de um programa de renda básica no patamar de R$ 600 (seiscentos reais), a fim de reverter o avanço da fome, impedir a manipulação eleitoreira e obstar a dominação de espectro total, praticada pelo imperialismo hegemônico.

Mario Ramos – Economista

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