Não é por acaso, por gosto, inclinação ou por alguma espécie de “birra” que, na abordagem anarquista de Emma Goldman sobre a questão do seu “sexo”, conforme sua terminologia, o tema do casamento ocupe lugar central. Pensar a mulher implica necessariamente pensar sobre o casamento – e, curiosamente, como se, por consequência, sobre a maternidade. Embora, o mesmo não se aplique ao homem.
Conforme a história do pensamento ocidental parece atestar, salvo talvez nas últimas décadas, pensar sobre o homem prescinde da reflexão sobre o casamento ou sobre a paternidade.
Essa “necessidade” da relação entre os temas do casamento e da condição feminina não decorre, porém, de alguma suposta natureza intrínseca da mulher, de um suposto conjunto de “virtudes maritais” naturais, como se oriundas do útero; como tampouco se deve a alguma espécie de predestinação espiritual ao amor incondicional que render-lhe-ia, quando bem-sucedida, o posto máximo de “rainha do lar”.
Para Goldman, o casamento nada tem de natural, na mesma medida em que nada tem de espiritual e o que é ainda mais surpreendente: nada tem em comum com o amor. Se pensar a questão do sexo feminino implica necessariamente pensar sobre o casamento, isso se dá pelo fato de que o casamento foi, ao longo de eras, o meio principal, quando não o único, de a mulher alcançar alguma seguridade material, e, nos melhores casos, a ascensão econômica e social.
A consequência de tal “empregabilidade” mercantil do amor e do corpo é trágica, porque abrange a totalidade da mulher, não é particular ou acidental, como à primeira vista se poderia supor. Ao contrário: praticada, ao longo das eras, passou a dizer respeito ao seu “espírito”.
Com a degradação à condição de “mercadoria sexual” (cujo fim primeiro e último seria o de proporcionar prazer sexual ao homem e/ou a procriação), tudo aquilo que é considerado belo e elevado numa personalidade, como a honra, a inteligência, a profundidade e mesmo a utilidade, torna-se, quando na mulher, mero acidente de uma condição essencialmente “sexual”; e, portanto, um conjunto de atributos contingentes, logo dispensáveis; quando não indesejáveis.
Vide nesse sentido o diagnóstico contido no seu texto “Casamento e amor” (1910): “Não há necessidade de a mulher saber qualquer coisa sobre o marido, exceto a sua renda. E o que o homem precisa saber sobre a mulher que não seja se ela possui uma aparência atraente?
Ainda não superamos o mito teológico de que a mulher não tem alma, que ela é um mero apêndice do homem […] quanto menos alma uma mulher tiver, mais adequada estará à condição de esposa, mais prontamente irá se deixar absorver em seu marido”.
Com o intuito de esclarecer a condição de “mercadoria sexual” a que a mulher foi degradada, Goldman destaca que ao longo das eras, as duas qualidades mais notáveis da mulher, mais notáveis porque as mais negociáveis, foram a juventude e os atrativos físicos – o que poderia ou não vir acompanhado de acordos envolvendo dotes e contradotes.
Uma negociação milenar (em geral, levada a cabo por homens) que teve, por consequência a redução cultural da mulher a essas qualidades.
E isso, quando, de um lado, a juventude e a beleza física que lhe é característica são atributos, por natureza, necessariamente passageiros; e de outro, quando a jovialidade, saúde, e florescimento sexual da mulher são justamente as qualidades que tendem a definhar precocemente no interior de uma vida, em geral, miserável e infeliz.
Ora, mas por que o casamento deveria ser decifrado como fórmula geral de uma vida miserável e infeliz? Não deveria ser antes o contrário?
Neste ponto, Goldman é implacável: ela nos faz atentar que com o aumento ininterrupto do número de filhos (consequência natural da proibição legal contra os métodos contraceptivos que vingava na época), o aumento do trabalho doméstico, das noites sem dormir, e, não tão raramente assim, das brigas com o marido e, no caso da imensa maioria das mulheres, do orçamento econômico cada vez mais insuficiente para a prole numerosa; a vida em casamento tenderia, em geral, ser mesmo miserável e infeliz.
Além disso, é importante considerar que, nos tempos de Goldman, à esposa (consumida pelo cárcere doméstico que o casamento lhe impunha) estavam vedados praticamente todos os meios para o alívio da infelicidade que são oferecidos pela cultura moderna.
Conforme a anarquista descreve no seu texto “Casamento” (1897): o homem podia esquecer momentaneamente as “suas desgraças na companhia dos amigos”, podia “se deixar absorver pela política, ou afogar suas mágoas num copo de cerveja”; mas a mulher, inexoravelmente acorrentada à casa por milhares de obrigações, não podia desfrutar de qualquer distração; a diversão e o prazer individual eram-lhe recusados pela opinião pública.
Em poucas palavras, somente a mulher que permanecesse em servidão à família e ao marido era considerada respeitável. Ainda que as estatísticas de divórcio estivem crescendo a galope na época, a condição de desquitada implicava num fardo demasiado pesado para as mulheres e seus filhos – um fardo que economicamente, só poderia ser inclusive suportado por poucas.
Após oferecer-nos um tal afresco de infelicidade conjugal universal, Goldman traça, então, o último e mais longo ato do destino miserável de uma esposa: o de não tardar a se encontrar física e psiquicamente arruinada.
Conforme busca fundamentar nos seus estudos sobre a “questão do sexo”, a condição de mercadoria sexual (sob cujos parâmetros “a mulher” foi “moldada”) foi garantida, ao longo das eras, através da escamoteação e santificação dessa condição levadas a cabo pela Moralidade.
Em “Vítimas da moralidade” (1913), a anarquista é extremamente direta ao expor a compreensão de que a moralidade e a religião são instituições a serviço da opressão econômica e social; numa palavra, instituições à serviço da instituição da Propriedade Privada.
Através da imposição de certa moralidade pelas instituições religiosas como o único parâmetro verdadeiro de conduta, os mecanismos de opressão foram envoltos em superstição, o que teve por efeito oferecer àquilo que é violência, usurpação, sufocamento e perversidade a aparência de sagrado, de amor, de verdade, de tabu.
O casamento, a mãe e o pai do que se entende por família, é, portanto, uma das principais engenhocas capaz de transvestir a repressão e opressão em amor pretensamente incondicional.
Na análise de Goldman, casamento e propriedade são indissociáveis, como se duas faces de uma mesma moeda. É interessante observar que se, de um lado, ela coloca a instituição casamento como fundamento da propriedade; de outro lado, a própria estrutura interna do casamento é explicada via a estrutura da instituição propriedade privada.
Se, para a mulher, segundo sua análise, o casamento seria o “emprego” par excellence; para o homem, o casamento possibilitaria, no seio da família, o exercício do domínio que o capitalismo, a outra “instituição paternalista”, exerce sobre ele, quando no trabalho fora do lar.
Conforme sintetiza em “Anarquia e a questão do sexo” (1896): “O sistema que força a mulher a vender a sua feminilidade e independência ao melhor candidato, é um ramo do mesmo sistema malévolo que dá a poucos o direito de usurpar a riqueza produzida por muitos”.
Ou ainda conforme postula, de modo mais dramático, em “Vítimas da moralidade”: “Mesmo que todos saibam que a Propriedade é um roubo;” “que representa o esforço acumulado de milhões de pessoas que são desprovidas de propriedades”, “a Moralidade da Propriedade estabelece que essa instituição é sagrada.
Ai de quem se atrever a questionar a santidade da propriedade ou pecar contra ela!”
Numa sentença: pecar contra a Moralidade sagrada do Casamento é, no frigir dos ovos, pecar contra a Moralidade ainda mais sagrada da Propriedade Privada.
Independentemente das variações da instituição casamento nas diferentes classes, o ponto nerval é que tal instituição transformou a mulher, durante um tempo incalculável e supostamente no melhor dos casos, numa mercadoria sexual que só deveria ser violada legalmente após o casamento. Com isso, o seu ideal foi transformado na mesma coisa que a sua desgraça.
Quer no interior da legalidade e sacralidade do casamento, quer não, a função central da mulher, a sua razão de ser foi subordinada ao seu “sexo”.
Daí que a anarquista repita à exaustão, que a única diferença entre a prostituta e a mulher casada seja a de que uma vende a si mesma “como escrava privada durante toda a vida, por uma casa ou um título”, e a outra vende a si mesma “pelo período de tempo que deseja” (“Casamento”).
Afinal, conforme diagnostica no seu texto não publicado em vida “Causas e possível cura para o ciúme” (aprox. 1912): “Quando o dinheiro, o status social, e a posição são os critérios do amor, a prostituição se apresenta como inevitável, ainda que esteja coberta com o manto da legitimidade e da moralidade”.
Sob essa sua perspectiva, o casamento é nada mais do que uma forma de prostituição sancionada pela Igreja e pelo Estado. Ou, conforme suas palavras em “Tráfico de mulheres” (1910): “para os moralistas, a prostituição não consiste tanto no fato de que a mulher venda o seu corpo, mas, ao invés disso, que ela venda o seu corpo fora do casamento”.
A lógica é aqui extremamente simples: a substância da prostituição é a mesma que a do casamento – a exploração social, cultural e econômica via a questão sexual.
Por isso, para Goldman, o casamento é uma instituição irreformável.
Prostituição: uma instituição necessária à instituição casamento.
Goldman levou em conta, nas suas análises, as diferenças das condições em que o casamento se estabelece nas classes média e alta, de um lado, e nas classes trabalhadoras, de outro.
Segundo ela, às jovens das classes trabalhadoras era possível uma expressão mais normal dos seus instintos físicos e, com isso, do amor. O trabalho precoce fora de casa, motivado pela necessidade econômica, garantia, em maior ou menor medida, uma rotina ao lado de homens de diferentes idades, o que tornava natural que, em algum momento, a jovem em questão finalmente se entregasse aos calores da sua primeira experiência sexual.
“Os rapazes e moças do povo não são moldados de modo tão inflexível pelos fatores externos e frequentemente se lançam ao chamado do amor e da paixão, independentemente dos costumes e tradição” (“Vítimas da moralidade”).
O problema é que ao invés de happy end, a perda da virgindade “sem a sanção da Igreja”, em conjunto com a precariedade econômica e social e a criminalização dos métodos contraceptivos, não raro se convertiam, para essas jovens, num “primeiro passo em direção à prostituição”.
Valendo-se sobretudo do trabalho William W. Sanger, Goldman compreenderá a prostituição como a consequência direta de uma remuneração desproporcional ao trabalho honesto (“Tráfico de mulheres”).
Segundo os diversos estudos por ela relatados em seus textos, a esmagadora maioria das prostitutas era formada por mulheres e garotas da classe trabalhadora. Igualmente fundamentada em estudos e estatísticas, ela também chamará a atenção para a relação diretamente proporcional entre o aumento da prostituição e o desenvolvimento do capitalismo com sua sociedade de massa.
Já que no que diz respeito às mulheres oriundas das classes e famílias mais abastadas e estruturadas, o próprio “privilégio” de ter a sexualidade “protegida” na interioridade do lar paterno teria como efeito atroz um maior sufocamento dos seus instintos físicos e sexuais.
Em condições “ideais”, o exercício da sexualidade da mulher dependia de encontrar um rapaz que não apenas estivesse disposto a casar-se com ela, como também que fosse dotado do montante de dinheiro considerado suficiente para sustentar a vindoura prole.
Até que conseguisse tal montante, isso poderia custar ao jovem casal, a espera de muitos e cansativos anos para a sua primeira relação sexual; muito embora, os custos fossem aí consideravelmente desiguais. Aos homens, mesmo se comprometidos, era socialmente permitido e inclusive estimulado o exercício da sexualidade com prostitutas, o que, portanto, tornava a prostituição uma instituição necessária à instituição casamento.
No que diz respeito à jovem noiva, a ela só caberia subjugar a sua saúde, vida, paixão, desejo e juventude até que o “bom” partido em questão estivesse financeiramente apto a tomá-la como esposa – o que não raro se dava, segundo denunciado por Goldman, com o noivo já contaminado com as doenças venéreas adquiridas nos prostíbulos; doenças que ainda hoje são um tabu.
É triste que o que alertou há mais de um século, caiba perfeitamente ao nosso tempo supostamente tão liberado do ponto de vista sexual; o alerta de que a “cegueira deliberada” para com o problema de saúde pública das doenças venéreas, cegueira imposta pela moralidade, custa-nos abrir mão do “verdadeiro método de prevenção”, que é simplesmente o de deixar claro para todos que “‘doenças venéreas não são uma coisa misteriosa ou terrível, não são um castigo pelos pecados da carne, alguma espécie de mal do qual se deva ter vergonha […]; mas, sim, que são doenças comuns que podem ser tratadas e curadas’” (“A hipocrisia do puritanismo”, 1910).
A raiz de todo esse desencontro entre os “sexos” é compreendida por Goldman de modo bastante simples.
Trata-se da existência na nossa sociedade do que foi por ela nomeado de “padrão duplo de moralidade” – sob o qual homens e mulheres eram educados de forma tão completamente distintas, dotados de hábitos e costumes condizentes a mundos tão profundamente separados, que teriam sido transformados em seres, praticamente, alienígenas um ao outro (“Tráfico de mulheres”).
Um “padrão duplo de moralidade” que daria origem a seres tão estranhos um ao outro, tão moralmente divergentes um do outro no que diz respeito à sexualidade e ao amor, que o desencontro sexual e afetivo não poderia ser mais absoluto.
E mais do que isso: sem o conhecimento e o respeito mútuos, todo e qualquer tipo de união está fadado ao fracasso (“Casamento e amor”).
O efeito mais pernicioso da moralidade sobre a mulher: a repressão do “elemento sexual”
No sentido mais elementar e originário, porque primeiro, o efeito mais pernicioso da Moralidade sobre as mulheres diz respeito à repressão sexual.
Para Goldman dentre todas as forças que atuam sobre nós, seres humanos, o impulso sexual se não a única, é a mais importante. Conforme escreve no seu rascunho inacabado.
“O elemento sexual da vida” (aprox. 1934), o sexo é a “função biológica primária” de toda forma de “vida superior”, de modo que a ele, “devemos mais do que à poesia”: do canto dos pássaros à música, da plumagem das aves-do-paraíso à juba do leão; das formas superiores de vida do mundo vegetal e animal à própria cultura com seus costumes não raro tolos, insensatos e injustos; tudo isso, escreve Goldman, devemos debitar na conta do sexo.
Amparada pelo discurso psicanalítico da época – segundo o qual a pulsão de vida seria biologicamente determinada no sentido de buscar sempre, e cada vez mais, agregar a substância viva dispersa em partículas (o que tenderia a tornar a vida cada mais complexa, variada e, no nosso caso, multicultural) –, Goldman compreenderá a sexualidade para além do gozo propriamente dito, mas como a fonte mesma de toda socialização e criatividade.
O “instinto sexual é o instinto criativo”, postula; e é por expressar, em todo lugar e a cada instante, “essa grande necessidade de união”, que essa “faculdade é social” e “o começo do panorama da arte”.
Numa sentença: “A natureza sabe sempre mais” – e é a ela que devemos nos voltar, de modo a nos livrarmos da “doutrina profana e antinatural, iniciada pelos primeiros monges cristãos, de que o impulso sexual é o sinal de degradação do homem e a fonte da sua energia mais diabólica”.
A sua crítica às instituições da moralidade e da religião no que tange à mulher extrapola, portanto, os limites da denúncia do papel que exercem na escamoteação da opressão social e econômica; tais instituições atacam a vida da mulher na própria “raiz”: o elemento sexual.
Nas trilhas abertas por Nietzsche, Goldman irá compreender a moralidade e religião como antinaturais, como caluniadoras e sufocadoras da vida.
Mas para além de Nietzsche, essa ativista política deu bastante ênfase à compreensão de que a “atividade sexual” não é “um ato isolado”, mas “uma experiência generalizada que motiva e afeta toda a personalidade”.
Na medida em que a sexualidade se confunde com a própria personalidade, eis a tragédia de a instituição casamento ter sido imposta como a única válvula de escape socialmente aceita para o despertar sexual da mulher.
E que as duas outras, por assim dizer, “opções”, tenham sido, de um lado, a abstinência sexual – caso das, popularmente, conhecidas como “solteironas” – e, de outro, a prostituição.
Goldman parece alocar a repressão sexual como causa ou significado do casamento e da prostituição, antes mesmo do que a opressão econômica.
Como se a redução da mulher à condição de mercadoria sexual exigisse antes, para essa redução mesma, a repressão sexual.
“Seria tanto parcial, quanto extremamente superficial considerar o fator econômico como a única causa da prostituição” – pondera em “Tráfico de mulheres”.
Uma repressão sexual generalizada que foi imposta e “santificada” pela Moralidade (ao menos no que diz respeito ao universo judaico-cristão) através de um duplo movimento: ao mesmo tempo em que fundamentou o “sexo” como o atributo essencial da mulher, paradoxalmente, impôs-lhe uma educação e formação cultural que a mantinha, deliberadamente, na maior ignorância possível acerca das funções, responsabilidades e benefícios da sua pressuposta substância.
Sob a exigência da moralidade, toda mulher “decente” deveria ser privada de qualquer espécie de conhecimento (quiçá de “prática”) sobre a primeira das atividades a que estava inexoravelmente destinada por conta do seu “seu sexo”: o ato sexual.
“Por mais estranho que pareça”, escreve Goldman em “Casamento e amor”, é permitido à mulher saber “muito menos sobre a sua função do que um artesão comum sobre o seu ofício”.
Note-se aqui a charada através da qual a mulher foi subjugada naquilo que é, sob a perspectiva da anarquista, o mais fundamental: o elemento sexual. Pois, ao mesmo tempo em que era incutido na mulher, desde a infância, que o casamento seria o seu objetivo final, o sexo, paradoxalmente, era-lhe um tema-tabu, impuro e imoral, a ponto de ser uma indecência a simples menção à temática.
Sem saber nada da “função mais importante que deveria ser exercida na sua vida”, conclui do modo simples e direto que lhe é característico: era inexorável que uma mulher, em geral, não soubesse “cuidar de si mesma”, o que a tornava uma presa não só do casamento, como também da prostituição; ou o que é ainda uma triste realidade: uma presa fácil de parceiros homens abusivos – abusivos justamente na medida em que reduzem um ser humano à posição de objeto sexual sujeito à sua gratificação. (“Tráfico de mulheres”).
Pelas mesmas vias tornou-se um destino praticamente inexorável à mulher que nem mesmo na interioridade legalizada do casamento e do lar, finalmente lhe fosse permitido vibrar nos braços do seu prazer sexual.
Ora, apenas recentemente, e não em todos os círculos e lugares – vale frisar –, o prazer sexual feminino passou a ser uma questão, por assim dizer, legitimada publicamente.
Daí a observação de Goldman de que o medo de desagradar o parceiro com um comportamento julgado inadequado a uma mulher decente fosse uma causa não desprezível da repressão do prazer sexual de certas mulheres do seu tempo – o que, mesmo hoje, na intimidade das quatro paredes, continua a ser uma causa não desprezível da interdição do prazer sexual feminino; e isso a despeito do fácil acesso à pornografia digital que caracteriza o nosso tempo.
É também seguindo essa linha da repressão sexual como, por assim dizer, repressão primeira que Goldman desmascarará como um “mito” pernicioso a concepção de que a mulher possui um interesse sexual menor do que o do homem; e onde identificará a causa do problema grave, ainda hoje alarmante, da completa frigidez sexual entre mulheres sexualmente ativas – vide nesse sentido a pesquisa divulgada pelo jornal Folha de São Paulo em julho de 2019, segundo a qual 55% das brasileiras nunca atingiram o orgasmo; embora haja pesquisas internacionais que cheguem a apontar para 70%.
Frigidez generalizada entre as mulheres que, conforme denunciou Goldman quase cem anos atrás, é o efeito necessário de eras de repressão externa do prazer sexual feminino, repressão em nome da qual, vale repetir, foi legalizado e tornado costume o emprego da violência física e psicológica – quer romantizada pelo véu da moralidade e do amor incondicional, quer demonizada por forças sobrenaturais das quais a mulher desde Eva, a serpente e a maçã seria o portal preferencial.
Assim, se de um lado, atualmente, é uma platitude dizer que a cultura (fundamentada na propriedade privada) tornou uma espécie de segunda natureza da mulher a internalização da repressão sexual; de outro lado, é ainda uma necessidade rendermos alguma homenagem ao clitóris, sobre o qual mesmo hoje pouco se fala quando se fala de “mulher”; como se ainda fosse indecente ou, como diria Freud, infantil, mencionar o único órgão do corpo humano projetado exclusivamente para o prazer, com a estimativa de mais de 8000 terminações nervosas destinadas a esse fim.
A título de comparação, esse botãozinho mágico, possui praticamente o dobro de terminações nervosas do pênis cujas estimativas vão de 4000 a 6000 no total; além disso os músculos que fazem parte do clitóris não relaxam completamente após o orgasmo, o que torna anatomicamente natural à mulher atingir os tais múltiplos orgasmos, a despeito da sua condenação cultural à frigidez).
Se como disse Goldman, o sexo não é algo à parte, mas o elemento que motiva e afeta a personalidade como um todo, parece ser crucial que toda mulher privada do seu “direito ao orgasmo”, pelo menos se questione – ainda mais num mundo de pestes, cataclismos ecológicos, recessões econômicas e novas ameaças de guerras nucleares – sobre que tipos de maravilhas 8000 mil terminações nervosas estimuladas ao mesmo tempo seriam capazes de lhe proporcionar (e o que é melhor: sem limite de idade, pois pelo que se conta, o clitóris tem ainda o mérito de não envelhecer).
Isso para não falar da igualmente pouco falada vagina que – a tirar pelo nível de pompoarismo exibido no Ping Pong Show por trabalhadoras do sexo (em geral, exploradas) em Bangkok, Tailândia (para citar o caso mais conhecido) –, se devidamente treinada é, ao que parece, capaz de virar uma espécie deveras surpreendente de terceira mão.
Ou ainda da misteriosa ejaculação feminina, popularmente conhecida como squirt – que, salvo nos sites de pornografia, não há consenso acerca da sua existência nem mesmo entre os especialistas no assunto: segundo algumas pesquisas, trata-se de meros jatos de urina emitidos involuntariamente durante o sexo, segundo outras, de um fluido com características semelhantes ao plasma prostático, o qual seria, por sua vez, expelido, no momento do orgasmo, pelas glândulas parauretrais (o correlato da próstata masculina na mulher).
Donde brota inclusive a suspeita de que em vez de se concentrar na denúncia (algo raivosa) contra a “falocracia”, uma estratégia feminista mais proveitosa (a nós mulheres sobretudo) fosse a de informar e quiçá filosofar um tantinho mais sobre esse estrangeiro de nós mesmas: o clitóris – órgão que tem o mérito empiricamente filosófico de contradizer a regra lógica de que a função biológica do sexo é a reprodução; ou ainda sobre que tipos de potencialidades podem vir a estar adormecidas nos músculos vaginais, supostamente inertes para além do ato de dar a luz; e tudo isso sem jamais esquecer de poetizar, idealmente no gênero do realismo fantástico – que, segundo Dostoiévski é a essência mesma do realismo –, sobre as mil e um maravilhas de uma ejaculação controversa e desconhecida, no momento preciso em que a ciência já deu início ao desbravamento do longínquo planeta Marte.
Em vez disso, porém, o Brasil com seus 55% de mulheres que não gozam (segundo a pesquisa divulgada na Folha), é líder de cirurgia íntima por motivos “estéticos”.
Oh! Quanto desperdício! Que interpretação tacanha da estética do êxtase! Como Goldman estava certa!
Ciúme e amor livre
Conforme desenvolve em “Causas e cura possível para o ciúme”, o monopólio sexual sobre o qual se fundamenta o casamento – uma clara derivação da “Moralidade da Propriedade” – terminou por envenenar a nossa forma mesma de amar, uma vez que o ciúme passou a se apresentar como se algo “natural” ao amor.
O monopólio sexual, “transmitido de geração a geração como um direito sagrado e a base da perfeição da família e do lar” fez do “objeto” do amor uma espécie de propriedade privada que, por sua vez, deveria estar encaixada numa teia de propriedades privadas de outras naturezas.
Nesse sentido, é que a anarquista irá conceber o ciúme como uma espécie de “arma” sentimental “para a proteção desse direito de propriedade”.
“Arma”, porque o ciúme entra em cena justamente quando, com ou sem motivos, o indivíduo sente alguma ameaça ao seu monopólio sexual encarnado no seu parceiro ou parceira; “arma”, porque implica “revolver os órgãos vitais” daquele a quem supostamente se ama (e de si mesmo) ante o menor indício de desejo por uma outra pessoa.
Descrito por Goldman, como um misto de inveja, fanatismo, posse, vontade obstinada de punição e sobretudo vaidade ferida, o ciúme, em nada se relaciona com a “angústia” oriunda de “um amor perdido” ou do “fim de um caso de amor”; como tampouco é resultado do amor.
Ao contrário, para ela, o ciúme é “o próprio reverso do entendimento, da simpatia e dos sentimentos generosos”.
É verdadeiramente surpreendente a sua compreensão de que, na maioria dos casos, a virulência do ciúme é tanto maior, quanto menor for o amor e a paixão.
“O aspecto grotesco desse assunto todo”, escreve, “é que homens e mulheres normalmente se tornam violentamente ciumentos com pessoas que, na realidade, não lhes importam muito”.
Que “a maioria das pessoas” continue a viver perto uma da outra, embora tenham, há muito, “cessado de viver uma com a outra” – esse, e não o amor, é, para Goldman, o solo “fértil” para a atividade do ciúme.
Certamente, um dos seus ensinamentos mais comoventes é o truísmo de que numa relação amorosa não pode haver algo como conquistadores e conquistados, dominadores e dominados, pois o amor é em si mesmo livre e “não pode viver em outra atmosfera”.
“Amor livre?” – pergunta em “Casamento e amor” – “Como se o amor pudesse não ser livre!” Não há dinheiro que possa comprar o amor, não há força que seja capaz de subjugá-lo, não há lei ou punição que possa arrancá-lo, uma vez que tenha criado raízes.
É sempre interessante observar que Goldman traz para a relação amorosa mais íntima, um tipo de radicalidade que, em certo sentido, constituiu o cerne do espírito revolucionário, que é a disposição para autoentrega radical como forma do amor mesmo, que uma vez que diga respeito ao todo, não pode estar limitado a algo tão tacanho quanto a manutenção da propriedade privada seja na dimensão econômica, social ou íntima.
Vide, nesse sentido, a sua definição de “amor” no seu texto ainda hoje absolutamente essencial às mulheres intelectuais, não por acaso intitulado” “A tragédia da mulher emancipada”: “Uma concepção verdadeira da relação entre os sexos […] conhecerá apenas uma grande coisa: doar-se sem limites, a fim de encontrar um eu mais rico, profundo, melhor”.
Que isso só possa acontecer em relação a uma única pessoa, ao longo de toda uma vida, ou mesmo em relação a uma única pessoa por vez não encontra na visão oferecida por Goldman, qualquer fundamento.
Pois o amor e a sexualidade compreendidos como a fonte da criatividade e sociabilidade se expressam naturalmente de formas variadas, múltiplas e mutáveis.
Daí que postule que cada “caso de amor” é “independente e diferente de qualquer outro”, pelo motivo de estar profundamente relacionado com “as características físicas e psíquicas” dos envolvidos.
Donde conclui sob a forma de uma pergunta retórica: e se uma pessoa encontrar as “mesmas características que lhe fascinam em diferentes pessoas”, “o que poderia lhe impedir de amar essas mesmas características em diferentes pessoas?”
Que tenhamos limitado a mais alta realização do amor ao ideal do monopólio sexual encarnado na instituição casamento revela, para Goldman, o “nosso estado atual de pigmeus” no campo emocional, logo sexual.
Considerações finais
Sob a luz dessa leitura econômica da “espiritualidade” supostamente ideal a uma mulher da primeira metade do século XX – a de ser jovem e dócil como um cordeiro pronta para ter abatida a sua personalidade pela via do aviltamento da sua sexualidade –, é inevitável pensar na atualidade com os seus infinitos recursos artificiais e intervenções cirúrgicas que trazem a promessa de uma eterna aparência de juventude assomada a um formato de corpo “sexualmente desejável” – além de, conforme já mencionado, uma vulva geometrica-pornograficamente apetecível; uma promessa que é, mesmo hoje, mais urgente aos corpos femininos.
Assim, a pergunta que se impõe, a partir da perspectiva trazida pelos textos de Goldman sobre a questão do seu “sexo” – uma pergunta incômoda, mas da qual talvez não seja desejável escapar –, é a sobre até que ponto, nós mulheres, superamos e até que ponto nos afogamos ainda mais nessa condição de mercadoria sexual.
Pois, embora seja um tanto triste admitir, às vezes parece ser até o caso de suspeitar que Mary Wollstonecraft estaria ainda hoje certa, ao enfatizar, segundo o relato de Goldman, que “a própria mulher é um obstáculo ao progresso humano, porque insiste em ser um objeto sexual ao invés de uma personalidade, uma força criativa na vida” (“Mary Wollstonecraft: vida trágica e luta apaixonada pela liberdade”, aprox. 1911).
Afinal, mesmo que seja o caso de considerarmos que, atualmente, temos, por suposto, a opção de ser uma mercadoria sexual autogestora, por assim dizer, já que financeiramente emancipada e sexualmente “livre”; uma liberdade sexual que não venha acompanhada da alegria e da leveza que decorrem dos múltiplos orgasmos a que estamos, em alguma medida, destinadas fisiologicamente – é uma liberdade sexual demasiado incompleta e insatisfatória.
Se “deus” nos fez à sua imagem e semelhança é preciso considerar os aspectos em que, enfim, foi generoso.
Note-se que a questão aqui não é tecer juízos morais acerca do fato de que a aparência de mulher sexualmente emancipada do nosso tempo (diferentemente do de Goldman) esteja em geral vinculada ao gênero do soft porn (as popstars são o exemplo máximo disso); mas, sim, tão somente questionar se esse soft porn cotidiano do qual a mulher sexualmente emancipada é supostamente protagonista, contempla no seu próprio âmago o seu prazer sexual mesmo, o êxtase que os corpos femininos, à semelhança do arrebatamento espiritual dos santos, nos oferece naturalmente, pedindo tão pouco em troca – certos toques, alguns fluidos.
De outro lado, porém, Goldman também reconheceu que assumir a própria personalidade, talento e sexualidade, no caso da mulher, implicava, via de regra (como, em geral, implica ainda hoje), numa menor a possibilidade de encontrar um companheiro homem que visse nela não apenas um sexo, mas também um ser humano, uma amiga, uma companheira dotada de individualidade forte que não deveria perder um único traço do seu caráter.
Ao se valer do estudo de Laura Marholm sobre a vida de diversas mulheres dotadas de sensibilidade e talentos extraordinários – como Eleonora Duse; a matemática e escritora Sonia Kovalevskaia e a artista e poetiza inata Marie Bashkirtseff –, Goldman identifica como marca indelével “em todas as biografias dessas mulheres de mentalidade extraordinária”, a inquietação e solidão resultantes da ausência de relações amorosas capazes de satisfazer tanto o seu corpo, quanto o seu espírito.
Afinal se o “homem com sua autossuficiência e seu ar superior ridículo de patrono do sexo feminino é um parceiro impossível” para este tipo de mulher, também é igualmente impossível para ela “o homem que apenas vê a sua intelectualidade e o seu gênio, mas que falha em despertar a sua natureza” (“A tragédia da mulher emancipada”).
À guisa de conclusão, seja digna de nota uma das heranças mais óbvias dessa condição de mercadoria sexual da mulher, sendo esta: o “estranhamento”, bastante presente na nossa atualidade pós-moderna, de que mulheres “de certa idade” se relacionem com homens mais jovens ou que mulheres pertencentes a esferas sociais e econômicas mais altas relacionem-se com homens pertencentes a esferas sociais e econômicas mais baixas, o que, especialmente no caso de um país como o nosso, envolve necessariamente a questão da raça.
Talvez não seja exagero dizer que apesar das tantas e tão radicais mudanças ocorridas, nas últimas décadas, no campo da moral sexual e da compreensão da questão do “gênero”, é como se o amor ainda não se encaixasse muito bem nas relações entre homens mais jovens, menos ricos e escolarizados e mulheres mais velhas, mais ricas e escolarizadas; muito embora, o mesmo não possa ser dito, no caso oposto; a relação erótica entre professores universitários e suas alunas, por exemplo, praticamente uma instituição (silenciosa) erigida nos bastidores das instituições de ensino superior, parece ser prova disso (até porque, diga-se de passagem, não é em nome da práxis educativa do orgasmo das suas alunas que tais docentes homens desfrutam dos seus “privilégios”).
Numa palavra, por maiores e mais radicais que tenham sido as desconstruções e novas construções de gênero, a mulher continua a ser o “sexo” associado a alguma espécie de amor universal e incondicional – o que é, tediosa e perversamente, tão somente um desdobramento afetivo da sua condição de mercadoria sexual; e, portanto, não o amor universal e incondicional mesmo.
Afinal, apesar desse amor do qual a mulher seria supostamente o reservatório, ela continua a possuir, ao menos sob o ponto de vista da heteronormatividade, um leque por demais restrito de sujeitos dignos do seu amor presumidamente inato.
Mariana Lins Costa é pesquisadora de pós-doutorado em filosofia na Universidade Federal de Sergipe (UFS)