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Thanos-Bolsonaro e o trabalho da morte

THANOS. A MORTE

Para quem não viu, os dois últimos blockbusters hollywoodianos (Vingadores Guerra Infinita/2018 e Vingadores Ultimato/2019) têm como protagonista um vilão terrível, Thanos, que possui um plano de grande atualidade: o genocídio de metade da população do universo para permitir que a sociedade funcione melhor. Thanos é, literalmente, um vilão genocida e assume-se como tal.

Seu personagem é mais denso que a média dos que habitam a reciclagem mística das ficções Marvel, nas telas das multinacionais norte-americanas. O plano não é pura maldade, daí o interesse.

Seu tipo psicológico tem mesmo certa doçura. Um olhar aloprado e canino o faz mais complexo que os super-heróis que combate.

Em seu anseio genocida habita um veio eugenista, de viés ecológico: matando metade da humanidade nos livraríamos das pressões malthuseanas que comprometem o equilíbrio do planeta. O corte pela morte seria justo, pois inteiramente aleatório, preservando-se, evidentemente, sua própria vida. Haveria uma certa renovação no extermínio, por esse modo da necessidade.

A liberalidade da fantasia de Thanos incorpora, sem má-consciência, a lógica finalista do genocídio. Desembarca, em sua simplicidade, num formato malthusiano para solucionar a contradição entre superpopulação e produção restrita.

Acredita poder revogar, simplesmente estalando os dedos, com suas ‘pedras mágicas’, as previsões sombrias de Thomas Malthus e sua armadilha (a ‘catástrofe malthusiana’).

A realidade, no entanto, mostra um mundo bem mais sujo e uma trilha não linear, envolvendo pestes, fome e guerras na proliferação sem medida da espécie.

O primeiro filme (‘Guerra Infinta’) é mais sucedido que o segundo (‘Ultimato’) e termina com a vitória inesperada do vilão, sustentando a aposta no genocídio aleatório. ‘Ultimato’, ao promover na sequência o final feliz hollywoodiano, acaba se enredando numa confusão de múltiplas viagens no tempo e se embaralha.

Mas foi Thanos, o vilão genocida, e não os super-heróis, que captou o imaginário de algumas personalidades públicas brasileiras. Seja por aspiração de identidade, seja por ponta de inveja, o fato é que o poder genocida do vilão e a instrumentalidade utilitarista de sua estratégia atraiu a húbris de alguns espíritos no topo da república.

Logo em seguida ao lançamento do filme, em 2018, Bolsonaro afirmou explicitamente, usando a primeira pessoa, ao ser cobrado numa entrevista por demora em ações sociais: “não sou o Thanos, que faz assim com o dedo e resolve o problema”.

Direta ou indiretamente, sua imaginação teve contato com a figura e a estratégia genocida do vilão e algo se ligou rapidamente nas constelações de seu imaginário. Foram entretidas num horizonte próximo ao da fruição ficcional e vinculadas à empatia com a morte, que caracteriza seu discurso.

Estalar os dedos e ‘resolver os problemas’ pela lógica da subtração populacional massiva mostrou ter parte ativa em sua consciência, na maneira que um devaneio percorre madrugadas insones.

Na sequência de sua declaração sobre Thanos, Carlos, seu filho, voltou ao tema. Publica um ‘meme’ com o pai no qual Bolsonaro aparece numa condensação figurativa, espécie de zoomorfia mista e desproporcional, encavalando a imagem ‘cabeça Bolsonaro’ com ‘corpo Thanos’.

O ‘meme’ segue o humor negro próprio ao imaginário do clã, na maneira em que são atraídos pela elegia da morte, da violência e da tortura. Reproduzido pela mídia na época, Carlos criou ainda outros sobre o tema.

Na linguagem das redes sociais, talvez tenha sido forma de se lidar com a carga negativa de conotações que envolveu a declaração do pai, admirador confesso de um personagem genocida, explicitando o positivo pela dupla negativa (antigo procedimento retórico).

A desenvoltura genocida da multiplicação das mortes como estratégia instrumental finalista, busca estabelecer na pandemia um modelo de ação executiva, uma política de estado, com resultados mais imediatos daqueles que envolvem complexas mediações e estratégias com métodos científicos.

Há, no entanto, um buraco negro absoluto no meio disso, no meio da morte como fim, que atropela sua realização. Quando saímos da ficção e entramos na realidade da lógica exterminadora, há na morte um ponto absoluto de consumação, uma espécie de horror que atola a consciência humana.

Aí começam os problemas, pois há de se calcular a concretização de estratégias racionais ligadas à otimização da morte. As mediações no planejamento racional da morte têm dificuldade em se afirmar como fim utilitário ignorando o meio.

Não há como ignorar a matéria, e os restos da matéria, ao querer delinear-se uma pura razão do entendimento. Afinal, são procedimentos, ainda que disformes ou opacos, de um genocídio em ação.

É necessário assumir que a morte, em sua extensão no empírico, deva ser, para sua realização em massa, dividida em processo social de produção, em linha de montagem.

A racionalidade produtiva tem então de enfrentar a lide abjeta da disposição dos dejetos da morte e os afetos humanos que a eles circundam.

O estalar dos dedos de Thanos, nesta ótica, tem sentido para além do ódio assassino, mas aí encalacra-se. Enfrentar a experiência da morte em série, ou em volume, se depara com algo mais pesado nas excrecências do processo.

Coisas sujas como sangue, putrefação da carne, o corpo-cadáver, teimam escorregar para fora do regime e são bastante complexas em lidar socialmente, mesmo para uma consciência genocida aberta para o exercício da violência e que a experimente como ‘banalidade do mal’.

A morte, em sua dimensão social, não é abstrata, mas ligada à matéria pelo fio da experiência do sentimento (a piedade na recordação, por exemplo). Embora sua representação possa reivindicar uma extensão limpa da coisa corpo, ela não é matéria extinta que facilmente vira pó, partícula que desaparecendo, como no blockbuster, se desfaz em poeira.

A transformação pela morte dá-se no mundo e é corpórea, assim como sua consciência. Os restos perduram no campo orgânico, impactando a experiência figural e carregando a imaginação de significados.

A singularidade do humano, quando sua individualidade é negada na morte, tem no sepultamento da vala comum sua representação mais bárbara. É o símbolo de uma generalidade abstrata que, pela negação do sujeito, compõe em sua base a ação do genocídio.

Na mitologia grega-latina, Thanatus (de onde o nome ‘Thanos’ é derivado), é a personificação da morte, a sua divindade.

É filho de Nix, a deusa da noite, e neto de Caos, representação primordial do universo. Pelo Caos e na Noite, portanto, reina Thanatus, a morte. Está pressentida no escuro, na proximidade contingente do Caos, onde domina seu gosto pelo exercício livre do extermínio, conforme antevisto nos antigos.

A modernidade instaurou uma nova modalidade na morte, distante do Caos e planejada no entendimento. Os filósofos contemporâneos, que tentaram se libertar da canga da razão e da identidade como núcleo de uma subjetividade que acorrenta, acusam a abrangência do iluminismo inclusive nos domínios do extermínio.

A morte, como assassinato ou genocídio, a morte do homem, assim planejada, deduzida, dividida, em partes iguais e progressivas, segue sua disposição na extensão e na causalidade pela consequência da previsão.

Para sua otimização, imagine-se a ordenação numa planta de fábrica, como produção em série que utilize a materialidade de seus sub-produtos, consequência do que produz, numa proposição prévia.

A morte como resultado do planejamento pelo extermínio implica um estado totalitário que possa dispor sobre a vida, ou fornecer justificativa para esta disposição.

O regime político que, historicamente, levou ao ponto extremo a grade de categorias sobre a irracionalidade do horror, construiu plantas de planejamento da morte em campos de extermínio.

Não existiu caos no exercício da morte nestes campos, mas uma racionalidade no extermínio que atinge a consciência (e a má-consciência) do homem em suas entranhas.

Exatamente por lidar com o que é inominável no espírito e indigesto na carne (o corpo como massa inerte, ou o cadáver), traz a figuração do Mal em sua essência. Daí o grande paradoxo da negação, antevisto por Hanna Arendt, no conceito de banalidade.

Ele se refere à surpresa, ou à impossibilidade contraditória, da serialidade do banal que derrapa ao ser método na consecução da morte em sucessão, pois está carregado de singularidade em sua ação (a ontologia da individualidade em cada morte).

A racionalidade da disposição produtiva da morte inclui o formato da série na matéria cadáver, inclusive na reciclagem dos restos mortais, mas resulta em algo que a ordem da razão rodeia ao conceber no modo dedutivo.

2.
Para quem viu, Noite e Neblina/1956, de Alain Resnais, realizado dez anos após a abertura dos campos nazistas, traz imagens que não se esquece. O filme mostra a estrutura dos campos de extermínio como universo particular no funcionamento mais amplo da economia de guerra.

Ao redor do maior campo de extermínio alemão, Auschwitz-Birkenau, aglomeravam-se imensos campos de força de trabalho, relacionados indiretamente aos SS, com mais de 100.000 habitantes.

Siemens, Fauber, Krupp, são empresas mencionadas pelo filme que utilizaram a mão de obra dos campos e sobreviveram à guerra. As tomadas aéreas dos campos de trabalho junto a Auschwitz, reproduzidas por Alain Resnais, impressionam pelo gigantismo.

Mostram o estágio avançado de sua integração ao estado alemão em 1944/1945.

Estão prontos para decolar a um outro patamar no horror, atuando a partir de sua integração aos campos da morte, com estes últimos dotados de complexo ferroviário para transporte de prisioneiros, integrado à estrutura de câmaras de gás e crematórios.

Dois grupos eram separados logo na chegada ao campo, um para morte e outro que sobrevivia para o trabalho, seguindo o lema estampado, em garrafais letras de metal, que até hoje permanecem no que restou do grande pórtico de entrada de Auschwitz: “O Trabalho Liberta” (‘Arbeit Macht Frei’).

Na relação entre morte e trabalho, o trabalho surge em si mesmo como etapa a ser realçada em forma final de alienação pela liberdade, na morte. Trabalho/valor e liberdade/morte são bifaces de duas moedas que sintetizam a ordem dos campos.

Em cada, uma face que revela e outra que dissimula, sustentando o paradoxo de sua concretização: trabalho que mata, valor que liberta. Querem dizer: o planejamento do extermínio deve produzir valor.

Noite e Neblina deixa claro de que maneira os separados na chegada para não sobreviver (principalmente crianças, mulheres, idosos e inválidos), também deixam sua contribuição em valor.

Além das imagens dos corpos famélicos, empurrados como massa inerte por tratores, ficam marcadas na memória as pilhas dos ‘restos’ dos cadáveres, usados como massa de reserva no processo de produção.

Além das matérias propriamente corporais (o filme se arrisca a intuir a gordura transformada em sabão), imagens de recortes de peles tatuadas são expostas e gigantescas quantidades de cabelo feminino, usadas como material para tecido mais grosso, se erguem como montanhas do solo.

Milhares de óculos, pentes, dentaduras, pincéis de barba, sapatos e outros objetos pessoais surgem acumulados em grandes montes, esperando, sem dono, o destino para virarem valor na linha de montagem da morte.

Existe outro documentário que representa a morte no genocídio, mas tem foco na crítica da materialidade da imagem fotográfica como figura do indizível. Portanto, crítica ao material de representação que preenche Noite e Neblina.

É o documentário Shoah/1985 de Claude Lanzmann, longa-metragem de mais de 9hs, sobre o holocausto. Shoah não possui, em sua narrativa audiovisual, nenhuma imagem fotográfica dos campos que tenha sido tomada na simultaneidade da circunstância histórica do regime nazista.

Em outras palavras, não possui imagens fotográficas, imagens-câmera fixas ou em movimento, contemporâneas às atividades dos centros processadores de morte. Próximo à tradição hebraica, Lanzmann proíbe-se a representação do Deus/bezerro de ouro da morte.

Chega ao extremo de afirmar que se encontrasse num arquivo um filme secreto, rodado por um SS, mostrando como se processava a morte coletiva em grandes grupos de dois mil indivíduos nas câmeras de gás, o teria destruído.

A declaração provocou polêmica na época (março de 1994) como marca do interdito na representação do inominável, divino ou horrífico, aplicada pelo documentário Shoah.

A fotografia direta da morte, em seu estatuto de imagem de arquivo, lidando com a dimensão indicial, analógica ou digital (na realidade, tanto faz), surge como imoralidade e mesmo cumplicidade, no exercício da figuração negada ao Holocausto.

Sobre este tema, Claude Lanzmann travou acirrado debate com o filósofo francês Georges Didi-Huberman, publicando artigos de seus apoiadores, Gérard Wajcman e Élisabeth Pagnoux, na revista Les Temps Modernes, que editou durante muitos anos. Didi-Huberman discorda deles e diz que estão presos a uma crítica muito rasa da ‘ilusão referencial’.

Propõe vergar a representação da ‘imagem terrificante’ (a imagem traumática), puxando-a para fora do que seus adversários chamam ‘imagem-tela do fetiche’.

A imagem do inominável (e aqui Bataille é mencionado) seria para Didi-Hubermann ‘imagem-fenda’, que emerge como um arquivo indicial, fotográfico, mas no espectro do ‘malgré tout’ (do ‘apesar de tudo’) indizível.

Surge daquele ponto ‘onde todas as palavras cessam e todas as categorias falham’. O debate gira em torno dos limites da noção de imaginário. Didi-Huberman defende a imagem do trauma como quase-observação, seguindo com certa ironia Sartre, de quem Lanzmann foi bastante próximo.

Seria vestígio, leitura, trabalho, multiplicidade na fresta. Responde assim à acusação de promover uma imagem de arquivo fechada, numa totalidade cortada ‘sem imaginação’, encavalada pelo ‘voyerismo’, de um lado, e pela alucinação sem história, de outro.

E debita a Lanzmann o fato de hipostasiar seu testemunho, o testemunho de seu filme, negando a experiência audiovisual de outras ‘falas’, ou expressões, contemporâneas ao Holocausto.

As réplicas e tréplicas do debate estão reunidas no livro de Images Malgré Tout de Didi-Huberman (Minuit, 2003), obra que aborda as determinações da representação imagética, particularmente fotografia e imagens-câmera em movimento, e o significado ético da carga do índice na figuração do inominável.

Na raiz da polêmica que mencionamos está a co-curadoria de Didi-Huberman de uma exposição intitulada Mémoire des Camps (Hôtel de Sully, 2001) na qual manipulou, recortando e ampliando para figuração em museu, as únicas quatro imagens fotográficas tomadas de dentro de um campo de extermínio, no complexo Auschwitz-Birkenau.

As quatro fotografias foram feitas por membros de um ‘sonderkommando’ – composto geralmente por prisioneiros judeus forçados a fazer tarefas para os nazistas e que, portanto, eram os únicos a sobreviver por tempo suficiente para terem uma visão global do horror e poderem articular formas de resistência.

São imagens tomadas em condições de grande risco, a partir de dispositivos câmera e negativos introduzidos clandestinamente no campo, feitas para serem veiculadas no exterior (onde nunca chegaram) como forma de denúncia da barbárie nazista no processamento da morte.

Pelos cálculos de Didi-Huberman – acidamente criticados por Lanzmann como sendo forma de racionalizar a ação da representação (numa certa equivalência com o ato original) – foram tomadas de dentro da câmera de gás do crematório V de Auschwitz, através de uma porta entreaberta.

A primeira foto (a ordem temporal é do interprete) mostra, no exterior do edifício da câmera de gás, sempre fora de foco e com enquadramento descentrado, um grupo de mulheres nuas caminhando.

A seguinte mostra o mesmo quadro vazio e as duas seguintes homens caminhando sobre cadáveres numa espessa nuvem de fumaça. As imagens-câmera tomadas pelo ‘sonderkommando’ dentro de Auschwitz, em agosto de 1944, são as imagens de dentro da linha de montagem do extermínio, testemunhas do ‘apesar de tudo’, como as define Didi-Huberman, do ‘olho do ciclone’ no olho da história.

Debatendo-se sobre seu estatuto, o filósofo constrói vários estratos de mediação na representação para conseguir pensar a camada de referência indicial.

Mediações que são mantidas sob o fogo cerrado de Lanzmann e seus aliados, defendendo acidamente o legado radical de seu ‘monumento’ à imaginação, pelo relato na fala audiovisual, conforme disposta em Shoat no modo fílmico/documentário.

3.
Um terceiro eixo na representação de imagens da morte e do genocídio (além de Lanzmann e o Resnais de Noite e Neblina), pode ser encontrado na obra de Harun Farocki, um dos principais cineastas alemães na segunda metade do século XX. Farocki, hoje falecido, se auto definiu um dia como ‘the best know unkown filmmaker in Germany’ (‘o mais conhecido cineasta desconhecido da Alemanha’).

Em seus diversos documentários, alguns no estilo filme-ensaio, lida com a temática reflexiva da imagem audiovisual, mas pelo viés não dramático do pensamento conceitual.

Um de seus temas recorrentes é o da representação do trabalho, conforme emerge nos modos avançados de reprodução da mercadoria no capitalismo tecnológico.

Dois longas, Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra/1989 e Intervalo/2007, articulam, particularmente, o holocausto como forma de fazer girar valor incorporado e as questões éticas a que conduz a serialização da morte.

Farocki compõe, juntamente com Alexandre Kluge e os Straub (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet), a trindade marxista da abstração audiovisual, na lide com o conceito.

Embora Farocki seja cerca de dez anos mais jovem, muitas vezes são colocados próximos, na mesma geração do novo cinema alemão dos anos 1960.

Farocki nutre nítida admiração por Straub/Huillet, tendo inclusive dirigido, em 1983, um média de homenagem à dupla, mostrando seu particular método de trabalho em cena (Jean-Marie Straub and Danièle Huillet at Work on a film based on Franz Kafka’s ‘Amerika’).

As especificidades entre os quatro são diversas, mas seus trabalhos fincam a abstração da teoria crítica no modo fílmico audiovisual. O cinema de Farocki evolui nesta trilha, conforme caminha para o fim de século, possuindo a particularidade de uma sensibilidade impressionada pela tessitura vazia dos simulacros pós-modernos, vistos como grandes dispositivos de controle na realização de valor.

A trindade marxista do novo cinema alemão ocupa o lado mais radical dessa geração, com a proposta de lidar com a alienação no capitalismo avançado, aprofundando opções que, em outros diretores do grupo, surgem mais próximas da dramaturgia tradicional, embora sempre no corte moderno, como em Fassbinder, Herzog, Syberberg e mesmo Wenders.

A teoria marxista audiovisual de Farocki, Straub/Huillet e Kluge está longe de ser unitária, mas traz o vínculo de trabalhar a representação no horizonte do capitalismo tardio e da reificação expandida da mercadoria, em seu modo de incidir no maquinismo da imagem-câmera, particularmente em sua disposição fílmica.

No eixo central, está a teoria crítica de Frankfurt e sua visão das ambições do iluminismo e da razão instrumental. Seu modo de expressão parte basicamente do formato fílmico embora, num momento posterior, tenham evoluído até as instalações museológicas (principalmente Farocki) e no formato de ‘programa’ televisivo (particularmente Kluge).

A carga conceitual pesada desse cinema é, inicialmente, flexionada no modo pragmático da práxis utilitária. Busca esclarecer a consciência para desvendar a representação alienada, entendida como uma pedagogia poética.

O toque brechtiano mais cru é claro principalmente nos Straub (até o fim), no primeiro Kluge e também no Farocki inicial.

No entanto, os tempos mais contemporâneos do final de século e início do milênio, aos quais se vinculam de modo ativo, exigem o questionamento do pensamento de fora, na destruição, inclusive, do entendimento da práxis didática, num modo em que Brecht não chega.

Em Farocki, surge progressivamente o abismo de uma subjetividade ensaística intuitiva. É ela que verga, em seu estatuto crítico, a apreensão da mercadoria alienada por uma consciência rarefeita.

Puxa até o limite a consciência de si, mostrando como, no final, é engolida pela abstração num grande dispositivo homogêneo que realiza valor, lançando sua sombra difusa sobre a sociedade. As formas da liberação são então engolfadas pelos simulacros da pós-modernidade e já não surgem tão claras e didáticas, como no Farocki maoísta da década de 1960.

A proposta não explícita da trinca é descontruir as asserções propositivas da narrativa documentária mais clássica, numa inspiração fortemente marcada pelo cinema de Jean-Luc Godard, particularmente o do período ‘Dziga Vertov’.

Godard, referência explícita e implícita, é uma espécie de irmão mais velho de quem todos são admiradores sempre próximos e que esboça trilhas similares às que estão percorrendo.

A representação, pela imagem, do processo de produção racionalizada de valor é o desafio que a narrativa de maturidade de Farocki se coloca. Em outras palavras, é na medida da relação valor-imagem que a tecnologia se manifesta, como dispositivo simultaneamente inerente à imagem-câmera e à produção de valor, integrada pela violência nas configurações histórico-sociais.

Farocki é um diretor de obra ampla e diversificada, com dezenas de títulos, trabalhando em sua maior parte com imagens de arquivo, feitas por terceiros.

Explorada no modo da asserção/expressão audiovisual, a relação violência/valor-tecnologia/imagem percorre suas narrativas fílmicas e instalações, com foco na publicidade (Images and Sales or: How to Depict a Shoe/1989; Still Life/1997; A Day in the Life of a Consumer/1993); no consumo propriamente (The Creators of Shoppping Worlds/2005); na pornografia (As You See/1987); no futebol (Deep Play/2007, instalação); na imagem digital  e nos vídeos-games (Paralel I,II,III,IV/2012-14, instalação); na linha de montagem fabril (Workers Leaving the Factory/1995); dentro das prisões (Prison Images/2000; I Thought I Was Seen Convicts/2000, instalação); na representação audiovisual da história acontecendo (Videogramas de uma revolução/1992); no valor da mercadoria napalm no Vietnã (Inextinguishable Fire/1969) e as imagens do Vietnã depois da guerra (Before Your Eyes Vietnã, 1983); sobre a guerra propriamente e a emergência do fascismo (Between Two Wars/1978); nas imagens de morte e guerra representadas em jogos de treinamento militar (Imersion/2009 – instalação); na reprodução midiática como tecnologia de guerra (Eye-Machine/2000 – instalação, War at a Distance/2003); na suspensão em que paira o horror no campo de Westerbork (Intervalo/2007); na racionalidade da violência genocida (Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra/1987).

O documentário Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra ficou conhecido por retratar a questão do que se olha e do que se vê enquanto tecnologia do olhar, a partir de tomadas aéreas de Auschwitz feitas durante a II Guerra Mundial.

A narrativa pensa a tecnologia da imaginação, ou a imagem que embebe a percepção do fenômeno pela técnica. Imagem da imaginação, pois o pensamento de Farocki acredita que ela, imagem, é técnica do imaginário, um dispositivo que engole o sensível e sua intuição na sociedade contemporânea, através de densas mediações tecnológicas.

É como se, de um ‘de-si’, fôssemos eternamente olhados de lá, sem nunca bater no que sai de si (ou de mim), pois de onde se vê nunca se consegue se olhar. Quando este ‘de-si’ se vê, na realidade, olha a imagem do espelho dele, constituição tecnológica desencarnada que, antes de nós, nos põe a descoberto.

A percepção reduz-se então ao ‘si’ tecnológico do fenômeno que sobre nós abre sua asa pela técnica e em nós ‘se’ vem – por mediações sucessivas. O cinema de Farocki quer desvendar isso: dissocia, analisa, intui, e o faz num estilo que foge ao drama e se aproxima dos modos históricos do documentário reflexivo, abertos na forma filme e nos ‘loops’ das instalações.

Lida com o amplexo deste encontro audiovisual no qual o ser esbarra no mundo, num ‘ritornelo’, como diria o filósofo, pela abstração e pelo pensamento.

O embate mais marcante, em Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra, está na série de imagens aéreas de Auschwitz que percorre o filme em dois grandes momentos, reificadas de qualquer expressão ou entendimento original, mas carregadas da humanidade trágica, aquela do horror, que o desvelamento proporciona.

Câmeras automáticas aéreas filmaram Auschwitz sem saber, mas com intenção, como fazem câmeras de segurança de shoppings, prisões, ou lugares públicos.

As primeiras imagens que desvelaram a existência de Auschwitz foram tomadas casualmente por aviões de bombardeio norte-americanos, já para o final da II Guerra Mundial, em 4 de abril de 1944, com objetivo de localizar alvos industriais para destruição.

Conforme já mencionado, a rede de campos do complexo de Auschwitz incorporava diversas plantas industriais na proximidade, mantendo vínculos diretos com as atividades dos campos de extermínio, principalmente para aproveitamento de mão-de-obra escrava que rendia recursos para a SS, pagos pelas indústrias.

Os olhos da época, olhos dos militares norte-americanos que examinaram as fotos aéreas em Londres, localizaram como alvo nestas imagens aéreas a planta de uma indústria química, a IG Farbens, que produzia o composto ‘Buna N’, borracha sintética, importante para os alemães por sua ligação com a aviação.

Numa significativa proximidade geográfica, apontada no filme com a palma da mão por Farocki, as fotos aéreas também revelaram a estrutura, a arquitetura e o próprio funcionamento cotidiano de Auschwitz junto ao campo de Monowitz, no qual ficava a IG Farbens.

Na época, no entanto, Auschwitz, em seus detalhes e dimensão, ainda era desconhecido por aliados e soviéticos.

Nas imagens do mundo revelado, as fotos são claras, apesar da altura.

Vê-se os barracões dos prisioneiros de Auschwitz com a disposição característica dos campos alemães, a casa do comandante, veículos, a cozinha, o muro de fuzilamento, a localização da câmara de gás e dos fornos crematórios com chaminés, trilhas na neve e inclusive uma fila de seres humanos cortando o espaço como pequenos pontos enfileirados no caminho para a identificação.

Num segundo momento das tomadas (em janeiro de 1945), os olhos contemporâneos analisam um pavilhão de pesquisas médicas abandonado e as razões tétricas para o abandono.

Surgem detalhes como a identificação da camuflagem de uma sala de banho disfarçada para utilização de gás.

O reconhecimento, no entanto, só chamou atenção quando suas fotos foram examinadas, três décadas depois, em meados dos anos 1970, em procedimento rotineiro de arquivamento por militares da CIA, com uma direção do olhar que o filme credita à exibição da série ‘Holocausto’ na televisão norte-americana daquela época.

Agora, vista, a evidência da imagem de Auschwitz, com suas câmaras de gás e crematórios, surge visível.

A inscrição, como diz o título do filme, faz a aparição do campo no mundo, aquele da guerra e do valor, coisa social desvendada por nossa intelecção.

Na ação militar da época das tomadas, 1944/1945, a circunstância não existia, sua aparição era a de uma fábrica química de borracha, a IG Farben, e outras plantas industriais.

Embora intrinsicamente ligadas à linha de montagem da morte, eram vistas sem que formassem a totalidade concreta.

Bloqueadas pela atração concentrada na montagem do valor mercadoria-borracha para guerra, impediam que a morte entrasse como evidência última, cruel mas nunca gratuita, da engrenagem na roda do motor.

O entendimento da imagem está relacionado para Farocki ao desvendamento de seu estatuto panóptico, que surge intrinsicamente oculto de fora, reificado na natureza geométrica do dispositivo de conformação automática, esvaziado de humanidade.

Máquinas para produzir e máquinas para representar são, em si mesmas, vazias de autonomia, incorporadas pelo maquinismo instrumental.

O desvelamento vai se afirmar pela sobreposição das séries audiovisuais conceituais no modo de montagem aberta que o filme propõe.

A figura de um olho sendo maquiado atravessa Imagens do Mundo e sintetiza esta disposição. Está carregado pelo ornamento que esvazia o órgão de sensação e visão quando sustenta o pensamento descolado.

A programação do olhar para ver acompanha a ordenação do maquinismo e o fantasma da tecnologia autônoma assombra o diretor.

O ‘ver’ maquínico, já em sua obra da década de 1980, traz consigo um primeiro insight da dimensão abrangente que os logaritmos terão historicamente na programação dirigida (vigiando, punindo, consumindo), pela composição da imagem de dígitos alternados.

As dimensões alienadoras da nova imagem do automatismo digital impressionam, mas Farocki ainda parece acreditar no poder de um choque contraditório.

A percepção do sensível em alguns pontos dilata-se, abrindo sua inscrição no contingente, dando corpo a um olho antes era só maquínico, seja na tomada-câmera de arquivo ou no logaritmo da máquina da imaginação.

Este tema compõe um núcleo encoberto de seus filmes e instalações, fresta ou decalagem na opacidade dos simulacros do mundo pós-moderno.

Em Intervalo é o que o próprio filme busca ao reproduzir a expressão colada na imanência empírica da imagem de arquivo.

Sua forma é movimento de suspensão, intervalo, no horror que habita o que o automatismo do maquinismo capta.

E o furo surge na figura da expressão do olhar: a face da menina cigana que, de dentro do vagão, já no trem da morte partindo para Auschwitz, encara fixamente a câmera, no único primeiro plano do filme.

Esta tomada é uma espécie de buraco negro para onde a narrativa converge.

Também, como centro gravitacional, pulsa em Imagens do Mundo e Inscrições da Guerra, a foto que é reproduzida do chamado ‘Álbum de Auschwitz’, na qual um olhar retorna e rebate o maquinismo-câmera no controle da cena pelo fotógrafo (provavelmente um SS nazista), focando a moça judia de relance.

É outro olhar desafiador que atravessa o vazio, forma particular de marcar na expressão o enfrentamento do dispositivo, quando quer impor uma relação de domínio.

Ainda em Imagens do Mundo, as fotografias de identidade das mulheres algerianas, tiradas por Marc Garanger, descobrindo o véu do rosto pela primeira vez, tem função similar.

Atravessam o maquinismo pela intensidade da cena: olhos firmes e bocas trêmulas expõem a tensão desafiadora ao dispositivo na expressão desvendada.

A mão de Farocki surge em cena recortando e fazendo variar as figuras em seu ponto cego. Os exemplos destes buracos negros são diversos e em torno deles a narrativa rodopia como mosca na lâmpada, atraindo o conjunto para um centro de gravidade fatal.

Em Videogramas de uma Revolução é a mão (ou o tripé) da câmera oficial que treme e marca o momento em que o discurso oficial recebe, e passa a sustentar, a intensidade do ‘fora’ como vento da história; em Inextinguable Fire é a própria carne do braço de Farocki, queimada por ele mesmo com um cigarro, que expressa, no corpo, a ideia de que é ignóbil queimar a carne de outrem com napalm, sendo este seu valor.

Nos interstícios, a narrativa quer negar a de-subjetivação e a totalização da identidade, fechadas de fora pelo dispositivo.

Elas são fraturadas no filme pela estrutura de montagem em séries que, contrapostas, exercem o domínio das ideias. Uma delas é que a sensação potencializada do corpo faz a força do indivíduo contra o predomínio da abstração do esquema, modalidade alienada de ação de poder.

Existe um contra-poder, que começa a fazer valer sua autonomia na figuração da experiência do sujeito sobre si.

4.
Farocki quer mostrar que o maquinismo da câmera e o da linha de montagem têm a mesma estrutura abstrata de funcionamento, incorporando pela técnica a potência de poder do dispositivo.

Este repete-se na disposição de ambos (câmera e fábrica) carregados pelo entendimento esclarecido, ‘iluminado’, que destrincha para o sistema a estrutura da matéria (mundo revelado na fotografia e trabalho concretizado na mercadoria), mas faz fetiche do valor.

No campo nazista, o gás Zyklon B tem sua aparição velada em caminhões da Cruz Vermelha, mas desvenda-se pela análise do dispositivo automático da representação na fotografia aérea.

A fórmula química do ‘Buna N’ e do carbono, conforme a imagem de seu diagrama sugere no filme, estampa o entendimento da natureza pelo esquema da estrutura da matéria, mas isto não revela seu uso, seu valor para a troca, que se incorpora oculto nas câmaras de morte à gás.

O pensamento do filme, no entanto, é didático. Ele sabe como se realiza o valor e explica ao construir a ideia.

E sua ideia é a de que há contradição, e então síntese, entre a imagem desvelada do gás no caminhão e a estrutura da matéria destrinchada pelo entendimento iluminista que, aproveitando o conhecimento do esquema de sua composição atômica, concretiza a força de trabalho transformada pelo maquinismo da fábrica na mercadoria borracha. Ao diagrama deste processo chama-se dispositivo.

A força de trabalho nos campos se extingue para realizar o valor duplamente: pela morte que consome o gás e pela morte que exerce o trabalho, quando produz até a exaustão de sua força vital. Geograficamente o campo de trabalho localiza-se anexo ao campo da morte.

Então, quando o funcionamento do processo de realização de valor é devassado e quando mostra duplamente o dispositivo na imagem aérea (como maquinismo da câmera e como empreendimento de poder e valor), entendemos de que modo, em Auschwitz, o ‘trabalho liberta’: é da vida que ele quer liberar a força produtiva, pela necropolítica do trabalho.

Ao produzir morre-se e a ocultação deste desvelamento serve-se contraditoriamente do entendimento para realizar valor pela fórmula química da matéria ‘Buna N’.

O diagrama penetra até as moléculas da matéria, de modo que o maquinismo possa, concretizando a incorporação do trabalho nos objetos e instrumentos, potencializar seu modo de absorver, como negação, a força vital.

As relações sociais deste sistema regulatório são as do grande dispositivo, acoplando morte e valor na sociedade totalitária para fazer girar o capital. O dispositivo da imagem-câmera, assim, é apenas um outro diagrama de abstração pelo maquinismo, agora representação de imagens.

É outra face do mesmo grande dispositivo que se espraia sobre a racionalização do entendimento da matéria.

Seja na imagem que o algoritmo digital faz aparecer; seja na imagem da projeção renascentista dos volumes na base plana, na qual dorme o nitrato de prata para ser queimado na fotografia; seja no maquinismo da fábrica que transforma a molécula e absorve o trabalho – em todos, a marca dos diagramas na estrutura social puxa o entendimento iluminista para o horror.

É aterrador, mas este é o grande pensamento sobre o dispositivo que assusta a obra de Harun Farocki, estrutura geral abstrata de uma máquina de violência e morte condenada a alienar para gerar valor.

Mas não há saída, ou ao menos fresta, neste muro de sistemas regulatórios, fechados na grade das relações de poder?

Nas entrelinhas, percebe-se a abertura para uma estética da sensação que, quando surge, consegue desafiar e recuperar pela imanência uma superfície que volta a ser colada na vida.

É ela que tem a potência de desafiar o sequestro da vontade pelo diagrama oculto e onipresente. Assim, figura um breve interstício na possibilidade de autonomia do sujeito neste processo.

A arte propriamente, a ‘aisthesis’, poderia perfurar o dispositivo, abrindo-o na dimensão sensório-emotiva. Farocki é o cineasta do pensamento e da construção da ideia, da visão revelada pelo conceito.

Além de apontar denunciando a violência daquele que vê sem ser visto, vislumbra também, numa estética do sensível, uma organicidade que foge à totalidade sequestrada e pode afirmar a autonomia.

Então, as ondas com movimento programado do canal de Hanover, o lance de dados jogado pelo braço maquínico do autômato, a humanidade do olhar que escapa da máquina pela cena, atingindo o carrasco nazista – deixarão de afirmar a necessidade e abolir o acaso, para sustentar a liberdade do contingente na práxis da história.

Pela intuição sensível, deve-se figurar, na imanência, uma nova forma de valor que seja adequada à expressão do espírito enfrentando o mundo planejado do dispositivo. Este é o pensamento do filme em Farocki e que atravessa sua obra num movimento horizontal.

Fernão Pessoa Ramos, sociólogo, é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de A Imagem-Câmera (Papirus).

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