Tempo - Tutiempo.net

O Congresso legitima camisa de força da austeridade fiscal e lastro institucional para continuidade do modelo neoliberal

O debate público em torno da PEC dos Precatórios, que libera R$ 93 bilhões extras para o orçamento do governo federal em 2022, explicita a total desconexão da chamada “classe política” com os problemas fundamentais do povo brasileiro.

Ao invés de questionar a absoluta inviabilidade do Teto de Gastos como princípio regente da política fiscal e alertar para a urgência de sua imediata revogação, os críticos da PEC 23, à direita e à esquerda da ordem, preocupam-se única e exclusivamente com aspectos secundários, conjunturais e morais de uma medida casuística que procura, em condições impossíveis, dar uma sobrevida indefinida ao congelamento dos gastos públicos.

A gritaria superficial contra a PEC dos Precatórios – “abre brechas na Lei do Teto de Gastos”, “fere direitos adquiridos”, “cria incertezas nos investidores”, “é um expediente eleitoreiro que dá fôlego a Bolsonaro”, “turbina o balcão de negócios no Congresso Nacional”, “distribui mal os recursos liberados” e é funcional para que tudo continue igual.

Sem questionar pela raiz o absurdo que significa a constitucionalização de um regime fiscal que nega direitos adquiridos, bloqueia qualquer possibilidade de medidas anticíclicas contra o desemprego e criminaliza as políticas públicas, legitima-se a camisa de força da austeridade fiscal e, na contramão do que é preciso para enfrentar os problemas concretos da população, dá lastro institucional para a continuidade indefinida do modelo neoliberal.

Promulgada pelo ilegítimo governo Temer, no apagar das luzes de 2016, logo após o trauma do golpe parlamentar, a Emenda Constitucional no. 95 – a EC da Morte – decretou o congelamento real dos gastos primários do governo federal por vinte anos.

Vinte anos de sistemática redução no gasto per capita do Estado com políticas públicas!

A lei foi apresentada como um meio de equilibrar as contas públicas. Balela. As despesas com pagamento de juros da dívida pública não sofreram qualquer tipo de restrição. Trata-se, na verdade, de uma mudança radical na organização da sociedade brasileira.

O objetivo estratégico é reduzir drasticamente o papel do Estado como provedor de políticas públicas. A nova legislação só interessa aos que se locupletam com a especulação na ciranda da dívida pública e com os grandes negócios gerados pela privatização dos serviços públicos.

Ao destituir a Constituição de 1988 de qualquer base financeira para a viabilização de suas promessas democráticas, a Lei do Teto de Gastos elimina qualquer possibilidade de um capitalismo menos selvagem no futuro.

A dimensão da violência contra todos que dependem de políticas públicas – a avassaladora maioria do povo brasileiro – fica evidente na intenção original do governo Temer.

A finalidade do Novo Regime Fiscal foi explicitada pelo Secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, em apresentação proferida em meados de 2018.

Tratava-se de reduzir os gastos primários do governo federal em 2026 do valor projetado de 24,9% (sem o Teto de Gastos) para 15% do PIB com a nova lei.

Apesar da precariedade dos serviços públicos, do estado lastimável da infraestrutura econômica, social e cultural do país, da presença de uma crise civilizatória inédita, da estimativa de um aumento populacional entre 2001 e 2026 de 24% (43 milhões de pessoas), bem como da necessidade de volumosos investimentos para o enfrentamento dos complexos desafios que despontam no horizonte, a Lei do Teto de Gastos promulgada na calada da noite, com entusiástico apoio da burguesia brasileira, pretendia rebaixar a proporção das despesas primárias em relação ao PIB em 2026 ao patamar do início do milênio.

Em outras palavras, o projeto implícito por trás do reacionarismo verde-amarelo é o desmonte definitivo do arremedo de Estado nacional.

Sob o risco imperdoável de crime de responsabilidade, não podem ser ocultadas da população as consequências nefastas da Lei do Teto de Gastos sobre a vida nacional.

Estudo recente do Instituto Fiscal Independente, órgão vinculado ao Senado Federal, estima (em seu cenário de base) que entre 2022 e 2026, período que corresponde ao mandato do próximo presidente, a Lei do Teto de Gastos exigirá uma contração das despesas primárias da União, descontados os dispêndios com o Regime Geral da Previdência Social, de 9,3% para 8% do PIB.

Não obstante o Brasil passar pela maior crise econômica, social e sanitária de sua história, a Lei do Teto de Gastos pretende, no curto espaço de oito anos (2018 a 2026), diminuir em 25% a capacidade efetiva de gasto do governo federal, em relação ao PIB, com políticas públicas.

Quem por covardia política e conveniência eleitoral evita o tema, é cúmplice. Dentro dos marcos do Novo Regime Fiscal, o novo presidente da República, não importa quem for, para evitar a deposição, seja pela conspiração do andar de cima seja pela revolta do andar de baixo, terá que governar com a tesoura em uma mão e o porrete na outra.

A burguesia rompeu todos os nexos morais com as classes subalternas. A violência social implícita na Lei do Teto de Gastos, imposta como fato consumado à sociedade sem seu consentimento, é dantesca. Precisa ser barrada.

É o desafio de nosso tempo. Sem sua revogação, a sociedade brasileira continuará afundando no pântano da reversão neocolonial.

As fantasias dos programas eleitorais não cabem no orçamento do Teto da Morte. Substituir a dose máxima do veneno pela mínima não interromperá a marcha insensata para a barbárie.

A esperança de dias melhores passa pelo desmonte de toda a institucionalidade que sustenta o Estado neoliberal, a começar pela asfixia fiscal.

A superação do ambiente claustrofóbico em que vivemos supõe uma mudança substancial na correlação de forças. É todo o arcabouço do pacto social vigente que precisa ser redefinido.

Na ausência de uma forte mobilização dos trabalhadores, a sociedade brasileira permanecerá presa à lógica macabra do lucro a qualquer custo que impulsiona o avanço galopante da barbárie.

Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp

OUTRAS NOTÍCIAS