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A Amazônia e os militares, na visão deles a floresta é um território vazio

Contemplando a destruição

O meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável acaba de ser reconhecido, por resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, como um direito humano fundamental.

É um alívio saber que o Brasil está entre os 43 países que aprovaram a resolução. Mas, como bem mostrou uma reportagem de Jamil Chade, a diplomacia brasileira viu frustrada sua iniciativa de introduzir no texto a cláusula que “reafirma a necessidade de respeitar a soberania nacional de cada estado sobre seus recursos naturais”.

A rejeição dessa cláusula é um avanço decisivo: o meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável deixou de ser, com o avanço da crise climática, um assunto de interesse estritamente local ou nacional e converteu-se num tema global.

Emitir gases de efeito estufa a partir de usinas térmicas a carvão, por exemplo, contribui para derreter as geleiras do Ártico, para a onda de calor no hemisfério Norte e para as secas que atingem a Amazônia.

Portanto, por maior que seja o respeito que se deva ter às decisões soberanas nacionais, é impossível não levar em conta que, de forma cada vez mais intensa, elas atingem o conjunto da biosfera.

Mas não passa pela cabeça de ninguém que os impactos destrutivos das usinas térmicas a carvão poderiam motivar a perda de soberania sobre os territórios onde estes dispositivos operam.

É por mecanismos econômicos (atribuindo um preço ao carbono e taxando as exportações de produtos elaborados a partir de tecnologias emissoras), por cooperação e avanços científicos e tecnológicos e por legislações nacionais proibitivas, que o uso do carvão vai declinar.

Se é assim, como explicar então a tentativa brasileira de submeter o direito a um meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável à soberania de cada Estado sobre seus recursos naturais? Esta soberania estaria ameaçada?

Na visão dos segmentos militares com maior influência no atual governo, esta resposta é claramente afirmativa.

É uma crença que desloca o atual e palpável ataque aos “recursos naturais” (vindo de organizações criminosas que, com forte apoio local e federal, invadem territórios indígenas, promovem exploração ilegal de ouro, grilam áreas públicas e atacam os povos da floresta e seus mais importantes defensores). Para um imaginário inimigo externo que buscaria aliados no país para comprometer nossa soberania sobre a floresta.

Dois exemplos recentes ilustram essa postura cuja influência, evidentemente, vai muito além de sua circulação na corporação militar.

O primeiro vem do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República.

Foi em 25 de agosto de 2021, quinze dias após o lançamento do 6º Relatório de Avaliação (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) e menos de cem dias antes da 26a Conferência Climática, que Mourão abriu um seminário, no Instituto General Villas-Boas, em que foram ouvidos apenas negacionistas climáticos e ao qual não se convidou nenhum dos vários cientistas brasileiros que participaram da elaboração do relatório do IPCC.

Note-se que entre os supostos especialistas presentes ao seminário, nenhum deles publica em revistas internacionais de qualidade.

Nesta abertura, Mourão não se constrange ao afirmar que “neste século 21, uma das maiores questões que ameaça a soberania é a sustentabilidade.

Desta forma, a questão do desenvolvimento da Amazônia, onde diversos atores não estatais limitam nossa soberania, é algo que tem que ser abraçado pela Nação como um todo…sob pena de sofrermos severas consequências.

E, quando a gente fala em severas consequências, a gente fala em intervenção”.

Por essa visão, a maior ameaça que pesa sobre a Amazônia está nos “atores não estatais” que atuam em defesa da floresta em pé e dos povos que estão sofrendo as agressões ligadas ao atual avanço do desmatamento.

O segundo exemplo é a conferência do general Luiz Eduardo Rocha Paiva, no Instituto Defesa & Segurança.

O que chamou de “vazio populacional” da Amazônia foi apresentado como risco à soberania brasileira sobre o território.

A vulnerabilidade do suposto vazio populacional agravou-se, segundo o general, com “discursos globalistas e indigenistas”, que levaram “governos submissos” a demarcar terras indígenas, que comprometem a soberania nacional, particularmente em áreas de fronteira, e a endossar a “Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas”.

Estes são apenas dois exemplos de uma visão a respeito da Amazônia e dos povos da floresta que, desde janeiro de 2019, inspira as políticas do governo federal brasileiro para a região.

A demonização da conquista democrática representada pela demarcação de territórios indígenas e quilombolas, a ênfase na ideia de riquezas naturais cobiçadas por interesses estrangeiros e as declarações explícitas de que o melhor uso que se pode fazer do bioma é representado por suas formas convencionais de exploração (mineração, extração madeireira, pecuária e soja) tornam-se vetores culturais das práticas destrutivas que se intensificaram na Amazônia desde o início de 2019.

Por essa visão, se a Amazônia é um território vazio em que povos indígenas são facilmente manipuláveis por potências e interesses estrangeiros, sua ocupação torna-se premissa para o exercício da soberania.

E a forma mais efetiva e rápida de promover ocupação é pelo incentivo a atividades convencionais de mineração, extração de madeira, pecuária e agricultura de grãos.

Portanto, transformar terras públicas não demarcadas e áreas protegidas em base para esse tipo de economia transforma-se em objetivo estratégico que passa pela permanente tentativa de legalização do que até aqui é crime e pelo apoio aos diversos atores que procuram obter esta legalização.

A influência dessa narrativa sobre os atores locais na Amazônia é gigantesca, ainda mais quando se leva em conta que, para boa parte deles, a floresta é, como bem mostraram as reportagens de João Moreira Salles na revista Piauí, um obstáculo à concretização do sonho em função do qual migraram para a região e que se materializa na criação de gado e na agricultura de grãos, fundamentalmente.

Uma das mais importantes e difíceis tarefas da reconstrução democrática, quando o fanatismo fundamentalista for afastado do poder, será a de contrapor a essa narrativa alucinada e destrutiva, à ideia de que as riquezas da floresta podem ser a base da prosperidade, desde que sejam respeitados, os direitos humanos, a ciência, a cultura material e imaterial dos povos da floresta e o orgulho brasileiro por dispormos de um patrimônio que vai auxiliar a humanidade a enfrentar seu maior desafio global.

Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).]

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