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Sobre a teoria do valor e o debate atual da esquerda

Mario Duayer - in memoriam

Neste início de século XXI, o pensamento progressista e de esquerda, sobretudo aquele de inspiração marxista, vê a intensificação de um debate que opõe, de um lado, a agenda tradicional da luta de classes (trabalhadores x capitalistas) e, de outro, as chamadas “pautas identitárias”, que vão colocar seu foco na opressão sofrida por grupos específicos (mulheres, não brancos, não heteronormativos etc.) e que, não raro, vêm acompanhadas da discussão sobre a crescente degradação ambiental.

Em março de 2018, o famoso marxista inglês David Harvey publicou em seu blogue um artigo provocativo intitulado “A recusa de Marx da teoria do valor-trabalho”, provocação rapidamente respondida por outro marxista inglês, Michael Roberts, em seu próprio blogue, tendo tal resposta ganhado uma tréplica de Harvey, acolhida por Roberts no mesmo espaço.

O que uma coisa tem que ver com a outra?

No número de inverno do ano passado (n.o 34), a revista de estudos socialistas Outubro montou um dossiê sobre a referida contenda em torno do valor, convidando marxistas brasileiros a comentar o debate.

Assim, o dossiê saiu com cinco textos: o original de Harvey mais réplica e tréplica, um texto dos professores Eleutério Prado (USP) e José Paulo G. Pinto (UFABC) e mais um dos professores Mario Duayer (UFF) e Paulo Henrique F. de Araújo (UFF).

Mario Duayer, marxista de quatro costados, refinado leitor de Marx, tradutor dos Grundrisse para a edição brasileira lançada pela Boitempo em 2011, grande professor e grande figura humana, deixou-nos em janeiro deste ano, levado pela covid.

No declinado dossiê, é justamente seu texto que estabelece a ligação entre os dois temas acima mencionados.

Aproveito a boa iniciativa da Outubro para, com este artigo, prestar minha homenagem ao professor Duayer, desaparecido precocemente junto com mais de meio milhão de brasileiros graças à incúria e omissão criminosas de um governo para o qual já não se tem adjetivos.

Os dois lados na interpretação da teoria do valor.
A provocação de David Harvey começa pela observação de que Marx não é herdeiro, como pensam muitos, da teoria ricardiana do valor-trabalho e lembra que, ao tocar no assunto, Marx fala sempre em “teoria do valor”, não em “teoria do valor-trabalho”.

Isto porque, em sua leitura, o valor tem existência objetiva, mas é imaterial, não existindo sem o dinheiro, que é sua representação.

Este último, por seu lado, só existe plenamente quando circula como capital, de modo que é só aí “que se consolidam as condições para que a forma valor característica do capital se constitua enquanto norma regulatória” (p.14).

Em outras palavras, não existe sociedade mercantil que não seja capitalista, pois o que impulsiona as trocas é a busca de mais valor, movimento que, de seu lado, promove e sustenta a própria forma valor.

A circulação do capital, entretanto, pressupõe a existência da mercadoria força de trabalho e é principalmente aí que o trabalho entra na história, já que segundo nosso autor, “a formulação do valor no primeiro capítulo de O Capital é revolucionada por aquilo que vem em seguida” (p.17-18).

Assim, para Harvey, o que Marx buscava, diferentemente de David Ricardo, não era uma teoria que fornecesse uma base para explicar os preços (base esta que estaria no trabalho), mas uma teoria capaz de explicar as consequências, para todos aqueles condenados a trabalhar para o capital, da operação do valor como norma de regulação social.

Na sequência, Harvey vai afirmar que existe uma unidade contraditória entre valor definido no mercado e valor reconstruído pelas transformações no processo de trabalho que é central no pensamento de Marx.

Desse modo, o que está em jogo na teoria do valor não se reduz às experiências no interior do processo de trabalho, ou seja, no âmbito da produção, mas atinge também tudo aquilo que se relaciona à reprodução social que o valor erigido em norma de regulação produz (e a reprodução social no capitalismo, como se sabe, ainda que não se restrinja a isso, passa inescapavelmente pelo mercado).

As condições deteriorantes da reprodução social, impulsionadas pela concorrência capitalista e por seus efeitos sobre as condições de vida da classe trabalhadora, se chocam assim, constantemente, com a necessidade perpétua do capital de expandir o mercado.

Nesse sentido, Harvey vai observar, por exemplo, que “tanto a elevação dos salários como forma de garantir ‘consumo racional’ do ponto de vista do capital quanto a colonização da vida cotidiana como arena para o consumismo são cruciais para a teoria do valor” (p. 21).

Tudo isso, conclui Harvey, “está muito além do que Ricardo tinha em mente e é igualmente distante da concepção de valor que geralmente se atribui a Marx” (p. 22).

Reagindo à provocação, Roberts vai afirmar, logo de início, que a interpretação de Harvey acerca da teoria de Marx parte do princípio de que o valor é criado/realizado apenas na troca (o que seria uma heresia e associaria a teoria marxista às leituras da economia convencional, que não relacionam de modo substantivo trabalho e valor), chegando a sugerir que, para ele, o valor seria uma criação do dinheiro e não, como seria o correto, a representação monetária do trabalho despendido na produção.

Roberts assevera, então, existir uma razão para tal interpretação equivocada da teoria do valor de Marx.

É que, em sua visão, valendo os princípios apresentados por Harvey, “será a demanda (efetiva) que irá decidir se o capitalismo pode acumular de maneira regular, sem incorrer em crises” (p. 32).

Em outras palavras, o autor, com sua teoria do valor, estaria defendendo uma “teoria subconsumista grosseira – mais grosseira que Keynes” (p. 36) e não aquilo que Marx propôs.

O incômodo de Roberts aqui é principalmente com o fato de esse tipo de leitura não dar tanta importância, e, menos ainda, exclusividade, à famosa e controversa lei da queda tendencial da taxa de lucro como indutora das crises, lei da qual Roberts é entusiasmado defensor.

Harvey não se sai mal em sua defesa. Começa esclarecendo que o valor, claro, é sempre criado no ato da produção, mas só é realizado na troca, ou seja, é apenas valor potencial até o momento em que ocorra sua realização.

Daí que demanda insuficiente dos consumidores pode sim ser uma das causas da crise, junto com outras, como crises comerciais ou estritamente financeiras e mesmo a famosa queda da taxa de lucro.

Para Harvey, interpretações como a de Roberts podem ser consideradas “produtivistas excludentes”, pois deixam de lado, na história da acumulação de capital, uma série de outros elementos, indicados pelo próprio Marx, dentre eles, os associados ao processo de criação de vontades, necessidades e desejos, com a respectiva ênfase nos mecanismos para garantir capacidade de pagamento (p. 44).

Ele indica, com isso, que é preciso atentar também ao que se passa na esfera da circulação, pois vários dos fenômenos diretamente associados à produção em si (a luta pela duração da jornada de trabalho, o impulso permanente à evolução tecnológica etc.) dependem das leis compulsórias da concorrência, mobilizadas e percebidas no mercado, e aparecendo em pontos chave do argumento de Marx.

Tal tipo de leitura, para Harvey, exige a correta compreensão da abstração que, para Marx, caracteriza o valor (compreensão que, presume-se, Roberts não teria).

Ela não decorre de ser o valor um produto do pensamento, mas sim “o produto de um processo material histórico” que, a partir da generalização das trocas, fundamenta sua ascensão “como uma norma regulatória operando no mercado”, norma tal que passa a “dominar comportamentos não só no próprio mercado, mas também nos reinos da produção e da reprodução social” (p. 45).

A dialética ausente
Harvey poderia ter economizado palavras se tivesse dito simplesmente que a abstração que está aí em jogo é uma abstração real.

O trabalho abstrato que constitui a substância do valor é resultado do cotidiano das trocas, que ininterruptamente reduz trabalhos concretos dos mais variados tipos e complexidades a tempo de trabalho simples socialmente necessário.

Um dos argumentos fortes de Roberts contra Harvey desponta quando ele, para enfatizar que o valor carregado pelas mercadorias é por elas adquirido no processo de produção antes que cheguem ao mercado, traz à cena a seguinte frase de Marx no capítulo 4 do Livro I:

“O valor das mercadorias é expresso em seus preços antes de elas entrarem em circulação, sendo, portanto, o pressuposto, e não o resultado desta última” (MARX, 2013, p. 233).

Aqui, ajudaria Harvey em seu argumento contra Roberts lembrar que, se Marx diz que o valor é pressuposto (Voraussetzung), então está dizendo que o valor não está posto… nem estará, pois o que estará posto, desde que a realização (venda) ocorra, é o preço de produção. Em outras palavras, o valor existe como uma negação.

O que quero dizer com os dois últimos parágrafos é que um pouco de dialética auxiliaria Harvey em sua disputa com Roberts.

Abstração real é algo que só faz sentido num mundo onde se recuse a partição kantiana entre o sujeito e o objeto, onde seja possível admitir que a realidade pode, enquanto tal, produzir abstrações (e não apenas o pensamento).

Do mesmo modo, para entender o sentido da pressuposição que constitui o valor, é preciso admitir uma existência negada – o que não lhe retira a importância como forma social (ou norma de regulação, como quer Harvey), antes o contrário.

O mundo que faculta transgressões tais é o da dialética de Hegel, de capital importância na formação de Marx.

Mas, como bem observam Prado e Pinto, em seu texto no dossiê, “esses dois marxistas impenitentes não são bons amigos da dialética” (p. 55).

Esse é, aliás, o ponto principal de seu comentário crítico tanto à leitura de Harvey quanto à de Roberts sobre a lei do valor.

Depois de mencionar vários pontos dos textos onde fica evidente a fragilidade, dentre eles a questão da abstração real presente na posição do trabalho como valor, os autores ponderam, não sem razão, que, no concernente às crises, os dois marxistas se atêm à causalidade eficiente, a qual, “para a dialética que vem de Hegel e de Marx, é aquele operar raciocinativo que estabelece conexões externas entre os fenômenos” (p. 58).

Assim, nem um nem outro, segundo eles, parecem conceber os fatores desencadeadores das crises como momentos de um todo em processo de desenvolvimento, ou seja, que há aí uma ação recíproca ancorada na natureza contraditória do objeto.

De modo sintético, que “a crise, para Marx, já está presente como possibilidade na contradição entre valor de uso e valor e, mais precisamente, na contradição entre a mercadoria e o dinheiro” (p. 59).

O valor como forma de mediação e dominação social (e o sujeito revolucionário).
Não resta dúvida que assinalar a ausência de dialética é um fértil veio para comentar a contenda em questão, pois, como já indicado, um pouco dela ajudaria Harvey, por exemplo, a se defender das críticas não muito fundamentadas que lhe faz Roberts.

Contudo, o leitor pode justificadamente se perguntar para que serve tudo isso, por que razão uma querela de perfil quase metafísico teria alguma relevância para além daqueles envolvidos no debate.

Eis justamente o mérito do texto seguinte do dossiê. O objetivo de Duayer e Araújo é mostrar que, por trás das duas diferentes leituras de Marx, há posições distintas com relação à crise atual do capitalismo e às possibilidades de transformação.

Segundo os autores, é a preocupação em identificar um sujeito revolucionário que orienta tanto uma quanto outra interpretação.

De fato, em sua resposta a Roberts, Harvey pontua que, insistindo na necessidade de se atentar também para as questões relativas à circulação/realização do valor, não quer com isso minimizar, negar ou refutar “todo o esforço que está sendo feito quanto ao processo de trabalho e a importância da luta de classes que tem ocorrido e continua a ocorrer na esfera da produção” (p. 44).

Mas, continua ele, é preciso que tais lutas estejam relacionadas àquelas sobre “a realização, a distribuição (por exemplo, extrações de renda, execuções de dívidas hipotecárias), a reprodução social, o gerenciamento da relação metabólica com a natureza e as dádivas da cultura e da natureza”, conjunto de lutas “amplamente representado nos recentes movimentos anticapitalistas” – os quais, repisa Harvey, devem ser levados tão a sério quanto “o foco mais tradicional da esquerda marxista, favorecendo a luta de classes no âmbito da produção como um momento chave da luta” (p. 44).

Em seu texto original, não havia menção a isso, a não ser muito brevemente, quando, ao observar que no capítulo 23 do livro I Marx abre a perspectiva de uma teoria do valor da reprodução social, lembra Harvey que não foi outro o alvo das feministas marxistas, as quais teriam trabalhado assiduamente durante os últimos 40 anos para construir tal teoria.

Assim, ao que parece, a reação de Roberts fez seu oponente abordar explicitamente o assunto.

A esta altura, já temos alguns tijolos com que construir certo esquema (que corre o risco de ficar um pouco caricato, mas penso que vale a pena). Temos, de um lado, a posição 1 (de Roberts):

Marx constrói uma teoria do valor-trabalho, coloca o trabalho e a exploração dele no centro da arena, botando o foco na produção e derivando daí sua teoria revolucionária, a qual atribui à classe proletária o papel de transformar a história; a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção se manifesta fundamentalmente por meio de crises decorrentes da queda tendencial da taxa de lucro (que é fenômeno gestado no âmbito da produção).

De outro lado, temos a posição 2 (de Harvey):

Marx constrói uma teoria do valor e demonstra que o trabalho abstrato é sua substância, mas sua ênfase não é na vinculação valor-trabalho, e sim na forma valor, que no capitalismo se impõe como norma social regulatória e opera através do mercado; é essa forma abstrata, mas objetiva, que ele põe no centro da arena, botando seu foco na unidade contraditória de produção e realização e considerando, portanto, também o âmbito da reprodução social.

Assim, o papel de sujeito revolucionário não se reduz ao proletariado, mas envolve todos os grupos oprimidos e a preservação da natureza; as crises têm múltiplas causas, oriundas das várias instâncias (produção, reprodução, mercado), inclusive aquelas derivadas do processo de criação de vontades, necessidades e desejos, tão crucial à sobrevivência do valor como norma de regulação.

Contudo, para Duayer e Araújo, nem a interpretação de Harvey nem a de Roberts logram apreender a natureza historicamente específica do trabalho no capitalismo. Inspirados na famosa obra do historiador canadense Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social, argumentam ambos que, enquanto conjunto dos vários e distintos tipos de trabalho concreto, “trabalho em geral” existe em todas as formações sociais, sendo essa existência que lhes confere sua função social.

Porém ocorre o inverso no capitalismo, pois aí é a função social do trabalho que o torna geral (p. 78).

Vale dizer, é o trabalho determinado pelas mercadorias que opera como objetivação dos laços sociais, colocando-o necessariamente como abstrato e produtor de valor.

Para eles, embora a abordagem de Harvey lembre em alguns momentos tal leitura, nem ele nem Roberts teriam se dado conta da especificidade histórica da inversão.

Apesar do evidente paralelo entre alguns de seus argumentos e a interpretação de Postone,[8] dizem os autores, Harvey não se dá conta de que, na exposição de Marx, o valor surge imediatamente como forma de mediação social, isto é, já na seção I do Livro I (portanto, não apenas com a entrada em cena da mercadoria força de trabalho na seção II, como sugere).

Já para Roberts, tal como no marxismo tradicional, garantem eles, o trabalho abstrato consiste apenas no desgaste fisiológico da mercadoria força de trabalho, que ocorre ao longo do processo de produção.

Assim, sua leitura fica ainda mais distante (que a de Harvey) da concepção do valor como forma de mediação social.

Para Duayer e Araújo, o resultado desses equívocos é que “a controvérsia entre os autores não tem como vislumbrar uma emancipação da formação social capitalista, pois os sujeitos da emancipação presumivelmente identificados jamais poderão imaginar um mundo […] sem a centralidade do trabalho” (p. 65-66).

Dito de outro modo, nos dois casos trata-se de crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho, não de crítica ao trabalho no capitalismo.

Assim, nem na posição 1, nem na posição 2, há o correto reconhecimento de que o trabalho social não é apenas objeto de exploração e, portanto, de dominação, mas, como quer Postone, é “o fundamento essencial da dominação” (p. 80) – dominação que vai muito além de mera dominação de classe.

Trata-se de dominação superior, operada que é abstratamente pela forma valor.

Compreendendo embora a crítica dos autores a ambos os lados do debate, é imperativo perceber que a interpretação de Harvey, como eles mesmos reconhecem, é a que mais se aproxima de uma abordagem que centra na forma valor o cerne da questão e, dessa forma, entende que há que ter amplo escopo a luta de classes.

Sobretudo num país como o Brasil, parece fazer pouco sentido contrapor o costumeiro enfrentamento capitalistas x trabalhadores às pautas identitárias e à luta pela preservação do meio ambiente.

Como demonstra com fartura de argumentos Silvio Almeida, em livro de 2020, é apenas aparente a contradição entre uma razão universal que ascende desde o final do século XVIII e o ciclo de morte e destruição produzidos por colonialismo e escravidão, pois ambos operam simultaneamente como fundamentos da sociedade contemporânea.

O racismo é por isso estrutural e não há como se livrar dele sem transformar a sociedade como um todo.

O projeto de uma civilização iluminista baseada na liberdade e igualdade de todos é a variável dependente de uma razão “abstrata” que se movimenta através do globo no compasso da acumulação.

A circulação do valor como capital de modo cada vez mais abrangente e universalizado vai reforçando seu poder de mediação e domínio, e reproduzindo devastação e opressão.

Um sebastianismo de classe não ajuda em nada a superação dessa dominação de tipo superior, naturalizada, reificada e, por isso mesmo, extremamente poderosa.

Leda Maria Paulani*é professora titular (sênior) da FEA-USP. É autora, entre outros livros, de Modernidade e Discurso Econômico (Boitempo, 2005).

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