Os neoliberais creem que o reino da liberdade coincide com o livre mercado para os objetivos da acumulação.
O conceito de liberdade está presente nas revoluções que fundam a modernidade: (a) a Revolução Inglesa, em 1642, para derrotar o absolutismo rumo à monarquia constitucional para submeter o rei ao Parlamento; (b) a Revolução dos Estados Unidos, em 1776, cuja Declaração de Independência põe fim ao exógeno domínio anglo-saxônico sobre as treze colônias e; (c) a Revolução Francesa, em 1789, que derruba a monarquia absolutista em nome da República e da própria humanidade.
As liberdades individuais são decisivas para a consecução da tríplice soberania — a representativa, a nacional e a popular. Historicamente os direitos civis precederam os direitos políticos e sociais. A liberdade então tinha vetor revolucionário, abria horizontes, não se confinava em shopping centers.
David Harvey, em Crônicas anticapitalistas, retoma os temas de feições anarquistas com ênfase no autoritarismo ao sugerir que os ideais libertários são a marca do Maio de 1968, pelas demandas por: (i) liberdade da coerção estatal; (ii) liberdade da coerção do mercado; (iii) liberdade da coerção do capital corporativo e; (iv) liberdade da coerção moral e dos costumes. Tudo temperado na igualdade.
A resposta do neoliberalismo para absorver e neutralizar a alta tensão nas instituições é canalizar o legítimo desejo de autonomia dos indivíduos para as aspirações mercadológicas. O transformismo burguês joga no liquidificador as pautas dos enfants terribles para misturar e redirecionar as baterias contra os órgãos de regulamentação estatais, jogando toda energia disponível no moinho do capital.
O eclipse da liberdade
A arte de fazer as cabeças eclipsa a liberdade e deflagra uma “guerra cultural”. Por paradoxal, para tachar de autoritário o Partido dos Trabalhadores (PT) que emula o Orçamento Participativo (OP) e o Fórum Social Mundial (FSM), o movimento dos movimentos. Nesta realidade paralela, fabrica idolatrias tipo Viktor Orbán (Hungria), Benjamin Netanyahu (Israel) e Donald Trump (EUA) para os quais o Estado de direito democrático é um instrumento para configurar regimes de exceção.
A nova razão do mundo submete a democracia e a liberdade às desregulamentações, às privatizações e aos ajustes fiscais para barrar gastos sociais. A demagogia e as fake news fazem parte do cardápio.
Os neoliberais creem que o reino da liberdade coincide com o livre mercado para os objetivos da acumulação. A visão economicista relega ao segundo plano a realização dos seres humanos.
É fácil identificar os think tanks da mais-valia. “Todos têm o pensamento de dono”, nas palavras de um membro exponencial do Instituto de Estudos Empresariais (IEE). Do charmoso Mont Pèlerin, os neocolonizadores projetam a globalização da hierarquia de mando e obediência sobre o mundo.
“O planejamento econômico e o controle vêm sendo atacados como negação da liberdade, enquanto a empresa livre e a propriedade privada são consideradas essenciais à liberdade”, frisa Karl Polanyi, em A grande transformação. Com efeito, a meta não é construir a igualdade, mas a desigualdade.
O desemprego é premeditado para enfraquecer o aparato sindical e legitimar os arrochos salariais, apresentados como modernização das relações de trabalho com o aval classista do judiciário. Assim, o distopismo conservador converte a meta do Estado de bem-estar em um grave desequilíbrio fiscal.
Os avanços políticos alcançados na geração de emprego e na distribuição de renda são denunciados “como camuflagem da escravidão”. Não são permitidas as transgressões ao laissez-faire do deus-mercado. Medidas para curar as dores das iniquidades frustram os lucros.
A insensatez prefere os indicadores, para baixo, no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Sociedades erguidas sobre alicerces distintos não merecem o batismo de “livres”, ainda que possam contemplar mais e melhor a população. O individualismo e a indiferença com o sofrimento do povo injeta a narrativa, na veia, que evoca a praga de Margaret Thatcher: “Não há alternativa”. Resta apenas a servidão voluntária.
Na dialética desse paredão, o capitalista pode: (a) maximizar as taxas de exploração com o aumento da produtividade e a diminuição dos predicados trabalhistas e; (b) impedir a quebra de patentes das inovações tecnológicas em favor das comunidades. Enquanto o trabalhador pode: (i) escolher o emprego e; (ii) resistir com base na liberdade de consciência e de associação, que compõem o rol de prerrogativas cívicas no programa do socialismo democrático. Tal é o “pode-pode” sistêmico atual.
Para resgatar a liberdade
O acesso universal à moradia e à esfera de sociabilidade pública são trocados pelo “totalitarismo da mercadoria”. O Consenso de Washington é apresentado como panaceia. Londres contabilizava 60% de moradias sociais não avaliadas pelo valor de troca, mas pelo valor de uso; hoje fruto da metódica especulação dispõe de menos de 20%.
No Brasil, o Minha Casa, Minha Vida procura se precaver no faroeste imobiliário que dinamita a gramática comunitária para tratar tudo como uma mercadoria.
A democracia de proprietários confronta o construto histórico da cidadania e a constitucionalidade das nações modernas. Azar dos perdedores se Nova York soma 65 mil pessoas em situação de rua, em 2023, e São Paulo lidera o ranking brasileiro do desamparo com 55 mil entregues ao coração do padre Júlio Lancellotti.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) é um antídoto contra as tendências desagregadoras do mercado. “A verdade é que estamos construindo cidades para que as pessoas especulem, e não cidades para que as pessoas vivam”, arremata David Harvey.
Moradas a preços acessíveis são volatizadas com a explosão de imóveis para o consumo dos endinheirados.
Esse é o obstáculo estrutural às iniciativas para a reconstrução do Rio Grande do Sul, pelo governo federal. A inaptidão das autoridades em nível estadual e local combinada com a inexistência de domicílios suficientes, ao custo de até R$ 200 mil, são os empecilhos que se apresentam contra o saneamento do desastre.
As mega construtoras preferem investir em arranha-céus e prédios de luxo. Democratizar o processo de habitação é reinstalá-lo na condição de bem social. Barcelona proibiu dez mil alugueis tipo Airbnb. Nenhum Plano Diretor municipal deve proteger o lucro dos rentistas.
Vale para o transporte de massas, o abastecimento hídrico e a energia elétrica. Serviços privatizados agravam tragédias “naturais” e desculpam desgovernos incompetentes, sem transparência.
Práticas governamentais terceirizadas contribuem para a destruição material e simbólica do comunitarismo. A financeirização usa eventos socioambientais para desmilinguir os entes públicos e aprofundar o eugenismo.
Cabe à esquerda desfraldar as bandeiras pelo caminho: “En la lucha de classes / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas”, conforme o poeta samurai Paulo Leminski.
É urgente romper os grilhões da desumanização. A possibilidade de uma existência autêntica, com a ampliação radical da liberdade, supõe a superação do reino da necessidade e do trabalho alienado.
A consolidação de um patamar de dignidade mínima propicia a socialização dos novíssimos valores. Com a subsistência assegurada, a sociedade usufrui de cada qual segundo sua capacidade. Mas para não incorrer em um utopismo estéril, é mister fixar os elementos políticos do período de transição.
Em um debate com Rahel Jaeggi, Nancy Fraser sublinha: “É inconcebível uma sociedade desejável, capitalista ou pós-capitalista, que não conceda papel importante ao planejamento.
O planejamento pode e deve ser democrático. Ele não requer a nomenclatura ou o governo de técnicos especialistas. Poderíamos lidar com uma questão como a mudança climática sem algum planejamento de grande escala? Um bloqueio sistêmico dessa escala não pode ser feito por pequenos coletivos”.
A atual crise ecológica põe em destaque a urgência das articulações transnacionais. Somente a democracia global garante vida longa ao Homo sapiens e ao locavorismo, para a produção local de alimentos.
Só com o planejamento e o controle democrático sobre o excedente social, com regulação (de fora) da economia e as modificações (por dentro), é possível sedimentar os conteúdos emancipadores. A interrupção da mudança no clima do planeta para fruição da vida pessoal depende de uma cultura da solidariedade e da participação.
As posições paliativas subestimam o perigo na esquina. A virtude não está no centro, senão na luta coletiva real para derrotar o neofascismo e o neoliberalismo e seu apêndice conservador. A rapina semeia a infelicidade, a atomização. Arruína a sociabilidade plural. Já a práxis transformadora fortalece os lemas da Idade Moderna: liberdade, igualdade, fraternidade.
Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra