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O preço das vidas e o dilema do novo arranjo político brasileiro

Em março de 2020, o Brasil via surgirem os primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus.

No final daquele mês, muitos estados entravam em lockdown acompanhando com susto e atraso o que acontecia no resto do mundo.

Exatamente um ano depois, em um período que mais parece uma década, o país chega à casa dos 312 mil mortos, uma tragédia sem precedentes diante da postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Os erros podem ser enumerados: vacinas escassas, aposta em um tratamento precoce sem efetividade e inexistência de um plano nacional de combate à pandemia.

Em um outro plano, mesmo que com ritmos distintos, países que investiram na ciência começam a sentir os efeitos da vacinação.

Com uma política externa que em nada contribuiu para ajudar o quadro, o prognóstico é de que o Brasil siga cada vez mais isolado.

Enquanto o mundo contém a tragédia e começa a pensar em alguma normalidade, o Brasil, com fronteiras fechadas e números de mortos crescentes, lida com vetores internos e externos de pressão que podem levar a um novo arranjo politico.

Na prática, a pergunta é: como o governo Bolsonaro irá lidar com uma crise sanitária, social e econômica quando age para agravá-la ou apenas camufla uma solução?

Vale lembrar que o governo precisa de uma margem mínima de suporte social (seus apoiadores oscilam entre 20 e 30%), da aquiescência do mercado (sem vacina e “pessoas vivas” não é possível que o dinheiro volte a circular) e da continuidade do apoio político de parte do Congresso (o grupo de partidos que compõe o chamado “centrão” não tardará a abandonar o governo caso o preço do desgaste seja muito caro).

Mesmo longe de um dano definitivo, com um processo de impeachment que até agora não decolou, o governo passou a ter importantes flancos abertos. O que se pode ver diante disso?

O presidente Jair Bolsonaro e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, durante cerimônia para sanção dos projetos de lei que ampliam a aquisição de vacinas pelo Governo Federal.

Três cenários se apresentam. O primeiro deles diz respeito a um movimento que surgiu de forma latente desde o início da pandemia: um esboço de reação das forças políticas tradicionais diante do negacionismo do governo.

A avaliação geral é de que, sendo o presidente um obstáculo para lidar com o Corona vírus, é preciso governar apesar dele.

Esse espaço vazio está dado e não passa despercebido de ninguém. Foi nele que os governadores e prefeitos passaram a atuar, inclusive com o aval do Supremo Tribunal Federal (STF), que deu a eles a prerrogativa para decretar lockdown e estabelecer medidas restritivas.

A preço de hoje, eles até compram vacinas de forma autônoma, como faz o chamado “consórcio Nordeste” que congrega governadores dessa região do país.

Visto em plano maior, o terrível rastro da Covid-19 inoculou uma espécie de antígeno nas veias do que alguns chamam de “velha política”.

Não é um processo rápido, mas reações aparecem. É como se os atores tradicionais e as instituições tivessem obtido uma oportunidade de se reposicionar.

É possível ver que, guardando alguma relação com esse anteparo ao caos feito por governadores, prefeitos e pelo próprio Supremo, existe a chance de uma articulação mais ampla para disputar as próximas eleições presidenciais.

É um segundo cenário a se colocar. Porém, talvez não haja tempo, nem uma noção tão clara do perigo de uma autocracia, ou mesmo os diversos projetos individuais invalidem essa manobra.

Nessa linha de raciocínio, uma peça retornou ao jogo e acelerou essa resposta.

No dia 10 de março, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT-SP), novamente elegível após o Supremo o ter anulado de forma provisória suas condenações pela Operação Lava Jato, fez um discurso histórico no qual acenou aos políticos de “centro”, mostrou-se cheio de vigor e bateu na tecla da valorização da ciência, no uso de máscaras e na vacina.

O próprio Bolsonaro, que por diversas vezes falou contra a segurança e a eficácia de máscaras e vacinas, sentiu o impacto da fala do seu principal adversário.

Na verdade, uma mudança pró-vacina já se ensaiava no governo, inclusive por pressão de diversos empresários, mas sem dúvida a fala de Lula teve um efeito catalisador.

Isso levou a uma mudança na chefia do Ministério da Saúde e pôs na mesa uma variante do segundo cenário. Falo num quadro pelo qual, na campanha para 2022, os resultados do bolsonarismo seriam postos à prova diante de Lula.

Há os que avaliem que seu antagonista reforçará uma polarização pró-Bolsonaro movida pelo antipetismo e há também quem ache que Lula poderá comandar uma frente ampla.

O fato é que, de forma até poucos dias impensável, há uma chance real de que um rearranjo se dê tendo um político de esquerda como líder. E, em todo caso, uma reação articulada muda o jogo para as próximas eleições.

E existe, ainda, o terceiro cenário, em que nem o desastre na condução da pandemia seja suficiente para tirar Bolsonaro da reeleição em 2022.

Em todo caso, o que se tem agora é um esgotamento diante do negacionismo que começa a se desenhar e que tende a piorar com um país sem vacina, sem leitos hospitalares e isolado.

É como se o componente irracional que sustentou a eleição de um suposto outsider com um discurso antissistema, ainda que pertencente a um longevo baixo clero, estivesse sendo posto à prova pelo preço incontornável da vida humana (e, admita-se, a economia por ela operada).

Isso faz com que não apenas o governo seja confrontado como também se desmonte o ódio a questões tão caras às democracias modernas como a ciência e a razão.

Contudo, há uma ressalva.

Se é certo dizer que os candidatos tidos como outsiders representam um expurgo de insatisfações e afetos para o qual a elite política não deu a devida importância, por outro lado, é insustentável governar pelo caos durante muito tempo.

É exatamente diante dessa constatação que atores e instituições brasileiras, ainda que de forma canhestra, observam surgir uma possibilidade de rearranjo político, embora não se saiba exatamente que contornos ele poderá ter.

Fato é que neste ano arrastado, mesmo existindo quem se insurja contra as medidas restritivas, foi se criando uma linha de pensamento comum pró vacina que ultrapassou a bolha bolsonarista. É um limite da crença ideológica diante da realidade.

Os gráficos com as vidas perdidas sequer estão mais no campo das previsões. Já são consideráveis os nomes de pessoas conhecidas, parentes e amigos que foram mortos e estão infectados pela Covid-19.

Cada relato potencializado pelas redes sociais traz em si uma angústia e uma dor que vão se ampliando em diversos círculos.

É essa percepção que pode motivar alguma mudança. Contudo, a longo prazo, talvez seja correto pensar não apenas nas respostas que estão sendo dadas por agentes políticos e instituições, mas também num questionamento sobre o papel do Estado.

A vida humana tem memória.

A comparação com o que o resto do mundo está fazendo vai continuar. Uma hipótese que pode ser levantada é que vai ser difícil fazer uma ode às crenças contra a ciência e a proteção social quando esses forem os elementos centrais de socorro aos que permanecem vivos.

Grazielle Albuquerque é jornalista e cientista política, pesquisa Sistema de Justiça, em especial sua interface com a mídia, e foi visiting doctoral research no German Institute of Global and Area Studies (Giga), em Hamburgo.

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