Com o carrinho de supermercado ainda quase vazio, o professor aposentado David Garbi, de 90 anos, não tira os olhos da lista de compras do mês. Pouco a pouco, vai refazendo com a caneta as contas ao checar os preços da prateleira. Uma rotina na maioria dos brasileiros.
A percepção de Garbi é real. Em 2021, o salário terá, como no ano passado, o menor poder de compra em relação aos produtos da cesta básica desde 2005, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Atualmente, com um salário mínimo é possível comprar cerca de 1,58 cestas básicas, que custam, em média, 696,70 reais. De 2010 a 2019 esse indicador ficou sempre acima de duas cestas, com exceção de 2016, quando diminuiu para 1,93.
A cesta básica é composta por 13 itens alimentícios e é base para o cálculo do valor do salário mínimo necessário para a sobrevivência de um trabalhador e de sua família.
Poder de compra da cesta básica nos últimos anos
A alta dos preços atingiu todos os setores da alimentação e a desvalorização do real frente ao dólar desde o início da crise sanitária foi um dos motivos que mais pressionou o indicador.
“O Brasil é um grande exportador de alimentos e o fato de ter uma moeda norte-americana muito valorizada, que acumulou um avanço de 35%, faz com que o produtor queira exportar, diminuindo a oferta local, o que causa uma forte variação no preço. Já o que importamos, com dólar alto, também fica mais caro”, afirma George Sales, professor da Fipecafi. Além disso, fatores climáticos, em decorrência de longos períodos de estiagem ou de chuvas intensas, também impactaram nos preços dos alimentos ao longo dos meses.
Os efeitos da inflação não são iguais para toda a população e os gastos com alimentação acabam pesando mais para as classes de renda mais baixa, já que grande parte do orçamento é gasta com alimentos.
“A inflação é de cada um. E foi muito mais forte para os mais pobres, já que grande parte do salário deles é gasto com comida e bebida. O salário mínimo teria que aumentar mais de 22% para acompanhar a cesta básica”, diz Sales.
Na avaliação de José Silvestre, diretor adjunto do Dieese, é preciso se discutir uma política de valorização do salário mínimo a longo prazo, já que a remuneração está defasada.
Considerando o valor da cesta básica de São Paulo, o Dieese estima que o salário mínimo necessário deveria ser equivalente a 5.304,90 reais, o que corresponde a 5,08 vezes o vigente. O cálculo é feito levando-se em consideração uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças.
Aumento real do salário mínimo nos últimos anos
O professor George Sales avalia que atualmente o Governo de Jair Bolsonaro não tem espaço de manobra, com as contas há mais de seis anos no vermelho, para subir em excesso o salário.
“E o próprio setor privado também é prejudicado, em um momento que as empresas tenta sobreviver diante de um choque tão grande como o da pandemia. Hoje, o que o presidente deveria fazer era continuar com o auxílio emergencial para quem precisa por alguns meses, é algo mais focado e não altera o salário de todos”, afirma.
Para o professor, o país tem espaço para assumir uma dívida para atender a população mais vulnerável, já que é um momento de exceção.
Se já está difícil fazer compras para quem ganha um salário mínimo, que é reajustado pela inflação anual, o desafio é ainda maior para os trabalhadores informais.
A faxineira Gislaine de Jesus, de 43 anos, tem se assustado com os preços no mercado e já substitui o arroz diário do almoço pela macarrão.
Mãe de 3 filhos, ela precisa de muito malabarismo para manter a alimentação da família.
O valor da diária de limpeza que cobra 130 reais não aumenta há anos.
“No início da pandemia, a ajuda do auxílio emergencial ajudou bastante já que perdi quase todos os clientes. Agora estou conseguindo mais trabalho, mas a compra do mês está pesada”, afirma a diarista enquanto decidia, em um supermercado da região oeste de São Paulo, qual carne levar para casa.
“Há algumas variáveis que podem segurar a inflação de preços em 2021. Ainda enfrentamos nível alto de desemprego e há o encerramento do auxílio emergencial, fatores que reduzem o poder de compra dos brasileiros, de forma geral. Alterações na balança comercial, variações na taxa de câmbio e possíveis movimentos da taxa de juros básica (Selic) também poderão impactar o IPCA ao longo do ano de 2021”, diz Luciana Machado, doutora em Finanças pela FGV.
Na íntegra – Heloísa Mendonça